Não são poucos – eu até diria bem numerosos – os que apreciam fazer os olhos voltados para o passado, confiando-lhes a missão de julgar o tempo e os costumes na História; e afirmam que os anos 50 foram os melhores vividos por Juiz de Fora. Por isso, chamados de Anos de Ouro. Penso ser tarefa difícil afirmar, terminantemente, que tal temporada passou coberta só pelas belezas do mundo; até porque a vida reserva diferentes quilates para o ouro de cada qual. É metal que não imita o sol, não brilha para todos igualmente. Mas, tentemos dar preferência aos olhares otimistas, porque é sempre mais agradável conviver com a lembrança de boas coisas passadas.
Esqueci de pedir autorização para identificar a leitora que escreveu, sugerindo mexer a memória, desenterrar fatos e gentes daquele tempo. Fico, pois, devendo sua identidade para o público, com seu consentimento. Enquanto isso, tento buscar coisas acontecidas, desobediente à cronologia, apenas pinçando aqui e ali o que, penso, pode merecer registro. Missão no esparso.
1- Devo, por primeiro, tentar justificar a razão de estar incluído entre os depoentes de uma época. A explicação (não haveria outra) é o fato de eu estar atuando no Rádio naqueles idos de 50; estes sim, sem dúvida, os anos de ouro da radiofonia local. Sempre quando digo isso, vem a tentação de citar alguns heróis dos estúdios, quase todos já ausentes, tirando-os das lápides onde seus nomes adormecem; mas logo desisto da empresa, advertido pelo risco das omissões, imperdoáveis para quem era do ramo. Demais, já citei muitos em meu “À Margem do Paraibuna”. Agora, falo do Rádio ( não dos que o fizeram grandioso, adotados pelas quatro emissoras locais – Industrial, Difusora, Sociedade e Tiradentes ) que mantinha radioteatro, orquestras, programas de auditório e promovia coberturas jornalísticas pelo Brasil afora. Tudo isso acabou.
A Industrial comandada por Dolar Tânus, a Sociedade por Mário César, a Difusora pelos irmãos Gudesteu e Geraldo Mendes.
Não faltaram pioneirismos. Entre eles, quero registrar que, na cobertura do carnaval de 59, pela Industrial, Heitor Augusto, um dos nossos Lery Guimarães, criou a primeira equipe feminina de repórteres, sob a liderança de Sonia Moralez. Eram mais numerosas que os homens, preferência hoje fartamente adotada pela televisão.
Talvez seja prudente mergulhar mais a lembrança, entrar um pouco na década seguinte, ir até março de 1963, quando o Rádio iria fechar, em grande gala, seus tempos gloriosos. Narradores, radioatores, ao lado de alunas do Santa Catarina e coadjuvantes, encenaram, no campo do Sport, a peça ”Cristo Total”, obra imortal de José Carlos de Lery Guimarães, Wilson Beraldo e irmã Benedicta Idefelt. Uma Via-Sacra adaptada aos tempos modernos, denunciando as tragédias sociais. Pilatos chegava de Cadillac; no ato final, os 420 participantes formavam uma cruz humana, iluminada por holofotes, e, no centro, de braços abertos, o arcebispo Dom Geraldo Penido. Matéria na revista Times e reapresentação no Maracanã e em vários estados. Não era pouco para a província.
Feito o breve introito, penso ter justificado minha inclusão nesse esforço memorialístico.
2 – A década insinuava-se trágica. No primeiro fevereiro, dia 21, mal terminado o baile da segunda noite de carnaval, irrompeu o incêndio no Clube Juiz de Fora, provocado, provavelmente, por sobrecarga de energia. Nada restou do fogo, que ainda se encarregou de destruir lojas vizinhas; mas ninguém se feriu. Do clube ficariam recordações de alguns dos melhores eventos sociais da cidade, e onde se banquetearam e dançaram a sociedade, presidentes, artistas e intelectuais.
Era um prédio de bom gosto arquitetônico, algo que se tornaria cada vez mais ausente na zona urbana. Estava chegando a era dos grandes edifícios. O Ciampi, até então com o status de cinco andares, viu brotar do chão o Primus e o Baependi, com 12. E, nisso, davam partida para o fim de velhos chalés e casarões.
Como também despedia-se, com vagar, o que restava de bucólico e provinciano dos tempos passados. A começar pelo Parque Halfeld. Chafariz, biblioteca e coreto foram despachados dali. Cada prefeito, parece, sentia-se na obrigação de deixar seu toque pessoal no velho parque, que o coronel Francisco mandara urbanizar no começo do século.
3- Vale, agora, registrar que foi década bem diferente, se comparada ao perfil da cidade dos nossos dias; diferente, não necessariamente melhor ou pior, no dizer de Pedrinho Halfeld. Nos 50, saudosos para muitos, sobreviviam pelas ruas e avenidas, pelos salões e mansões, os espectros já quase apagados da época senhorial de famílias ilustres, algumas remanescentes dos bancos ou dos antigos cafezais frondosos; outros sobrenomes respeitáveis sustentavam a indústria de transformação, têxteis e malharias, que, em alguns casos, exauriam o que havia restado dos poderosos cofres das fazendas. Era gente suficientemente prestigiosa para preservar o capítulo final de antigo fausto social, que vinha se arrastando desde os primeiros sopros do século.
O industrial Zacharias Salim ficou ainda mais respeitado, quando seu produto patrocinou um quadro do programa César de Alencar, o mais famoso da Rádio Nacional, do Rio de Janeiro. “Meias Dickison, de Juiz de Fora para todo o Brasil”, anunciava o animador.
