quarta-feira, 17 de julho de 2019

Um estranho no ninho


É duvidoso que o presidente Jair Bolsonaro tenha propósito de levar avante a indicação de um de seus filhos, Eduardo, para assumir a embaixada brasileira em Washington, até porque, pai zeloso, haverá de compreender que estaria lançando o membro de sua prole no mais complicado e perigoso ninho da política internacional, onde o litígio de altos interesses, mais que em qualquer outro lugar, exige couraça de crocodilo e sagacidade de felino, para repetir o que já disse um ministro indiano que ali atuou. Se é um cargo que não dispensa a indicação de diplomata ou político com suada experiência, para tanto basta lembrar que, se os Estados Unidos são o país de maiores poderes do mundo, sua capital é uma extensa teia nevrálgica, onde se operam coisas complicadas nas relações internacionais contemporâneas. Não por outra razão foram para lá, em nome dos interesses do Brasil, embaixadores do cabedal de Vasco Leitão, Roberto Campos e Moreira Salles. Não é lugar onde jogam principiantes; e o filho do presidente ainda tem de viver o suficiente para embates dessa envergadura. Terá tempo para aprender e saber que o domínio do inglês é muito, mas não é tudo.

Um aspecto que não pode escapar dessa linha de raciocínio é que vem se ampliando a tendência de o Brasil estar autorizado a participar menos discretamente de discussões sobre os negócios comerciais do globo. Como também das crises internacionais, que podem se revelar agressivas ou momentaneamente sutis, mas sempre com vastos cardápios onde jamais faltam sapos indigestos. Anfíbios longe de serem digeridos pelo paladar que o clã Bolsonaro verbaliza com desenvoltura; quanto mais em se tratando dessa geração recente. Para contrastar com o desejado embaixador, estamos num tempo da chamada “open diplomacy”, quando ela deixa de ser meramente bilateral para se tornar multinacional. Portanto, digna das mais altas complexidades.

Não é só isso que estaria a recomendar ao presidente poupar o filho de uma experiência da qual sairia com escassa chance de êxito. Ocorre, ainda, que o Congresso, onde as indicações são submetidas a rigorosa sabatina, tem primado por aproveitar ocasiões dessa natureza para mostrar o poder de veto do Legislativo, ao mesmo tempo em que cuida de precaver-se em relação a possíveis tropeços da diplomacia arquitetada pelo Executivo. Para tanto, nem hesita em criar constrangimentos para os indicados, sem embargo de sua expressão cultural e política.


Exemplos não falam. Getúlio Vargas desejou o grande Olegário Mariano para a embaixada em Lisboa, mas ele teve 24 votos favoráveis e 23 contrários. Só aceitou viajar porque o presidente o convenceu de que um voto também faz maioria. A mesma escassa diferença permitiu a José Aparecido de Oliveira representar o país em Portugal. Apenas três votos a mais do Senado permitiram a Itamar Franco ser embaixador em Roma. Sempre e apenas pequenas diferenças, só para constranger. Recusa mesmo só atingiu Ermírio de Morais, indicado em 1961 para a embaixada na Alemanha. Derrota com endereço certo: hostilizar o presidente Jânio.

A insistir em contemplar o filho, o presidente terá de se desviar de outro desafio, a acusação de nepotismo, e com possibilidade de abrir-se um impasse que baterá à porta do Supremo. Razão a mais para evitar o risco de novo embate com o Congresso, de onde a reforma da Previdência já está saindo vitoriosa, mas cheia de arranhões.

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Bagagens que comprometem


Não apenas um, mas vários e respeitados estudiosos da arte de proteção aos chefes de governo, consideram que é impossível armar um esquema de segurança de tal forma prefeito, que se permita considerar o protegido totalmente fora de perigo. Nem se excluem aqui os homens responsáveis pela integridade do presidente dos Estados Unidos, mesmo sendo ele alvo do mais caro e sofisticado esquema de proteção que se conhece. Os agentes geralmente, se honestos, confirmam que sempre há um detalhe para construir vulnerabilidades, como citam jornalistas americanos, entre eles Anton Bolder, ao estudar as circunstâncias em que ocorreram os atentados contra Kennedy e Reagan, para concluir que segurança absoluta só é possível no quarto de dormir. Mesmo assim dependendo de quem estiver ao lado...

O assunto certamente teria tudo para ser discutido, como consequência do recente flagrante de transporte de cocaína num aviação da comitiva do presidente Bolsonaro, que viajava para o Oriente. Provavelmente o tema não teve como prosperar, com um mínimo de seriedade, porque logo descambou para a galhofa, objeto de incontáveis piadas que povoaram a internet. Afora isso, estamos todos autorizados a indagar a quantos anda a segurança do presidente e de seus assessores. Sim, porque onde entram trinta quilos de cocaína, pelas mãos de alguém das Forças Armadas, sob os auspícios de um total descuido, poderia, sem dificuldades maiores - por que não? - entrar um petardo para explodir em pelo voo. São coisas possíveis não apenas na imaginação fértil dos filmes de James Bond.

