Os pobres e a pobreza
((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))
Seja pela proximidade do Natal, a segunda das mais importantes festas da Cristandade, quando se fala com frequência sobre solidariedade humana; seja, então, pela chegada de novo governo, que pautou seu discurso de campanha na exaltação dos necessitados, fato é que, nesta época do ano, tornam-se numerosas as promessas de atenções especiais em relação aos pobres.
Entre os governantes sempre há uma tendência a voltar suas falas para essa faixa da população, seguramente a mais numerosa. Explicação plausível em relação a políticos oportunistas, que sempre se valem dos votos conquistados nas faixas dos esperançosos; estes, acessíveis a promessas, mesmo que travestidas de toda falsidade. Mas, o que nem sempre fica bem claro é a verdade que está acima de tudo: acabar com a pobreza é exatamente o que eles não querem, pois isso resultaria na eliminação de sua principal fonte de votos. Entendem que é preciso manter a pobreza viva e reivindicante, para continuar sendo enganada eleição após eleição. Cruel e desumano, mas é assim mesmo. Incensa-se o necessitado, a ele tudo se promete, o paraíso das picanhas, o milagre da casa para todos, a vitória sobre os ricos (se estão fora do poder), a bênção para os jovens bandidos que roubam celulares. Só não se promete acabar com a generosa fonte eleitoral.
Isto é bem entendido no Tratado dos Sofistas, de Jeremy Bentham (1748-1832). “A insinceridade de muitos que costumam exibir-se como representantes dos pobres é manifesta. É quando o político, sendo rico ou vivendo como rico, se apregoa representante dos interesses dos pobres, mas o que pretende é conservar a riqueza, advogando a causa dos infelizes”.
No Brasil, diante de experiências populistas várias, nunca se sabe se a maior miséria dos pobres está na própria pobreza ou por serem vítimas constantes da exploração de falsos protetores.
Enganações desse tipo são antigas. Quem leu Mateus e Marcos nos Evangelhos, pode se lembrar que, no jantar com Jesus, em Betânia, o autor do falso discurso em favor dos pobres foi Judas Iscariotes, ladrão e traidor. A história sempre recomenda prudência quando se trata com falsos heróis de classes sociais menores. As falsidades se repetem. E também frequentam os nossos dias.
No rastro de 2022
_Já nos seus últimos suspiros, o velho ano tem poderoso saldo de coisas importantes que vão ficar para trás; deixaram de acontecer. E o melhor que se pode desejar é que os doze meses que chegam para sucedê-lo tenham ânimo e sorte para trazer soluções reclamadas; se não todas, as principais. Vejamos o patrimônio passivo no campo da política, onde ficou eleição marcada por dúvidas quanto à sua lisura, desconfiança robustecida por uma pálida diferença de votos entre os dois principais candidatos à Presidência da República. Não só por isso, mas, se ficou no rastro do ano uma disputa ferrenha, insinuam-se dificuldades para o governo que já tem contra si a metade do eleitorado ativo. Preferível fosse a diferença de votos bem mais ampla, o que daria ao eleito maioria inquestionável, eximindo-o de concessões exageradas.
2 - O balanço de 2022 também deixa escassos créditos aos partidos. Não cuidaram de aperfeiçoar suas obrigações programáticas, mas correram em sentido contrário, desceram dos deveres originais, juntaram-se em federações fajutas, só para escapar da degola da lei da eficiência mínima, o desempenho que não alcançaram. Era o que faltava para tirar deles o pouco que lhes restava de conteúdo, ausentes ou pobres em participar das grandes questões nacionais. Os partidos ficaram reduzidos a grupos parlamentares de pressão, ágeis e hábeis na cobrança de benefícios do Executivo ou contemplados na tolerância dos tribunais.
3 - Não menos preocupante fica a resenha das violências praticadas contra a liberdade de expressão, cassada até mesmo a parlamentares que a têm, não apenas como cidadãos, mas como garantia do pleno exercício do mandato. De certa forma, evoluímos da conhecida ditadura da farda para a novidade da ditadura da toga.