Por volta de 54, funcionava, no nono andar do Baependi, o Sindicato das Indústrias de Fiação e Tecelagem, presidido por José Batista de Oliveira. A entidade promoveu, durante quatro dias, um congresso nacional dos empresários do setor. Já se queixava da carga tributária.
De fato, cabia ao parque têxtil a cota mais expressiva da projeção industrial de Juiz de Fora. As fábricas famosas eram Industrial Mineira, Meurer, Bernardo Mascarenhas, Moraes Sarmento, Santa Rosa, Santa Cruz, São João Evangelista. A São Vicente produzia cobertores. E as malharias Sedan, Ave Maria, Sulamita e a já citada Dickson.
Não sem razão, que Duque Bicalho e Lindolfo Gomes, compondo o hino oficial, exaltaram a cidade como “sendo a mais industrial”. Quase da mesma época, veio o nosso hino popular, “Se Eu Fosse Feliz”, de Juquita, B.O. e Djalma de Carvalho, samba que se celebrizou nas rodas veteranas de Ministrinho.
Mas, no repertório do hinário, o que mais correu o Brasil foi o dedicado à Nossa Senhora Aparecida, composto pelo padre João Batista Lehmann, da Academia de Comércio, com letra de Belmiro Braga.
4 – O comércio, espalhado por todos os cantos, era movimentado na Marechal Deodoro, rua que primava por sediar a maioria das lojas, devido, principalmente, aos imigrantes e descendentes de sírios, libaneses, italianos, portugueses e judeus. Vários tinham vindo do final do século anterior, mascatearam na zona rural; mas foi nas quatro décadas seguintes que consolidaram seus negócios. Ali e em outras ruas os orientais espalharam sobrenomes ainda hoje conhecidos nas descendências, como Arbex, Moyses, Hallack, Gattas Bara, Ahouagi, Abraão, Mockdece, Andraus, Cury, Jabour, Rahme, Arbache, Zaka. Comum ver os árabes, findos os longos almoços de domingo, sentados à porta, com patrícios, para o narguile e jogar gamão, enquanto esperavam os trens da Central e da Leopoldina, que abasteciam ou desabasteciam suas lojas.
Os judeus envolvidos no comércio não eram poucos e discretos. Desse jeito, muitos conheceram dona Dora Rosemberg. Mas vou buscar outros nomes, com ajuda da Biblioteca Hebraica e do professor Washington Londres, para ficar sabendo que na Marechal estavam os Korceginsck, Salomão Levy, Avram Tucherman, do Magazine Holliday, Bernardo Sztarckman, da Casa Wally, Félix e Anita, da Casa Félix. Além de Dina Keller, Mendel Brener, Rosinha Spiewak e Leib Brener, os demais estavam entre as ruas Halfeld e Batista de Oliveira; ou eram "clientelchicks", termo em yidish para mascate. Abasteciam-se nas lojas da Marechal Deodoro, mas eram vendedores, de porta em porta, a maior parte do tempo.
Fora dos balcões de tecidos e armarinhos o sangue judeu deixaria sua marca na cidade com Jacob Pinheiro Goldberg, juiz-forano da Rua do Espírito Santo, PHD em Psicologia, reconhecido no Brasil e no Exterior, membro do Comitê de Ação da Organização Sionista Mundial. Goldberg escreveu “Juiz de Fora, a Nostalgia”, para falar do tempo em que aqui nasceu e viveu.”O bordão dos sons da PRB-3, o Braguinha, do Dops, indo me prender como agitador comunista”.
Estudando no Granbery, em uma Sexta-Feira da Paixão os colegas quiseram atacá-lo a pauladas, para vingar o Messias crucificado. Correu para o banheiro, e foi salvo da agressão com a chegada de Walter Harvey Moore. “Vocês não sabem que Jesus era judeu? ”, perguntou, esclarecedor, o reitor.
5- Contudo, não só de teares e lojas viviam os anos 50, cabe lembrar. Muitas indústrias tiveram qualidade para exportar e concorrer, com sua produção, em todo o país. Como os laticínios da Estrela Branca, os curtumes Krambeck e Surerus, Pantaleone Arcuri, soda José Weiss, as impressões da tipografia Dias Cardoso, os pianos dos Schubert, o macarrão Saggioro, o aquecedor elétrico Humasi, que se formava com as primeiras sílabas do nome do dono, Humberto Mateus Siano. Nem faltavam, na pauta de exportações da época, as espoletas que saíam dos paióis do Exército, em Benfica.
Pequena parte do empresariado local evoluiu com seus próprios capitais, e sustentava setores estratégicos, como a Companhia Mineira de Eletricidade e a Companhia Telefônica. O dinheiro da terra também controlava, em quase 90%, o comércio de eletrodomésticos, alimentos e vestuário. As redes nacionais começaram a aparecer mais tarde, confirmando a advertência que, pouco antes, fizera Francisco da Cruz Frederico, na Associação Comercial: os capitais locais deviam se unir, criar grandes empórios, para enfrentar os supermercados do Rio e S.Paulo, que logo chegariam. E chegaram.
Perguntavam muitas pessoas sobre que fim levaram aqueles homens e suas empresas?, para responder a si mesmos: elas morreram e eles sobrevivem apenas nas placas de rua ou nos retratos de parede.
