(( Wilson Cid, hoje, no ”Jornal do Brasil” ))
Culpas são de muitos
Antes de tudo, por primeiro, é preciso admitir, sem qualquer tentativa de escoimar a realidade dos fatos, que o país encontra-se mergulhado, quase asfixiado, em crise de origem multifacetada, onde os responsáveis são menos ou mais responsáveis, mas todos funestamente envolvidos. Reconhecer a adversidade do momento, em toda a sua extensão, e saber que ela pode evoluir para um quadro caótico. Portanto, confessar que chegamos ao ponto de viver num país enfermo, social, politica e economicamente, seria o primeiro gesto dos poderes constituídos, se a intenção é contê-la nessa perigosa progressão a que temos assistindo. Aceitar, sem maquiagens e enganação, mas humildade, que estamos diante de um grave quadro de incertezas, como raramente temos visto nos últimos tempos.
É fácil perceber que a crise entrou pelos polos da população, tão contagiosa e virulenta, como a Covid 19, associadas nessa caminhada longa que infesta o Brasil nas suas entranhas. Como e até quando o povo terá oxigênio para suportá-la? É a pergunta que cala.
Dado esse primeiro passo, caberia aos grandes responsáveis ensaiar, como segunda obrigação, uma ampla e conjunta confissão das fragilidades que foram permitidas nas instituições; e como tentar corrigi-las, o quanto antes. Ora, se os três poderes constituídos têm sua mea-culpa para trazer ao confessionário da nação; pecados, atos e omissões a penitenciar, fica mais fácil a expiação, porque, quando todos têm pecados, capitais ou veniais, os castigos serão distribuídos ou compungidos pelo poder da verdade revelada. Ou não é assim que sempre foi?
Depois de reconhecer e confessar, viria o terceiro procedimento, decorrente dos dois anteriores. É tentar colocar a casa em ordem, certamente não tão rápido como se desejaria, tal o volume das dificuldades; mas começando por transferir para hora menos inadequada a luta em torno da sucessão presidencial. O momento, tenso e acalorado, é de todo inoportuno, porque no cenário de disputas que se processam, as questões de real interesse, como a crise que infesta a vida dos brasileiros, ficam relegadas, sufocadas sob os efeitos da política litigante. Um exemplo está na pauta do dia: a influência da luta sucessória, que toma como refém a momentosa questão da vacina contra a Covid 19. Já se tornou bastante claro que o presidente da República e o governador de São Paulo, alimentando o mesmo sonho, elegeram a política sanitária como principal instrumento de divergência para quem deseja o poder, onde não há espaço para dois.
A eleição de 2022 precipitou-se. E, tendo o presidente como um dos atores, aspirando ao segundo mandato, todo o resto tende a descambar para plano inferior, sem ressalva para a imensa paisagem de óbitos, na qual vão se condoendo 400 mil famílias enlutadas.
Ideal que, diante da realidade que assola, as articulações para a sucessão de Bolsonaro se transfiram para os primeiros meses do próximo ano, cabendo a ele, antes que qualquer outro, dar o sinal de boa vontade, não permitindo que o governo se conduza de acordo de interesses eleitorais ou eleitoreiros.
Em seguida, sem que venha após o Executivo, mas a ele ombreado e de mãos dadas, surgem as lideranças do Legislativo, para descerem do pedestal onde acham que se instalaram. Vingativas, têm produzido retaliações, em resposta à decisão de tribunal maior, onde os presidentes de suas duas casas não lograram concretizar o projeto da recondução aos cargos. Disso resulta a transformação dos gabinetes de deputados em trincheiras belicosas, disparando petardos e hostilidades, e contribuindo para o desassossego da sociedade organizada, que vai se desorganizando, sem que possa se valer de bons exemplos superiores. De fato, com escassas exceções, os que detêm o poder decisório negam exemplos de boa conduta. Visto, então, que o Congresso faria bem se evoluísse da condição de colegiado orgânico, não se conduzisse de acordo com o soprar dos ventos políticos, ou sujeitando-se a deformações da organização partidária, esta sempre complacente nas concessões circunstanciais.
Papel não menos saliente haverá de caber ao Supremo Tribunal Federal, onde, sob o manto da austeridade e do respeito, a nação sempre foi buscar abrigo e luzes nos momentos mais difíceis; tribunal que, mesmo quando subjugado nas ditaduras, foi ali que se pôde colher a esperança de direitos a serem restituídos. Pois, diferentemente dos tempos de senhores togados e circunspectos, hoje assiste-se ao deprimente espetáculo de seus ministros vaiados nas ruas e nos aviões. É urgente uma autoanálise.
Se o momento é de desencontros, de muitas dúvidas, e nelas o país se vê tropeçando, a corte, como guardiã da Constituição, prestaria bom serviço se ajudasse a remover os perigosos conflitos que medeiam nas interpretações de estado de emergência, já decretado, e do estado de defesa; e se podem acabar subservientes a más intenções golpistas, que também não faltam. O Tribunal, nos seus deveres, precisa incursionar nesse terreno, onde prosperam justificadas preocupações.
Bom se os poderes constituídos armassem três barracas na sua praça, fazendo-se dela uma réplica do Monte Tabor. E nelas Executivo, Legislativo e Judiciário pudessem promover a transfiguração de um Brasil novo. Tudo sob a égide da boa vontade e de sincero patriotismo.