terça-feira, 29 de dezembro de 2020

 


Entre o real e a esperança


(( Wilson Cid hoje no ”Jornal do Brasil” ))


Na ânsia de esquecer coisas e fatos desagradáveis, que tropeçaram a vida brasileira neste quase defunto 2020, muitas pessoas, parece, alimentam a boa vontade de acha que basta virar a último dia do ano e rasgar o calendário antigo, para que tudo se renove; e estaremos desvencilhados das maldades, que não foram poucas. Bastaria demitir o dezembro funesto pelo janeiro promissor. Mas não é bem assim. Há males que perseveram - lamentável reconhecer – e ganham musculatura mais que suficiente para se projetarem, com vigor, sobre o nascente 2021. O que fazer?


Na contramão do melhor dos otimismos, o que se tem, no cenário, é que alguns dos grandes males vividos avançam sobre o novo ano, a começar por um que, bem considerado, pode ser padrasto cruel de algumas entre as muitas infelicidades que atormentam o país. Falo sobre certo desencanto nacional em relação aos três poderes constituídos - Executivo, Legislativo, Judiciário – depois que se rebelaram contra o princípio elementar da lição de Montesquieu, porque aqui, sendo independentes, os poderes deixaram de ser harmoniosos. Aquela pretendida independência passou a significar um mandando mais que os outros dois; nem se cuidou da harmonia, porque cada qual se sente no direito de invadir competências que não lhe cabem. Na desordem institucionalizada, algumas vezes nem se cuidou de preservar regras mínimas de respeito mútuo. Já nem se diria de reverência educada.


Esse desencontro, seguidas vezes observado na vida pública, haveria de alcançar o ápice, ainda nestas horas recentes, com o conflito de interpretação das responsabilidades ante a tragédia da Covid 19, que vai entrar, soberana e desafiadora, no janeiro indefeso. É indisfarçável: com 200 mil mortes, choradas pelo Brasil a fora, os titulares dos poderes viveram empenhados em atribuir a outros o carregamento de culpas que, pesadas com algum critério, sem paixões, na verdade a todos pertencem, mesmo que em cotas diferentes. Contrições cabem aos três palácios, no legislar, no julgar ou no executar medidas adequadas e oportunas para que o mal, mesmo não podendo ser vencido, fosse, ao menos, minimizado.


O país se sente, portanto, no direito de viver o desassossego ao dar de frente com os homens que administram sua caminhada, sem ajudá-lo a não padecer tanto. Em acréscimo perfeitamente dispensável, são até capazes de gerar idiossincrasias nas relações institucionais.


Nada mais temerário, no alvorecer do ano que vai chegar repleto de desafios, já sob a despedida de um dezembro entristecido e desmotivado para comemorações. E cercado de dúvidas, às quais cabe acrescentar divergências técnicas e políticas, entre pessoas e instituições científicas, sobre a real eficácia de uma vacina, que os brasileiros erigiram como principal expectativa para as primeiras semanas de 2021. Por sobre isso, insistem incertezas sobre outras condutas da política preventiva, onde na imensa proveta de dúvidas o presidente Bolsonaro tem contribuído, ora com atitudes negacionistas, ora estimulando expectativas alimentadas pela admiração que tem por receituários não reconhecidos nos setores responsáveis.


Em meio a um pandemônio de opiniões e atos desencontrados, o pobre brasileiro já não sabe mais a quem confiar suas hesitações. O ministro indica um rumo, o presidente vai em sentido contrário; os governadores se desentendem, quando seria fundamental que se entendessem, mas estão assentados em cima de questões políticas; os produtores de vacina disputa. Tomá-la ou não tomá-la?, eis a questão shakespeariana que a pandemia, em acréscimo, quer nos empurrar no ano que chega.


Visto sob outro vértice, 2021 ainda acena com os respingos a que a nação estará sujeita, no acirramento de disputas políticas; porque já agora, sem mais tardar, abre-se a temporada das articulações para a sucessão presidencial. Por que preocupar-se logo com isso? Porque, aproximando-se a disputa, os interesses, nem sempre republicanos, contemplados ou não, muitas vezes colocam-se à revelia das questões nacionais, que passam a ceder lugar e prioridades às acomodações no processo eleitoral. Sejam contra ou a favor do governo; tenha ele boas ou a intenções. As decisões passam, então, a ser focadas com binóculo voltado para 2022, mas estrábico quanto às aflições do dia a dia da população.