6- Se na economia produtiva assistia-se ao progresso das indústrias de transformação, umas de rápida ascensão, outras nem tanto, a política também ousava novos passos, aproveitando-se do poder de voto da classe operária, fenômeno social agregado à indústria. Em 54, começou a florescer, em decorrência, o populismo de Olavo Costa, e o trabalhismo de Clodesmidt Riani, que ampliariam bastante sua influência no futuro. Sobre “seu” Olavo, guardo a imagem daquele 24 de agosto de 1954, dia do suicídio do presidente Getúlio Vargas. A tragédia levou o diretor Paiva Matos a cancelar as aulas do Machado Sobrinho. Quando os alunos desciam da Constantino Paleta, esbarraram, no Parque Halfeld, com o tumulto criado por populares, que pretendiam invadir o gabinete e depor o prefeito Olavo, do PSD. Durou poucos minutos o protesto. Olavo saiu carregado pelos correligionários.
Assim, Getúlio foi-se, sem saber que nos poupou de uma prova de matemática, prenúncio de grande fartura de zeros naquela manhã. Afora isso, cabe registrar que o presidente era querido aqui. Visitou cinco vezes a cidade.
Sobre a política, é preciso rebuscar mais um pouco naqueles dias da redemocratização ainda mal amanhecida. Em 1950, despediu-se o primeiro prefeito eleito pelo voto direto, o médico cardiologista Dilermando Martins da Costa Cruz Filho, e entrava o já citado Olavo Costa, comerciante, ex-dirigente da Liga de Futebol. Batera, na eleição, Procópio Filho e João Felício, duas personalidades de grande prestígio social. O vice, dentista estimado, Arlindo Leite, reeleito sucessivamente para o cargo. O vereador mais votado foi Gabriel Gonçalves da Silva, do PTB. Mas, na legislatura, quem sempre pontificava nas articulações era Itamar Rattes Barroso, logo depois uma expressão nacional da Maçonaria. O Partido Republicano saíra forte, com seis entre os 15 mais votados. Na eleição de vereador, em 58, um recorde nunca batido, se comparado o número dos colégios de votantes: Juarez Belfort Arantes teve 1.878 votos.
Prefeitos passavam imensas dificuldades, porque tinham de se virar apenas com o imposto predial, e esperar eventuais socorros do governo do Estado. Vi, certa vez, Adhemar de Andrade pedir a servidores que ajudassem a cobrar taxa do Departamento Autônomo de Bondes, e, com isso, poderem se pagar.
Convém citar, como outro marco político, o fato de que a cidade viveu uma especial motivação, pois, pela primeira vez, desde Antônio Carlos, tinha gente de casa disputando eleição nacional: a vice-presidência da República, quando Odilon Braga, com 2.344.841 votos, chegou perto de Café Filho, com 2.520.790. Interessante é que todos torciam, mas Café foi o mais votado em Juiz de Fora…
7 – Aconteceu um grande salto nos hábitos e no comportamento das pessoas. Quem vinha de outros decênios já carregava suas queixas, algumas eternizadas. Lembrava-se, com frequência, das cadernetas mensais das padarias e para comprar bacalhau no armazém Romanelli. Desapareceram os velórios em sala-de-visita, aquecidos ao sabor de vinho do Porto, e os muito ricos perderam o costume cristão de destinar à Santa Casa parte dos inventários. As pessoas cumprimentavam-se, os vizinhos conheciam-se; quase famílias. Uma cena das manhãs de segunda-feira: subindo a Andradas, morosas, as carroças das lavadeiras que iam para São Pedro. Mais cedo ainda, a sinfonia desafinada de tamancos dos trabalhadores, que caminhavam para a Industrial Mineira.
Casamentos desfeitos em altas rodas constituíam assunto para render. Viúvas recentes, convinha que nunca saíssem sós e sem o preto lutuoso, para não ensejar suspeitas maldosas.
As madrugadas eram amoráveis e sóbrias, conviviam em paz com a luz desnutrida que pendia dos postos da Mineira, muitas vezes ofuscada pela neblina úmida, coisa nossa que também sumiu. Fazia muito frio em Juiz de Fora, já se queixara, anos antes, o grande escritor Artur Azevedo, que desistiu do plano de morar alguns meses na Rua de Santo Antônio. Por isso ele e muitos outros foram embora.
Mas, em qualquer tempo, desfrutava-se do prazer de andar solto pelas madrugadas, antes de elas se tornarem cativas da bandidagem. Mudanças sacrificaram também a Avenida, onde as calçadas ficaram mais estreitas, e se recolheram as sombras acolhedoras dos jalões.
8 - Nunca faltou raça de gente saudosa, olhando para trás. Como se nos 50 e antes deles tudo fora bom. Depois deles, só saudades acumuladas. “Tardes provincianas, com cadeiras nas calçadas e as conversas de comadres”, recordava Rangel Coelho.
A cidade não haveria de escapar desse fenômeno tão comum, o saudosismo, já cultivado aqui por pessoas que vieram das décadas anteriores. As saudades se sucediam, à medida em que os dias iam embora. Falavam de fazendas e mansões, dos doutores (inclinava-se, com reverência, à passagem do doutor Villaça e do doutor Joaquim Ribeiro de Oliveira), como também comentava-se algo que, de tão distante, quase ninguém mais se lembra - a Hípica. As tardes dominicais com as corridas de cavalo no Jóquei Clube, do qual restou apenas o nome do bairro, que nada tem a ver com a antiga elegância do hipódromo. Só o nome e vagas lembranças de moradores mais antigos. Os cavalos de raça foram embora, e suas bem cuidadas estrebarias acabaram ocupadas por bois e touros das exposições agropecuárias, estas também cada vez mais pálidas.