Imagina-se a que ponto chegamos. De forma a se abrir espaço para planos terroristas, tendo governantes como alvo, e atribuídos a pessoas de sua convivência, integrantes do apoio técnico de suas comitivas. Ora, um indigitado sargento, levando para a Europa o pó maldito, provou que por perto é que o perigo ronda. Quanto mais próximo, maior é o risco, o que, aliás, o próprio Bolsonaro experimentou, ao ser esfaqueado em via pública por alguém que simulava aplaudi-lo.


Não são de agora os perigos. E interessante, são riscos esquecidos, tanto quanto mais frequentes. Ninguém andou mais próximo do príncipe de Sarajevo, quando foi atacado, e com seu sangue precipitar a Primeira Guerra Mundial. Os próprios agentes de segurança, sem embargo de serem rigorosamente arregimentados, mataram Barthou, na França, e Indira Gandhi, na Índia. Atentasse para as proximidades, o primeiro-ministro judeu Itzhak Rabin não teria perdido a vida. Ou outro imprudente, o nosso Prudente de Moraes, que só não morreu porque seu ministro Machado Guimarães pôs-se à frente.

Não se exagere em afirmar que Bolsonaro deva dispensar seus protetores, mas é desejável que cuide de saber quais as cargas indesejáveis que viajam ao seu lado, e cobrar medidas preventivas adequadas. Mesmo para serem evitados constrangimentos diplomáticos, como o que acaba de ocorrer.

Nem sempre o governante preza o suficiente para admitir rigidez nas medidas que se destinam a preservá-lo. Costuma acreditar que elas podem torná-lo impopular. Ocorre que a segurança de sua pessoa vai além dela. Trata-se da proteção do próprio estado, que mergulha em crise quando o governante é agredido ou morto. Convém, por isso, que tais medidas sejam aplicadas com rigor. O que nem deve dispensar o auxílio de cães farejadores para saber o que vai nas mochilas da tripulação palaciana. Era o que faltava.

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Classe média volta à rua

Vistas, no domingo à noite, pela televisão, as imagens dos que foram às ruas para manifestar apoio ao governo Bolsonaro, particularmente ao seu ministro Sérgio Moro, uma análise, ainda que sem profundidade, deixa claro que a classe média brasileira continua inspirando e gerando movimentos políticos; e este é um dado que os poderes do país devem considerar, ainda que momentaneamente fortalecidos. A manifestação permitiu lembrar mobilizações recentes ou pretéritas, para confirmar que a massa mediana da população recorre a elas, para condenar ou aplaudir. Tem suas variáveis.

Ela mesma foi para o asfalto abrindo caminho para o movimento militar de 1964, logo depois traída com a ditadura, que não desejava. Decepcionada, contra ela se voltou, anos depois, para protestar contra torturas e pedir que fossem anistiados presos políticos ou exilados. Não diferentemente desse segmento, voltaria a garantir as ruas lotadas na luta pelas Diretas Já; depois pela Constituinte, na segunda metade da década de 1980.

A classe média, com aquele mesmo perfil de domingo, faria acontecer o impeachment de dois presidentes da República (eleitos diretamente, um da direita, outro da esquerda). E, no ano passado, ela mesma não se satisfez mais em ir à rua, mas foi à urna para eleger um presidente de direita. Agora, reaparece para confirmar a direita no poder, defendendo algumas bandeiras conjunturais que lhe são importantes. Enfim, é a classe média fazendo política no Brasil.

Manifestações desse tipo e com essa conduta só podemos saber como começam, mas não imaginamos como acabam. Em passado não muito distante, 2013, várias conseguiram levaram multidões às ruas do Brasil, iniciadas em São Paulo por estudantes, devido a um aumento de tarifas no transporte urbano. Mesmo sem uma conduta política clara, tinham no cerne o desejo de protestar contra um serviço público insuficiente. As autoridades reagiram no momento emergente, e a presidente Dilma tentou construir uma agenda de medidas para demonstrar boa vontade. Uma solução emergencial, antes que as coisas se complicassem.

Às vezes, esses movimentos refluem por outros motivos, pela ausência de lideranças ou pela natureza difusa dos pleitos populares, como o que haveria de levar ao impeachment da presidente em 2015, com protestos que ocorreram em diversas regiões do Brasil. Tal como agora, tendo como principal alvo a Operação Lava Jato. E a classe média, mostrando a cara, precisa ser levada em contra, independentemente de a elite pensante estar de acordo com ela.

O governo Bolsonaro, mesmo tendo entrado na semana com o reforço do asfalto, não se isenta de estar atento. Ao completar cem dias no poder já demonstrou alguma potencialidade para gerar movimentos reivindicatórios. Bastou algumas declarações desastradas do ministro da Educação, apontando contingenciamentos no orçamento, para que se provocasse mobilização geral de norte a sul do país, em defesa das universidades públicas. E, na esteira dessa reivindicação, sobrou espaço até para se pedir a libertação do ex-presidente Lula.


Contra ou a favor, os movimentos inspirados na classe média têm em comum a preocupação usar o verde e o amarelo para reclamar probidade nas gestões de governo; nem chegam a priorizar carestia, o caos na saúde, a educação em crise, porque esses são problemas que doem mais na pele dos mais pobres, os que vivem um pouco mais abaixo.