Uma ressalva, contudo, permite abrir espaço a alguma animação, para que as coisas, ditas de jeito tenebroso, não levem a uma descrença total, que acaba sendo tão nefasta como os próprios problemas. Se não seria honesto escamotear dificuldades visíveis e os restritos caminhos para encontrar soluções; se a quadra em que vivemos é desafiadora, e é realmente, nem por isso temos de desconsiderar a esperança pelo melhor, até porque ela é inerente à natureza humana. Por mais que esse sentimento saia combalido no epílogo de 2020, ele existe e persiste, meio misterioso, o que, no passado, levou Otto Lara Resende a defini-lo como “estranho sentimento esse, que morde, em silêncio, os corações distraídos”.

Assim seja.




terça-feira, 22 de dezembro de 2020

 



Senado x Itamaraty



(( Wilson Cid hoje no ”Jornal do Brasil”))



O Senado Federal sempre teve seus expedientes, quando o objetivo foi mostrar ao presidente da República e ao chanceler da hora, que é preciso aperfeiçoar o diálogo entre os poderes. Há uma gama de modelos de recados sutis; às vezes, nem tanto. E, quando quer sinalizar, muitas vezes lança mão de comportamento insólito, como, na semana passada, ao crucificar a carreira de um diplomata, Fábio Manzano, que, ao ser sabatinado, recusou-se a responder a uma questão fora de sua alçada funcional, à margem das funções que desejava servir junto às Nações Unidas. Com o silêncio da bancada governista, e pela voz de uma senadora, pretendeu-se, naquele candidato, apenas arder as costas do ministro das Relações Exteriores. Na verdade, desde a chegada da respectiva mensagem com a indicação, cuidou-se menos dos encargos em Genebra e mais da oportunidade de uma investida contra o governo.


Quando surgem impasses dessa natureza, o risco é um certo desassossego em relação ao país ou à organização internacional onde se pretende conferir a representação. Pode ser que, à primeira vista, a provocação não tenha maior importância, mas é impossível desconhecer que decisões assim tendem a contribuir para situações externas dificultosas. A observação é ainda mais procedente, se consideramos a fase que estamos vivendo com o Exterior, que tanto nos questiona. O caso da frustrada indicação de um funcionário de carreira em função diplomática, não tem substância para gerar impasse, nem dificuldades, mas pode contribuir para se tornar acescente, tende a azedar diálogos, desnecessariamente.



Desaprovações desse tipo, criadas apenas para subir a rampa do Itamaraty, acabam por sacrificar diplomatas preparados, distantes de litígios que discrepam de uma formação profissional, que, bem entendida, deve apenas servir aos interesses nacionais junto aos povos. Em outro viés, os desencontros políticos entre o Congresso e o ministro das Relações Exteriores podem se processar por outros instrumentos, sem maiores problemas.


É antiga, oportuno lembrar, a costumeira interferência política no tratamento de questões diplomáticas, ao parar no plenário do Senado. Caso, não muito distante, ocorreu em 2015, no governo Dilma, quando senadores oposicionistas desaprovaram o credenciamento de Guilherme Patriota para representar o Brasil junto à Organização dos Estados Americanos, sem que pesasse sua qualificação para assumir os encargos em Washington.


Ocorre que, recusada uma indicação dessa natureza, a nação ou a instituição a que se pretendeu a representação tem todo o direito de se julgar desprestigiada, pois geralmente são consultadas, com antecedência, sobre possível inconveniência.


Nesse e em outros episódios semelhantes, sempre é desejável que se considerem os interesses do país junto às nações amigas e aos conselhos em que se faz necessária a nossa participação. Não faltam outras motivações, mais adequadas, para que o Senado questione o presidente e seu ministro; o suficiente para não ter de aproveitar ocasiões em que cabe avaliar apenas a qualidade dos serviços da representação brasileira no Exterior. Assim sabendo, o plenário sabatinador faria bem se elegesse outros instrumentos para acossar o governo.


Não há dificuldade em localizar casos de constrangimento anteriores, dentro e fora do Brasil, suficientes para justificar a preocupação que aqui se levanta. O principal, por causa da repercussão, levou a vivenciar situação delicada em Bonn. Em 1961, o Senado recusou mensagem do presidente Jânio Quadros indicando Ermírio de Morais para embaixador na Alemanha, onde o empresário já havia construído um clima de expectativas para bons negócios comerciais.