Contemporâneos, igualmente desaparecidos, os piqueniques na José Weiss, os jantares do restaurante que Nicodemus abriu à margem da Represa João Penido, o bondinho do Jardim de Infância. E as noivas de então, hoje vovós de cabelos brancos, que iam para o altar levadas no “carro de aluguel” do Congo, um chauffer negro elegante, que enfeitava com rendas e cortina o banco traseiro; tudo em branco, a combinar com o vestido das moças. Não menos famoso, entre os motoristas “de praça” pontificou, benemérito, no Parque Halfeld, onde fazia ponto, o gordíssimo Velhinho, com seu Chevrolet. O homem e sua máquina eram conhecedores dos endereços de todos os bêbados contumazes. Cuidavam de entregá-los em domicílio, com paciência e fidalguia.
9 - Revividas as nostalgias, vê-se que por lá também ficaram as adolescentes dos idos 50. Se ricas, de famílias que frequentavam os melhores clubes, muitas delas, antes do casamento inevitável, viam-se condenadas aos estafantes bailes em que debutavam; uma espécie de apresentação formal à sociedade. Pobres moças. A pena era agravada, quando tinham de dançar a primeira valsa com cadetes das Agulhas Negras, quase sempre desajeitados, os cabelos à moda Príncipe Danilo, fardas cheias de cores. Um horror. Debutar foi um costume de que logo as jovens se livrariam.
Igualmente sepultados no passado os jogos de azar no Cassino do Sport, que Oswaldo Gouveia gerenciava; como também as noites de gala promovidas pelos colunistas sociais de então, Décio Cataldi, José Divino Leite e George Norman Kutova. Smokings e vestidos longos foram para os cabides, onde morreram, de pé, asfixiados em naftalina. Entediados.
10 - Vou atropelando esses fatos diversos, mesmo sabendo que não bastarão para traçar, com todas as linhas e cores, o jeito de ser da cidade e suas gentes. E, insisto, estou longe de ser fonte apropriada para versar sobre a matéria. Eventuais leitores, pacientes e tolerantes, com boa vontade talvez se satisfaçam com estas anotações esparsas da vida urbana da Juiz de Fora daquele tempo.
11- Agora peço ajuda da memória para descer a Rua Halfeld, aquela que o amigo professor João Ibiapina, recém-chegado do Ceará, testemunha ocular, garantia não haver igual, mesmo diante de outras, mais bonitas, mais extensas, mais ricas, mas não tão charmosas. Desço com Ibiapina até o Café Salvaterra, do português Amando Coelho, onde o salão havia convivido, entre momentos inesquecíveis, com a figura do filósofo francês George Bernanos, sorvendo demorado cafezinho, e do maravilhoso casal romeno Genica – Michel Confort. Em uma daquelas mesas, na intimidade vespertina da praça do Central, Confort pintava paisagens e flores em pedaços de cartolina do tamanho de selo postal. Presenteou-me com três delas. Todos fugitivos europeus da guerra de Hitler. Depois o casal foi embora para Nova York, onde morreu; ela, queixando-se da profusão de cimento da cidade, que só lhe permitia ver pequenos pedaços do céu.
Já avançando para a década seguinte, os poetas não dispensavam aquelas mesas de ferro batido, servidos por Isaías, o mais elétrico de todos os garçons. Rangel Coelho, Hegel Pontes, Sílvio Machado, Cândido Almeida, Roberto Medeiros, Dormevilly Nóbrega. Murilo Mendes era assunto do momento, pois alçara novos voos, e logo começaria a ganhar a Europa. Tomava-se intimidade com os sambas de Geraldo Pereira, que sairiam de Caeté para conquistar os morros cariocas.
Entre trovas e sonetos, os poetas haviam conquistado o direito de ver passar gente ilustre. Um dia, ocasionalmente, parou para conversar, sentou-se o professor Waldemar Bracher, também poeta, homem-inventor, que, anos antes, tirava álcool de rapadura e polvilho para substituir a gasolina dos caminhões do Curtume Krambeck. Tempos amargos da guerra e de racionamento.
12 - Se alguém se dispuser a definir o coração da cidade vai encontrá-lo pulsando na velha Halfeld, que nasceu chamada Califórnia. Fiel à sua história, sentia-se uma vitalidade já pronunciada logo na esquina de Rio Branco, com o Café e Leiteria Astória, onde era preciso vencer o mau humor do garçon Barreto, ele próprio confessadamente crítico da qualidade da broa que ali se produzia. Achava-nos, nós, os consumidores, jovens aventureiros.
Ao lado, o Café Santa Helena e a Casa do Café. Nesta, à porta, os políticos conversavam, algumas vezes trocavam empurrões, mas jamais faltava alguém, encostado no poste da Cia Mineira, para ouvir velhas histórias da cidade, contadas por Paulino de Oliveira, Procópio Filho, Almir de Oliveira, Jair Lessa, Fábio Nery ou Ithamar Barroso. Detalhe significativo: obrigatório, para quem dobrasse a esquina, era consultar a pequena lousa de mármore na parede de entrada do Café, onde a funerária, já bem cedo, afixava a lista dos que haviam morrido na noite anterior. Nossa primeira vitória do dia era saber que não estava na lista…
Do lado esquerdo, frente à Casa Oriente, de Benedito Valente, outro poste da Mineira se tornaria famoso, transformado em expositor, onde Níason Campos Mota (Bigodinho) colava suas caricaturas sobre cartazes, ridicularizando a propaganda de candidatos. Ele também inventara uma dessas coisas que ninguém sabe explicar por que surgem, muito menos por que somem. Era o estranho negócio de venda de cestas de Natal em dez parcelas mensais. Em janeiro, o freguês entrava com a primeira cota, ia pagando e, paciente, esperava a distante ceia de dezembro. Cestas Amaral.