Realmente grave a censura, porque é uma violência que não conhece limites, facilmente se estende para ofender outros direitos inerentes à livre cidadania. Pior foi constatar que as infelizes limitações partiram dos mais altos tribunais de Justiça; o que significa que, agredida, a liberdade fica sem ter uma porta a que bater.
Para acentuar ainda mais as preocupações, registre-se que à mordaça oficial juntou-se um desvirtuamento também comprometedor. Fake-news, essa terrível enfermidade que invadiu o organismo das redes sociais, por onde transitaram verdadeiras infâmias, campanhas de difamação e desinformação. Prosperam demais neste ano.
4 - No fecho do sombrio balanço, não menos importante foi ter-se dado à sepultura, em cova rasa, a Java Jato, o que se confirmou com a libertação dos últimos envolvidos na mais fantástica quadrilha de corrupção que o Brasil e o mundo tinham visto. A última gentileza do Judiciário, em véspera de Natal, tirou Sérgio Cabral da cadeia. Que se cuide o ex-governador, cujo prontuário já o habilita a disputar a próxima eleição.
5 - A tarefa de organizar o esquadrão que deve acompanhá-lo no primeiro ano de governo levou o presidente Lula a confirmar, embora não o dissesse claramente, que a organização partidária brasileira passou a ser uma ficção. Ele não conversa com os partidos, e o ministério ficou condenado a ser um laboratório onde operam e combinam pessoas ou segmentos isolados. Salvo, sob certos aspectos o PT, os partidos, como instituições programáticas, deixaram de existir. O chamado Centrão, eternamente glutão, assumiu as rédeas das negociações, e, sem deixar por menos, exigiu poderosas cadeiras no primeiro escalão, disponibilidades orçamentárias da ordem de R$ 70 bi e outras influências. O que autoriza afirma que nos primeiros lances de concessões, o novo presidente apenas reedita a dieta de alguns antecessores.
Visto isso, compreende-se a decisão de relegar os dirigentes oficiais, mas assentar-se com o emissário do grande bloco, Artur Lira, que se revelou eficiente na elaboração das pautas reivindicatórias. Nestas, além das pastas ministeriais, mas igualmente tentadoras, figuram companhias que administram o desenvolvimento dos vales São Francisco e Paranaíba, pouco faladas, mas nem por isso relegadas.
6 - Afora o malabarismo para conter os assanhamentos e fazer escolhas, Lula encontrou tempo para prometer algo que tem tudo para aguçar a curiosidade. Garantiu que novos ministérios serão criados (não confessa que é para alojar os amigos), sem que essa gentileza importe no aumento de gastos. Não é possível imaginar como obter tal façanha, porque só na formação de quadros administrativos diretos e autônomos já se exige mexer no cofre. Partir o bolo não é algo que se faça de graça.
7 - Estranheza não menor, durante as refregas para a conquista de cargos, foi o repentino desinteresse que os políticos guerreiros mostraram pelo Planejamento. Mas a causa percebeu-se logo, porque aquele passou a ser um ministério que se despe de maiores poderes, já que a criação de novas pastas concorre para esvaziá-lo de verbas e de poder político.
Devia ser diferente. Não é razoável admitir que acabe falido em seus objetivos fundamentais, que começam pelo ordenamento das políticas de governo, ajustando-as às disponibilidades orçamentárias e sugerindo prioridades. Enfim, as linhas de harmonia para a gestão no seu conjunto. Uma pasta desse vulto empobrece-se, o que não é bom para a organização do complexo das máquinas do Palácio do Planalto, se carente de ordenamento mínimo.
Pode ser que o Planejamento se esvazie ainda mais com Lula. Mas, certamente é uma obra não inventada por ele. De há muito vem perdendo sua importância, manda pouco, não decide, raramente resolve. Talvez, sentindo isso, certo dia Evaristo de Miranda, ironizou, dizendo que gostaria de trabalhar em uma área estatal de planejamento, porque ali você planeja o que não executa, e depois avalia o que não fez…