Bem antes, para mostrar que é antiga a ranhetice senatorial, Olegário Mariano foi aprovado por apenas um voto – 24 a 23, para a embaixada em Lisboa. Só aceitou, a contragosto, assumir o cargo, por insistência do presidente Vargas: ”a Constituição fala em maioria: um voto é maioria, e pronto ”. O mesmo constrangimento, anos depois, enfrentaram Itamar Franco e José Aparecido, embaixadores em Roma e Lisboa, aceitos com apertada aprovação. Itamar teve, no Senado, 29 votos contra 25. Aparecido viajaria graças a apenas um voto.


Pode parecer que não, mas essa quase tradição de aceitar, por maioria irrisória, indicações no campo da diplomacia, afeta o prestígio do representante acreditado. É um detalhe a reclamar maior atenção dos senadores, quando cedem a influências oposicionistas, ou simplesmente partidárias, no encaminhamento de questões vinculadas às relações do Brasil com o resto do mundo.




terça-feira, 15 de dezembro de 2020

 



O mundo contra nós


(( Wilson Cid hoje no “Jornal do Brasil”))


É evidente que prospera a hostilidade dos meios ambientalistas internacionais em relação ao Brasil, sentimento que tem se ampliado à medida em que constatam e deploram nossos fracassos nesse campo. Ainda agora, acusados de insuficientes iniciativas protecionistas do clima, emissores de gás estufa, acabamos de amargar a exclusão do clube dos 70 países empenhados em projetar ações não degradáveis nas próximas quatro décadas. Na linha das críticas mais ferozes nem têm estado ausentes certos governos que andaram descuidados, tanto como temos sido nós. Viram as costas para as tragédias ambientais que também colecionam. Diga-se, contudo, que os tratamentos diferenciados não devem ser suficientes para que nos sintamos perdoados por omissões praticadas.


Há que fazer alguma coisa; muita coisa. Talvez começando por admitir que as ações e proposições nessa área vêm pecando, pelo que poderíamos chamar de “desconcerto” das iniciativas praticadas, muitas vezes, em campos isolados. É o que se descobre, a título de argumentação, no papel desempenhado pelo Congresso, onde conflitam projetos e discursos que buscam a preservação dos recursos ambientais, tanto nos aspectos jurídicos, como na visão política e científica. Atropelam-se, de tal forma, que acabam na mesma vala comum da inviabilidade. Não tem sido possível, salvo juízo diferente dos parlamentares, uma certa harmonia no encaminhamento de iniciativas para as questões atinentes.


Caberia, pois, considerada a reconhecida relevância, promover alguma disciplina na discussão dos numerosos projetos que buscam a mesma causa, mas dela acabam distanciados. Nada mais adequado e oportuno, para que se dê ao Brasil um norte legislativo na defesa dos bens naturais tão degradados; desprotegidos e ofendidos, mas ainda imensos neste país generosamente contemplado pela natureza.


Outro ponto, de importância não inferior, diria respeito à coordenação de iniciativas entre os poderes Legislativo e Executivo, que, não raro, têm caminhado em rotas diferentes, mesmo quando pregoam a intenção de chegar a um ponto comum. Porque não há como divergir na rota de objetivo tão superior. Mais recentemente, para buscar exemplos ainda calcinantes, vimos a destruição de imensas áreas do Pantanal e da floresta Amazônica, e sobre eles raramente foi possível identificar visões e discursos coincidentes entre o Congresso e o Planalto. Pelo contrário, perde-se tempo na discussão de desencontrados percentuais da destruição, ou na troca de responsabilidades difusas. E o fogo ardendo.


A ausência de certa unidade propositiva, quero crer, acentua a indisposição da opinião pública internacional em relação ao Brasil, que, ao contrário, prefere ter olhares clementes com a devastação com que os incêndios se alastram pelas florestas dos Estados Unidos, da Austrália e em pontos isolados da África.


Mas, mesmo não contando com isonomia internacional na distribuição de culpas, certo é que temos pecados ambientais. Devemos confessá-los, com humildade, e dar garantias de sincero esforço para alcançar a remissão.


Falou-se do entrosamento entre os poderes nessa questão essencial. Longe de ser o único desafio a encarar, certamente é o primeiro, porque, a partir daí, poderemos reduzir a carga de hostilidades que contra nós orquestra-se em quase todas as partes do mundo.