13 - Vejam esta. Por volta de 58, apareceu uma estranha figura, que, também com a mesma rapidez como surgiu, haveria de desaparecer. Não era pra menos. O sujeito vestia-se de macacão todo vermelho, e, com alto-falante à mão, contratado por alguma loja, apregoava, aos berros, o nome de compradores, moradores próximos, que andavam com “prestações” atrasadas. Pois, certo dia, fez isso na Galeria João Beraldo. O comprador ofendido desceu do apartamento e o esbofeteou. Nunca mais se ouviu falar dele nem de sua empresa, que se chamava Mercúrio, nome gravado nas costas do macacão.
14 - Tento sair da Halfeld para buscar outras ruas referenciais. Difícil. Mas é compreensível persistir nela, porque era por ali que a cidade fluía e acontecia. A começar pelos restaurantes, o Pigale, a Palácio, o Michelângelo, o Belas Artes.
Na Palácio, havia mesa cativa, onde estavam, ao anoitecer, Arídes Braga, Silvano Frateschi, Eurico da Cunha Filho, Afrânio Cleto, Dilermando Cruz, Edgar de Castro, Edgar Guimarães, major José Félix, coronel Grunewald, Ricardo Fortini. De passagem, o veterano jornalista Murilo Nunes Araújo, pigarreante, cigarro que não tragava, mas se consumia no canto da boca. Em outra mesa, ele discutia muito com Braguinha, o detetive solteirão, que tinha na memória os nomes de todos os bandidos da cidade, e com eles marcava dia e hora para se apresentar na Furtos e Roubos. Sua fama na Polícia concorreria com os delegados Lessa, Jair Fortes e Paulo Morais e os investigadores Tatão, João Mandarino e Dorigatti.
Os donos da Churrascaria Palácio, que tinha sido Colombo no passado, eram Gentil e Vitório, duas almas piedosas com os devedores, cujos nomes repousavam longamente na imensa caixa dos fiados. Deus os tenha.
15 - E se, na descida, os passos dobravam para o lado do Cinema Central, era o Faisão Dourado, o porto seguro onde ancoravam bêbados desgarrados da noite, em busca de uma sopa amiga que os levasse para a cama. Podiam escolher. A Zarur, preparada com feijão, couve, linguiça e fiapos de macarrão; ou a sopa de cebola, igualmente restauradora. Fora disso, era buscar socorro nas bandas do Vitorino, onde se podia amargar o chá de Dona Filhinha, também celebrada nas artes dos quitutes e da benzeção com folha de arruda. Preparava um torpedo, morno, mistura de boldo, losna e pitada de bicarbonato. No quarto gole, o sujeito era capaz de vomitar até a certidão de nascimento…
Nesse restaurante aconteciam coisas incríveis, sem que possam cair no esquecimento algumas diversidades: artistas famosos, pobres, poetas, homens dos dados e do carteado misturavam-se com senhoras de “fino trato”, sem que faltassem as alegres damas do K-2, a boate da Vila Ideal, lugar em que dona Carmem Maranhão agenciava mulheres prestadoras de carícias. Dali, tanto as belas como as enfeiadas pelo tempo, partiam para o capítulo final da decadência, quase sempre na zona do Bar Brasil, ao longo do Paraibuna. Rua Henrique Vaz, semelhante àquela que Pedro Nava chamaria de rua prostiputaz. Em meio àquela miséria, a exceção era Teresa Bezerra, festejada, pelos que a conheceram, graças às pernas bem torneadas, comparadas aos pêssegos de leves penugens.
No mundo do sexo a alternativa da rapaziada que vinha dos anos 40, viril mas desprovida de dinheiro, era o campo estrelado da Tia Nicinha, pedaços do pasto, onde começava a ser instalado o aeroporto. Motel ao ar livre, com a mais alta rotatividade.
16 - Na praça João Pessoa, junto ao cinema, os estúdios das rádios Difusora e Industrial, de propriedade de Sérgio Vieira Mendes, um dos espíritos mais empreendedores que conheci. Não estarei exagerando ao dizer que por aqueles estúdios passaram algumas das maiores figuras da política nacional, que vinham participar do programa de entrevistas chamado Tribunal da Opinião Pública, apresentado por José Oceano Soares. Parece que era nas quintas-feiras. Cruzávamos nos corredores com San Tiago Dantas, Tancredo, Milton Campos, Pedro Aleixo, Aliomar Baleeiro, Plínio Salgado, entre outros desse mesmo naipe.
Retomo a figura de Sérgio Mendes, para não deixar passar em branco que, na Marechal Deodoro, em frente aos Correios, ele inaugurou o Kanguru, primeiro supermercado da cidade. Ao lado, também iniciativa sua, uma representação do Instituto Nacional do Mate. Nesse tempo, ele e os filhos amadureciam a ideia da TV Industrial.
17 – Artistas cantavam no auditório da Difusora, antes de se apresentarem no Raffa’s, na Galeria Pio X, clube de Rafael Jorge, que, com Miltinho, Gilberto Barbosa, Damásio e Nasário Cordeiro, disputava as noites com o Dream’s, Vivabela e Olímpico.
Dali, findos os shows e os bailes da madrugada, os sem dinheiro para frequentar restaurantes, consolavam-se com o churrasquinho ou o quibe “comunitário”, ambos lubrificados com óleo bruto, no bar Marrocos, onde hoje está o Banco do Brasil. No andar de cima, o Rex Bilhares, de Adão Acauí, por onde desfilaram reis da sinuca, como Henrique e Boca Murcha. Adão servia, como brinde, um café fortíssimo, que tinha a competência de espantar o sono de jogadores exaustos.
