terça-feira, 8 de dezembro de 2020

 


Vice em tempo de intrigas



(( Wilson Cid, hoje, no “Jornal do Brasil” ))



O vice-presidente Hamilton Mourão manifestava, em dias da semana passada, certo ressentimento com a ação dos intrigantes palacianos, francamente empenhados em esfriar suas relações institucionais com Bolsonaro, utilizando-se, para tanto, de um ardil comum, a propagação de falsas interpretações sobre o que, realmente, o vice fez ou andou dizendo, no exercício do cargo. A queixa sinaliza procedência, mas o general não pode afirmar que tenha trazido novidade para os salões da política, porque as intrigas são parte da vida palaciana, prosperam atrás das cortinas e penetram as gavetas; e tanto empobrecem como enricam em sua órbita. Onde houver poder a disputar e um chefe a concedê-lo, sempre estarão agindo os interessados em tirar proveiro de dissenções. Constituindo-se uma categoria de gente hábil nas sutilezas, por que haveria de faltar na estreita ligação do Palácio com o Jaburu?. No trânsito entre as duas sedes oficiais sempre houve espaço suficiente para se trabalhar a desestruturação de relações.


Mourão tem, portanto, direito de lamentar as armações, mas não deve achar que se tornou vítima original de um esquema vicioso, que, não é de hoje, frequenta a política, com atores que souberam desempenhar diferentes tragédias nas relações humanas. São os que atravessam a História digladiando para dominar, intramuros, sem alarde, simulando agrados e subserviências. Coisa tão antiga, era objeto de cochichos de vizires aos ouvidos dos faraós, como também haveria de tumultuar a corte do Rei Sol e de todos os nobres salões do mundo.


O vice atual tem a seu desfavor o dever de, muitas vezes, com contorcionismos, evitar que as ideias que o diferenciam do superior evoluam para produzir maiores dissabores. E não está, entre os exercícios mais suaves, concordar com tudo que diz o presidente, não raro intempestivo na palavra e nos gestos. Pois é a hora em que trabalham os artesãos encarregados de fazer com que interpretações diversas ecoem nos gabinetes na versão de transgressão e deslealdade. E, convenhamos, a intenção maldosa, no caso em tela, pode se desenvolver até com alguma facilidade, pelo estilo impetuoso do presidente, de quem já se disse que não perde oportunidade de perder oportunidade.


Daí ficarem expostos desencontros em situações politicamente delicadas, que colocam o vice em opinião diversa. Não foi diferente o que se deu no caso, que a todos pareceu imprudente, da torcida da presidência brasileira pela vitória do derrotado Donald Trump, nos Estados Unidos. Igualmente, desacordo houve, como não poderia faltar, em relação às vacinas para o combate ao coronavírus, momentoso tema em que Bolsonaro tem ideias que conflitam com a maioria.


Discordar não ofende, quando se adotam termos civilizados; mas nem assim faltam prestimosos assessores que sabem como distorcer ou sonegar, exagerar ou minimizar, na tentativa de manter distantes, com poucas luzes e sem calor, as relações entre o titular e seu eventual substituto. Mourão ainda tem se dado ao trabalho de atenuar a repercussão dos entendimentos contrários, submetendo-se ao que chama de “disciplina intelectual”, sem dizer exatamente o que isso significa.


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Interessante o capricho da História em não permitir que se apaguem numeráveis episódios que conduzem ao distanciamento entre os governantes e seus imediatos; separados, muitas vezes, apenas por alimentarem, honestamente, pontos de vista contrários. Sem que faltem, em muitas outras ocasiões, as intrigas que chegam a subsidiar perigosas conspirações. Porém, se tiver disposição para aceitar os transtornos de muitos que o antecederam nesses ardis, Mourão também terá, pelo menos, o consolo de saber que diferenças entre presidentes e vice podem resultar salutares, em benefício do governo a que servem. Mesmo quando militares, se marcham em passos diferentes, quando entram na vida civil sem descalçar os coturnos que trouxeram da caserna. É natural que capitão e general, em algum momento, adotem caminhadas diferentes.


Anotam-se convivências de governo que, hoje, como em qualquer tempo, acabam perdendo a graça e aquela fraternidade fácil dos primeiros dias de mandato. O tempo cuida de montar dificuldades, que se acentuavam, ainda mais, nos tempos em que o presidente e o vice elegiam-se em cédulas solteiras; um independia do outro. Conflitos quase inevitáveis, além de claras conspirações de gabinetes, que já amanheceram com a República, ao colocar Deodoro e Floriano em campos opostos. Algo que se reeditaria, com ingredientes similares, entre Vargas, do PTB, e seu vice, Cafe Filho, da UDN. Animosidades visíveis, que vinham das cédulas separadas.

Prudente de Morais achava que seu vice, Manuel Vitorino, era um maluco integral, e passou metade do mandato mal cumprimentando-o. Hermes da Fonseca, presidente em 1910, diria que o melhor de seu vice, Venceslau Brás, é que ele nunca aparecia para trabalhar... Das décadas mais recentes, sobreviventes somos os que vimos João Figueiredo, em público, de cara trunfada para Aureliano Chaves, depois de serem atropelados na política de distensão pós-ditadura. Collor e Itamar começaram e terminaram contrariados, mais ou menos cordiais.


A bem da verdade, em nenhuma passagem republicana teriam faltado os palacianos dedicados a ampliar os efeitos das animosidades. Portanto, o general Hamilton Mourão não tem como se considerar solitário navegante em águas traiçoeiras. Faz parte do seu show.



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