Há que se tomar em consideração outro detalhe, que não dispensa preocupação. É a escasso interesse da opinião pública frente ao intenso noticiário sobre os acidentes que agridem a natureza. As pessoas, quando muito, limitam sua preocupação em breves lamentações. Falta, por sobre tudo, maior envolvimento da sociedade nessa questão; envolvimento, digamos, com base em conteúdo didático. É preciso ensinar ao homem da rua, de que geração for, os inevitáveis riscos, menos do presente que do futuro, se hoje não despertarmos da sonolência que temos vivido em relação à escalada da degradação. Para informar, por exemplo, que não é mero devaneio dos cientistas, quando advertem para a gravidade da ascensão de dois graus Celsius sobre a vida, a começa pelos seres que vivem nos oceanos, ameaçados de despovoamento. Se não explicarmos, a tendência é conferir pouco caso ao caos que ameaça.


Demais, se nos permite a boa vontade dos indigenistas, e das organizações que saem em defesa das populações embrenhadas, cabe acentuar que é nas aldeias que devemos construir os primeiros e mais rigorosos defensores das riquezas florestais, da fauna e dos cursos de água doce; até porque são elas as beneficiárias diretas. Devem estar vigilantes nas invasões e atentar para os próprios índios, quando estes ajudam a agredir os bens naturais. Há uma tendência a expor as comunidades indígenas apenas como vítimas, quando, na verdade, elas significam muito mais. São guardiães.


No alvorecer de um novo ano, vários desafios nos aguardam. Um deles é tentar alcançar mentalidade mais racional, menos romântica, sobre as riquezas naturais que cercam o país. Riquezas que, jamais deixando de ser nossas, fazem bem ao mundo inteiro.


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Contribuição feminina


A futura administração municipal, para confirmar o que havia prometido a prefeita eleita, vai distribuir, paritariamente, os cargos do primeiro escalão, de forma que, pela primeira vez, as mulheres terão efetiva participação na condução dos negócios da prefeitura. Não mais apenas chamadas a ocupar alguns e poucos cargos.


O fato tem significado objetivo, no momento em que acabamos de sair de um pleito em que o colégio eleitoral ampliou, mesmo que ainda distante do ideal, o papel feminino na política. Aqui mesmo, além do fato de se escolher, pela primeira vez, uma mulher para assumir o executivo municipal, vale lembrar que na onda renovadora elegeram-se quatro representantes da população feminina para integrar a Câmara de vereadores. Poder-se-ia dizer que são apenas quatro, onde há assento para 19. Ainda assim, são quatro. Número significativo, considerando-se que, em 160 anos de história administrativa, foram apenas dez as vereadoras no exercício do mandato.


Outro dado interessante, que já não é mais novidade, mas vale ser lembrado, é que, a partir de janeiro, 264 municípios brasileiros terão, pela primeira vez, mulheres em suas prefeituras. Dentre elas, 33% são negras, o que autoriza acrescentar ao mapa o elemento inclusivo, muito bem-vindo.


Não se trata, contudo, de mera ascensão ou acidente político. Espera-se muito delas. A expectativa é grande.





terça-feira, 8 de dezembro de 2020

 


Vice em tempo de intrigas



(( Wilson Cid, hoje, no “Jornal do Brasil” ))



O vice-presidente Hamilton Mourão manifestava, em dias da semana passada, certo ressentimento com a ação dos intrigantes palacianos, francamente empenhados em esfriar suas relações institucionais com Bolsonaro, utilizando-se, para tanto, de um ardil comum, a propagação de falsas interpretações sobre o que, realmente, o vice fez ou andou dizendo, no exercício do cargo. A queixa sinaliza procedência, mas o general não pode afirmar que tenha trazido novidade para os salões da política, porque as intrigas são parte da vida palaciana, prosperam atrás das cortinas e penetram as gavetas; e tanto empobrecem como enricam em sua órbita. Onde houver poder a disputar e um chefe a concedê-lo, sempre estarão agindo os interessados em tirar proveiro de dissenções. Constituindo-se uma categoria de gente hábil nas sutilezas, por que haveria de faltar na estreita ligação do Palácio com o Jaburu?. No trânsito entre as duas sedes oficiais sempre houve espaço suficiente para se trabalhar a desestruturação de relações.