18– Se tocamos no assunto, então uma indispensável palavra sobre os pontos mais convidativos para a refeição ligeira: a Petisqueira, na Batista de Oliveira, e a lanchonete do espanhol Pedro Manero Calvo, que foi ser hoteleiro no Rio, perto do Palácio do Catete. Vinham depois o Rio Lima ou Gato Preto, na Avenida, o Bar Primavera, do lusitano Albertinho, na Bruno Barbosa, ou o Futrica, apelido do dono, Geraldo Vieira, que chegou em 57, vindo de Goianá.
Primorosa, na João Beraldo, a alegre cantina de Péricles, velho marinheiro greco-francês, que servia língua bovina com ervas. Podia-se variar, correndo para a Getúlio Vargas, onde honravam as altas horas o Dia e Noite e a imbatível maionese e os variados arrozes-doces de “seu” Kuria Afkimie, que jamais dizia de onde viera; mas da Hungria, quase certo. Na mesma avenida, encostado no Largo Riachuelo, o Chave de Ouro, onde estacionavam ônibus interestaduais.
Se os pés levassem para o Alto dos Passos, o destino era o Bar do Gaudêncio, que produzia cachaça curtida em coco da Bahia, alguns dias sepultado no quintal.
Cabe, por justiça, homenagem póstuma ao Bar Redentor, esquina de Rio Branco e Espírito Santo, refúgio de almas boêmias, onde iam beber os últimos suspiros da madrugada.
19 - Agora, muito a contragosto, registro algo que, de tão repugnante, tão infame, tão bárbaro, é difícil acreditar que realmente acontecesse. Mulheres, se flagradas em crime de adultério, eram levadas para a Delegacia de Polícia, na Batista de Oliveira, apenas enroladas no lençol em que se encontravam no momento do susto. Iam depor para o delegado de plantão. Primeiro passo para inevitável desquite. Nada mais humilhante. Mas era assim.
Outra motivação sádica reunia, ao meio-dia de Quarta-Feira de Cinzas, verdadeira multidão junto à Delegacia, para assistir à liberação dos foliões presos durante o carnaval. Alguns, submetidos ao vexame de sair ainda fantasiados, sob risos, aplausos e vaias. Constituíam cena deplorável, que se convencionou chamar de “Bloco do Que é Que Eu Vou Dizer em Casa?” Os anos 50 também tinham suas crueldades.
Dois capítulos negros que, melhor, seria esquecê-los para sempre.
20 - Mergulhado nesse mesmo tempo, saio agora em busca de algumas figuras populares (até estas sumiram das ruas de hoje). Não havia quem as ignorasse. Ladislau, com insubstituível terno preto, eterno candidato a prefeito; Carpentier, pugilista de carreira meteórica, transformado em corretor de imóveis, com seus 2,15 m de altura; Tartaruga, Três Pulinhos, Maria Homem, Perigo, Maria dos Cachorros, Peneirão. Júlio Mucacão, violão a tiracolo, contentava-se, sem nada para fazer, a dedilhar e acompanhar, no passeio, até a Batista, a enxurrada da chuva que caía. Uma fauna que se extinguiu, sem que alguém desse conta. Essa gente volátil. Perambular era seu ofício.
21- A Pio X, originalmente chamada Cruzeiro, braço ilustre da rua Halfeld, foi a primeira. E também a mais democrática daquele tempo. Começava com a loja de ricas joias de Arthur Vieira, logo depois esnobava na casa de luvas e peles de Max Gefter, um judeu que nas horas vagas regia a Filarmônica; de graça. Pouco depois, mais proletária, antes do chope suado do Alhambra, alguns passos e estávamos na pastelaria de um rapaz chinês, que acabou abrasileirado como Paulinho. Nunca mais o olfato da cidade voltou a sentir o perfume daqueles pastéis. Mas posso senti-lo no ar, quando dali vem o Apito do Meio-Dia, primeiro bem imaterial de Minas, tombado pela Fanalfa, na administração de José Alberto Pinho Neves. Nem faltaria naquele espaço um toque de arte, porque no pavimento superior funcionou a Galeria Celina, criada pela família Bracher, para artes plásticas e teatro, onde se apresentavam os amadores, um dos quais, Nilo Batista, viria a ser governador do Rio de Janeiro.
Nas pegadas do pioneirismo de Vieira multiplicaram-se as galerias, veias ativas por onde nossas ruas faziam circular seu sangue. Acabaram se transformando numa espécie de marca registrada de Juiz de Fora.
A única que podia rivalizar com a Pio X, a Beraldo, ficava no edifício Juiz de Fora. Ali, no Bar do Neca, inventou-se algo que se tornaria patrimônio da nacionalidade, a Caipirinha, milagre produzido pelo soquete de madeira que, em copo grosso, misturava cachaça, açúcar modesto e gelo.
E os encantos que vinham de um apartamento do edifício. Tinham o nome de Maria Doroteia. Quase Miss Brasil.
22- Imagens e sabores que se foram de uma década, sem volta.
23 - Interessante ver, nas noites de domingo, algo que ninguém organizava, mas se cumpria com rigor. Era o ”footing” da Halfeld. Moças e rapazes subiam por um lado, desciam pelo outro, até se cansarem ou se esquecerem. Com detalhe curioso: a rapaziada negra ia até o Palace, e voltava. Ninguém determinou que se fizesse essa separação racial. Mas era assim. O costume só se rompia no carnaval, quando tudo podia, e os brancos avançavam, desciam e iam se divertir no famoso Baile dos Casados, do salão do Hotel Palace, altar profano em que muitos casamentos balançaram ou se desfizeram de vez.
