Palavras mal ditas
A uma pergunta sobre o que seria, hoje, o maior problema do governo e da governabilidade, é sabido que muitos têm pronta a resposta na ponta da língua. O maior desafio, que o próprio governo se encarrega de agravar, é a palavra, se desnecessária ou inoportuna, mas principalmente quando se reveste de impropriedade. A começar pelo presidente, com a fiel assistência de alguns ministros e colaboradores menores, a origem de maus momentos que temos vivido detecta-se, facilmente, no descuido quanto ao dizer as coisas. Nos pronunciamentos oficiais já se tornou habitual a palavra chegar em momento inadequado. O que é grave, principalmente no exercício da política, onde o jeito de dizer, se exerce o milagre de construir, também é capaz de se tornar desastrosamente demolidor. Lançados ao vento, sem adequada medição das consequências, os discursos de Brasília têm gerado constrangimentos de toda ordem, a curto ou longo prazo, facilitando o surgimento dessas crises que raramente passam uma semana sem mostrar seus tentáculos no noticiário. Percebe-se, então, que o problema é o maior entre todos, exatamente por se disseminarem com facilidade as falas descuidadas, fora de hora e de lugar. A palavra mal dita. Se não é bem dita, destrói.
A observação faz sentido, merece registro, porque é crescente o número de pessoas com sensatez a criticar e sugerir que o presidente Bolsonaro guarde maior cuidado com o que diz nas suas improvisações, sempre aguardadas com justificados temores, por causa dos impasses que costumam facilitar. Já não se trata apenas de recomendar certa elegância do homem público, a começar por abandonar o baixo calão, que quebra a seriedade recíproca entre o governante e a população. Há até quem ache graça nessa linguagem de quintal, mas ela acaba comprometendo o respeito devido ao presidente; e o respeito dele por todos. Nem falta quem veja intencionalidade no palavreado bolsonalista. Seria a busca de um estilo populista, mesmo que tropeçando no popularesco.
Seja como for, têm razão os que se preocupam com isso. Ainda mais recentemente ocorreram alguns exemplos do descuido, com tudo para tornar inevitáveis as consequências. Bolsonaro, antes dele um de seus filhos, e agora o ministro da Economia investem um discurso desabonador em relação aos chineses, acusados, com base em meras suposições, de alta responsabilidade na crise sanitária que vive o mundo. Antes da investida, houvesse mais recato em relação às palavras, cuidariam os denunciantes de saber até que ponto as dúvidas devem prosperar em relação aos governantes e cientistas daquele país. Nada a dificultar a apuração e o diálogo, até porque continuamos encontrando no regime de Pequim os maiores compradores na pauta das nossas exportações.
Mas não ficam apenas com aqueles fregueses os casos de palavras descuidadas, essa arte que, como se percebe, vem ganhando maestria no atual governo. O presidente garantiu, sem saber exatamente em que bases legais, que as eleições de 2022 só se farão se for com a comprovação de votos impressos. Ou assim ou nada feito. Mas, afinal, o que pode levá-lo a condicionar um pleito presidencial ao modelo do voto? Por que a desconfiança pelo voto eletrônico? Bolsonaro continua lançando mão de um argumento de suspeição: em 2018 teria batido o Partido dos Trabalhadores e seu candidato já no primeiro turno, não fossem as manobras da tecnologia. Mas nada além de uma suspeição. Na contramão de suas dúvidas, as experiências e a História eleitoral não autorizam considerar o voto eletrônico menos confiável e mais susceptível a fraude, entre outros vícios muito mais facilitados no voto impresso.
Na administração do país as coisas sempre se explicam melhor quando alinhavadas com palavras adequadas, mesmo se o governo incorre em equívocos nas proposições. Não apenas quanto a eventuais reservas em relação aos chineses ou condicionar a realização de eleições ao gosto pessoal, é preciso falar com cuidado e responsabilidade. O que também permitiria lembrar, na cascata dos descuidos, a ameaça presidencial de quebrar as limitações ao culto e às restrições sanitárias, com base em decreto a ser cumprido “de qualquer maneira”, expressão arbitrária, que, mantido o sentido, podia ser substituída por algo menos agressivo, sem constituir novo desafio aos outros poderes, onde as relações com o governo já andam pra lá de acidentadas. Além do mais, fazer com que se cumpra um decreto a ferro e fogo soa como ferir o elementar direito à divergência.
Interessante seria Bolsonaro refletir que grandes homens, quando o destino os elevou ao topo do mundo, sempre cuidaram de falar com cuidado, e apenas o suficiente. Por isso, usaram poucas palavras para mudar o curso das civilizações. Cristo precisou apenas de quatro minutos na montanha para um sermão que foi a alforria da humanidade; Lincoln, só em um minuto, definiu em Gettysburg a moderna democracia, do povo para o povo. Há, portanto, saudáveis exemplos da virtude de falar pouco, com palavras certas, nos lugares certos. E apenas o necessário, como voltaria a recomendar George Burns (1896-1996) se conhecesse o presidente brasileiro: o segredo de um discurso é ter um bom começo e um bom final, e que sejam o mais próximo possível um do outro…
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