Mourão tem, portanto, direito de lamentar as armações, mas não deve achar que se tornou vítima original de um esquema vicioso, que, não é de hoje, frequenta a política, com atores que souberam desempenhar diferentes tragédias nas relações humanas. São os que atravessam a História digladiando para dominar, intramuros, sem alarde, simulando agrados e subserviências. Coisa tão antiga, era objeto de cochichos de vizires aos ouvidos dos faraós, como também haveria de tumultuar a corte do Rei Sol e de todos os nobres salões do mundo.


O vice atual tem a seu desfavor o dever de, muitas vezes, com contorcionismos, evitar que as ideias que o diferenciam do superior evoluam para produzir maiores dissabores. E não está, entre os exercícios mais suaves, concordar com tudo que diz o presidente, não raro intempestivo na palavra e nos gestos. Pois é a hora em que trabalham os artesãos encarregados de fazer com que interpretações diversas ecoem nos gabinetes na versão de transgressão e deslealdade. E, convenhamos, a intenção maldosa, no caso em tela, pode se desenvolver até com alguma facilidade, pelo estilo impetuoso do presidente, de quem já se disse que não perde oportunidade de perder oportunidade.


Daí ficarem expostos desencontros em situações politicamente delicadas, que colocam o vice em opinião diversa. Não foi diferente o que se deu no caso, que a todos pareceu imprudente, da torcida da presidência brasileira pela vitória do derrotado Donald Trump, nos Estados Unidos. Igualmente, desacordo houve, como não poderia faltar, em relação às vacinas para o combate ao coronavírus, momentoso tema em que Bolsonaro tem ideias que conflitam com a maioria.


Discordar não ofende, quando se adotam termos civilizados; mas nem assim faltam prestimosos assessores que sabem como distorcer ou sonegar, exagerar ou minimizar, na tentativa de manter distantes, com poucas luzes e sem calor, as relações entre o titular e seu eventual substituto. Mourão ainda tem se dado ao trabalho de atenuar a repercussão dos entendimentos contrários, submetendo-se ao que chama de “disciplina intelectual”, sem dizer exatamente o que isso significa.


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Interessante o capricho da História em não permitir que se apaguem numeráveis episódios que conduzem ao distanciamento entre os governantes e seus imediatos; separados, muitas vezes, apenas por alimentarem, honestamente, pontos de vista contrários. Sem que faltem, em muitas outras ocasiões, as intrigas que chegam a subsidiar perigosas conspirações. Porém, se tiver disposição para aceitar os transtornos de muitos que o antecederam nesses ardis, Mourão também terá, pelo menos, o consolo de saber que diferenças entre presidentes e vice podem resultar salutares, em benefício do governo a que servem. Mesmo quando militares, se marcham em passos diferentes, quando entram na vida civil sem descalçar os coturnos que trouxeram da caserna. É natural que capitão e general, em algum momento, adotem caminhadas diferentes.


Anotam-se convivências de governo que, hoje, como em qualquer tempo, acabam perdendo a graça e aquela fraternidade fácil dos primeiros dias de mandato. O tempo cuida de montar dificuldades, que se acentuavam, ainda mais, nos tempos em que o presidente e o vice elegiam-se em cédulas solteiras; um independia do outro. Conflitos quase inevitáveis, além de claras conspirações de gabinetes, que já amanheceram com a República, ao colocar Deodoro e Floriano em campos opostos. Algo que se reeditaria, com ingredientes similares, entre Vargas, do PTB, e seu vice, Cafe Filho, da UDN. Animosidades visíveis, que vinham das cédulas separadas.

Prudente de Morais achava que seu vice, Manuel Vitorino, era um maluco integral, e passou metade do mandato mal cumprimentando-o. Hermes da Fonseca, presidente em 1910, diria que o melhor de seu vice, Venceslau Brás, é que ele nunca aparecia para trabalhar... Das décadas mais recentes, sobreviventes somos os que vimos João Figueiredo, em público, de cara trunfada para Aureliano Chaves, depois de serem atropelados na política de distensão pós-ditadura. Collor e Itamar começaram e terminaram contrariados, mais ou menos cordiais.