Esse caso do ”footing”, prefiro debitá-lo à distinção de classes, que foi se extinguindo, aos poucos, suavemente, um processo quase imperceptível. A missa dos pobres era às 8, a dos ricos às 10; uns dançavam no Mineira, outros no Raffa’s. Quem podia mais era eleitor do Brigadeiro Eduardo Gomes, mas pobre que se prezava dava o voto a Getúlio Vargas. Filmes? No Palace e Central; ou Popular. As boas camisas estavam na Glamour ou na Miami, da família Miana, e para compras mais modestas virava-se para a Marechal. Rapazes ricos frequentavam os DAs das tardes de domingo no Clube Juiz de Fora. Aos pobres, o Elite, onde a porta-bandeira Judith era um mundo de simpatia. Estudar? Academia, Granbery e Machado Sobrinho. Quem não podia, Grupos Centrais.
24 -Tudo muito bem separado, como se pôde ler, em 1950, no artigo que o professor Henrique Hargreaves, líder do laicato, publicou na prestigiosa revista católica “A Ordem”. Referia-se exatamente a Juiz de Fora:
“O mundo patronal e o mundo operário existem, cada vez mais como dois mundos fechados e impenetráveis. Cada um se concentra em si mesmo”.
25 - Já penso em deixar a Halfeld. Porém, não sem, antes, remexer a memória e voltar ao velho Cinema Palace, na esquina da Batista de Oliveira, com um salão de profusão de luzes coloridas, alternando-se. Antecediam a projeção dos filmes, ao som do prefixo cantado por All Johnson. Nas tardes das quartas-feiras tinha sessão feminina, com ingresso “meia”, de estudante. Homens não entravam, contentavam-se em se concentrar junto à porta, e assistir à saída de formosas e das nem tanto. As moças gostavam de simular desinteresse, desviando os olhares para o prédio de frente, onde o português Armando Silveira mantinha o Jardim das Noivas.
26 - Revolvendo idos de seis décadas, não seria permitido olvidar os carnavais da época, nem sempre dependentes das escolas de samba, algumas então famosas, como Turunas do Riachuelo, Juventude Imperial, Castelo de Ouro. O carnaval vinha com outros atrativos, como os blocos, além de uma vigorosa disputa entre os clubes, com seus bailes, esticados até o amanhecer, pois era questão de honra. Sport, Bom Pastor e Clube Juiz de Fora acompanhavam, pelo rádio, qual estaria disposto a fechar o último baile. Os foliões persistentes rompiam a Quarta-Feira, e não se vexavam de esbarrar com famílias conhecidas, que saíam da Catedral com a cruz de cinza na testa, piedosa inauguração da Quaresma.
As fantasias, que mais tarde deixavam os clubes para se tornar atração nas escolas de samba, merecem citação à parte. Gente de todas as classes ia para a entrada do Clube esperar a chegada de Márcia Dutra e Elinelia Jucá, desfilando exuberantes criações. Ou as fantasias ficavam só na avenida, vestindo Jambico, Jairo, Jorge Schuery, Jacy de Souza, Zezé Garcia. Outros? Sim, muitos outros, mas quase todos já sem vida.
27 - Recolhendo fatos diversos, sabendo que não bastariam para traçar o jeito de ser da cidade e as gentes dessa época, volto a lembrar que estou longe de ser a fonte apropriada para versar sobre a matéria. Os eventuais leitores, se pacientes e tolerantes, se satisfarão com essas notas esparsas e fora de ordem da vida urbana daquela antiga Juiz de Fora.
28 - Os cinemas e os jornais da época traçaram destinos solidários. Curioso. Viveram momentos de glória e foram morrendo, juntos, aos poucos. O Cine-Theatro Central, famoso por causa do tamanho e das pinturas de Angelo Biggi, contava com duas movimentadas guarnições em galerias. No lado direito, a Remington, escola de “máquinas de escrever”. Dezenas de alunos treinavam, teclando, dia e noite, o a.s.d.f.g, metralhando os ouvidos de quem passasse por ali. Ai de quem não soubesse datilografia! Do lado esquerdo, o Bar Tropical, especializado em sandubas, o Faisão e um salão de leitura e jogos para jovens, mantido pelo padre Isnard da Gama, festejado latinista. Dava-se ao luxo de escrever piadas na língua morta.
Já se falou sobre o Palace, mais chique que o Popular, de João Carriço, criador do cinejornalismo. Além desses, o Glória, onde a garotada vendia seus gibis para poder assistir aos seriados das 3 da tarde, com Flash Gordon e Roy Rogers. Outros cinemas eram o Rex, São Mateus, São Luiz, Paraíso e o FEEA, todos desaparecidos.
29 - Os diários. Vinha de bem antes, 1912, o Mercantil, fiel às ideias conservadoras de Antônio Carlos e João Penido, mantido com a tenacidade de Renato Dias Filho, e, mais tarde, incorporado à rede dos Associados, da qual nasceu o Diário da Tarde. Disputavam leitores com os textos de Paulo Lenz, da Gazeta Comercial. Mais A Tarde e Folha Mineira. Lia-se muito. A televisão ainda não podia fazer sombra e concorrência.