A bem da verdade, em nenhuma passagem republicana teriam faltado os palacianos dedicados a ampliar os efeitos das animosidades. Portanto, o general Hamilton Mourão não tem como se considerar solitário navegante em águas traiçoeiras. Faz parte do seu show.



terça-feira, 1 de dezembro de 2020

 


Os partidos estão exaustos


(( Wilson Cid hoje no ”Jornal do Brasil” ))


Sem a pressa e os atropelos sempre comuns, quando se fecham as urnas, melhor é aguardar a melhor interpretação dos cientistas políticos, de forma a termos avaliação objetiva do papel dos partidos que temos hoje, mesmo depois de a acuidade dos estudiosos ter conseguido arrancar, da recente eleição, suficientes dados e consequências, e esperar que tais organizações evoluam para servir à sociedade e à História. Mas talvez seja possível já admitir alguma coisa, antecipando certas conclusões, com base no que evidenciaram as tendências dos eleitores. Parece ter se manifestado claro, sem dúvida, que esgotaram-se em si mesmas, ainda que sobreviventes ou alcançando algum progresso do domingo eleitoral. Estão exaustas no exercício de antigos conflitos internos, sempre com indisposição para conferir vez e oportunidade a questões nacionais pendentes.


Ocupados com interesses imediatos ou envolvidos em disputas domésticas, os partidos têm preferido passar à margem dos graves impasses que rodeiam a sociedade; recusam-se a discuti-los, nem formular alternativas. Vão encolhendo em si mesmos, de ano para ano. Jejunos de ideais e desempenho programático, ao contrário, mostram-se, cada vez mais, entediados frente a questões essenciais. E, muitas vezes, ainda encontram tempo para divagar, superficialmente, em detalhes ideológicos, que não constituem prioridade na pauta dos atuais interesses da gestão municipal. Ainda agora, na segunda votação que se processou, muitos consumiram tempo para pedir aos eleitores (como se fosse algo de grave relevância) um posicionamento entre direita e esquerda; entre socialismo e capitalismo, mesmo sabendo que são opções que não podem resolver problemas momentâneos dos grandes centros urbanos; problemas que nunca deixam de acumular desafios.


Pois, esvaziados em sua essência, vários quiseram deturpar o verdadeiro e salutar objeto do segundo turno, a definição dos prefeitos onde estão os principais colégios eleitorais, e conferir maioria incontestável a quem vai assumir o executivo municipal. Ou trabalharam para que o pleito de domingo ficasse reduzido apenas a um papel plebiscitário. O veto no lugar do veto. Não propriamente votar a favor de alguém, mas contra um outro alguém. Eis outra peça da deturpação.


Certo conteúdo ideológico, reconheça-se, haverá de merecer espaço em eleições gerais, como a de 2022; não nas municipais, como vimos. Agora, a tarefa era cuidar de interesses administrativos das comunidades. Nada mais que isso, porque elas não podem, como nunca puderam, por si sós, alterar as estruturas políticas, econômicas e sociais de um país inteiro. Para missão tão gigantesca, não têm como pretender.


Alinham-se, aqui, nada mais que divagações. Será justo esperar, como se afirmou, a palavra dos cientistas políticos, porque, entre eles, temos vários e ilustres, que podem avaliar o futuro desses partidos, o que deles é justo e oportuno esperar, considerada a responsabilidade que têm na construção da democracia representativa.


Não parece haver dúvida, contudo, quanto a uma evidência que logo se revela mais clara aos especialistas, e para isso talvez até possam dispensar maiores aprofundamentos. Trata-se da certeza de que na proliferação indiscriminada, essas legendas, que pouco ou nada representam, em sua maioria não saberiam explicar a que vieram. Os nanicos invisíveis, ressurgem nas enxurradas de uma campanha eleitoral, para logo se hibernarem, esperando os bons tempos da eleição seguinte. Confundem os eleitores e, não raro, prestam-se a manobras ilícitas, negociam com os concorrentes poderosos a venda de seus minutos de propaganda gratuita. As inserções transformam-se em moeda de troca.


Outra coisa que os analistas não ignoram, mas confirmaram neste mês: entre os partidos que acabam de entrar e sair da disputa, nada menos de quinze nem lograram avançar além dos 2% dos votos nacionais. Algo ilustrativo para recomendar que se extingam ou, na tábua de salvação da sobrevivência, fundam-se.


Não é salutar para a democracia tolerar sobrevida a legendas formadas e enlatadas como presuntada, sem programas definidos, muito menos desejosos de dialogar com a sociedade.


A eleição, principalmente no torneio de domingo, serviu para confirmar o que se sabe, não é de hoje: o Brasil precisa mexer na ordem partidária, tão escassa de legitimidade, repleta de artificialidades, em muitos casos apenas a serviço de seus chefes, nos quais permanece encarnada a síndrome do coronelismo da Velha República.