Espalhavam-se por aquelas Redações algumas das mais belas figuras de intelectuais da cidade, como Almir de Oliveira, repórter com olhos atentos na política, onde criou adversários, mas por todos respeitado. No Mercantil, militavam muitos que ganhariam prestígio na literatura, com Cleonice Rainho, Gilberto e Cosete de Alencar, Robertson Plisck, Paulino de Oliveira, Guimarães Vieira, Jair Lessa, Luiz Stheling, Adhemar Jardim, Wilson de Lima Bastos. Vários dedicavam-se à História do município. Foi também através daquelas páginas que o professor Henrique Hargreaves e Alceu de Amoroso Lima trocaram famosas cartas sobre a filosofia cristã. Guardei os textos originais.
Registre-se, também, que foi em 1953, no Mercantil, que Lindolfo Gomes, chegado de Guaratinguetá, fez a primeira campanha pela preservação do patrimônio histórico. Queria o tombamento da velha fazenda do juiz-de-fora, no Vitorino Braga, primeiro berço da cidade, ameaçando sucumbir, de vez, nas ruínas. Em vão. Começavam a soprar os primeiros ares da onda imobiliária.
A imprensa serviu de pouso para a militância intelectual, porque raros os que podiam publicar livros.
30 - Se indispensável algo sobre os esportes, julgo prudente consultar Ronaldo Dutra Pereira, que domina o assunto. Lembrou que 1959 foi de particular importância, ano em que a seleção de futebol de Juiz de Fora representou Minas no campeonato nacional. Os times mais conhecidos eram Tupi, Sport, Tupinambás e Volante, este formado apenas por motoristas. Craques eram muitos, alguns com nomes que foram além dos limites da cidade, como Toledinho. E Francinha e Aloísio Tavares, que jogaram no Flamengo.
Era intensa a prática de muitos outros esportes, não apenas futebol. Mas foi fora dos gramados e das quadras que a cidade iria para o Guiness: Francisco Queiroz Caputo estava colecionando mandatos como presidente do Sport, cargo que ocupou, ininterruptamente, durante meio século. Campeão do mundo.
31 - Em junho de 58 morria, na Santa Casa, o primeiro bispo, dom Justino José de Santana. Deixava para trás uma Igreja que o preocupava, diante dos sinais de divisão entre a linha conservadora, à qual se filiava, e a corrente mais progressista, simpática aos dominicanos dos freis Eliseu, Alan e “Japi”, que pretendiam tornar a religião mais próxima dos desassistidos. Celebravam missa no seu colégio ou na capela do Stela Matutina.
O laicato tinha expressão intelectual. Foi o que concorreu para a fundação do Instituto Cultural Santo Tomás de Aquino, onde pontificavam Henrique Hargreaves, Wilson de Lima Bastos, Joaquim Ribeiro de Oliveira, Mauri Pinto de Oliveira, Max Junqueira, Celina Viegas, Mozart Teixeira, Hilda Nardeli, Artur Arcuri, Cid Carvalho, Wilson Beraldo. Mantinham-se os jornais Lampadário e Lar Católico, este com uma invejável coleção de assinantes. Raras as cidades no Brasil em que alguém não o lesse.
Beraldo, consultor dos negócios do bispado, teria meteórica passagem pela política, ao contrário do pai, João, que governou Minas por alguns meses. Elegeu-se deputado estadual, o que o entendiava. Dizia-se que, certa vez, impressionado com a desatenção dos pares ao subscreverem requerimentos, sem saber exatamente o que neles se propunha, incluiu, entre outros, o ”projeto” que pedia a extinção do Estado de Minas Gerais. Não é que vários, sem ler, assinaram tal monstruosidade? Ele ria do episódio, mas não o confirmava nem o desmentia.
32 - Viagens para o Rio. Quem tinha pressa e dinheiro, ocupava um dos quatro lugares da limousine de aluguel. Viações Lord e Diana. Caso contrário, embarcava na rodoviária, em frente à fábrica Bernardo Mascarenhas. Sete horas dentro do ônibus, com breves paradas em Matias Barbosa, Três Rios e Petrópolis, depois de muitos passageiros se alimentarem com pedaços de frangos misturados em farofa.
Além do suplício das centenas de curvas e os solavancos da União e Indústria, que teimava em seguir fielmente o curso do Paraibuna, quem ocupasse os bancos traseiros podiam viajar com a desagradável paisagem das janelas sujas dos restos de vômitos que vinham dos bancos anteriores. Uma tragédia, que só terminaria na Praça Mauá, onde, sacrificados e destruídos, sonolentos e pálidos, os passageiros davam a impressão de círio pascal saído de longa procissão.
Suaves eram os bondes, que fizeram de Juiz de Fora a quarta cidade do país a adotar esse tipo de transporte. Eficientes, mas vagarosos. Um dia, passeando pela Avenida, o poeta Manuel Bandeira viu-os passar “sem pressa, dando voltas vadias”.
O trem mais famoso era o Noturno, que chegava do Rio às 22 horas, desembarcando passageiros com os amarrotados guarda-pós, que os protegiam da fuligem negra das locomotivas. Pelos mesmos trilhos, viria a confortável Litorina, que ia até Belo Horizonte. E o Xangai, saindo de Matias Barbosa para chegar a Benfica, especializado no transporte de operários.
Recortes das vidas vividas.
Mas vamos ao finalmente, que já é tempo.
Observemos que a década de 50 começou pedindo a proteção de Deus, com o Congresso Eucarístico, que dom Justino Santana organizou, para celebrar o primeiro centenário da cidade. E o fato auspicioso das eleições democráticas. A temporada haveria de fechar sua passagem pela História com algo não menos significativo: chegavam a bom termo os esforços para a criação da Universidade Federal, que o presidente Juscelino viabilizou, para se consolidar como referência no campo do ensino superior.
Dizia-se, então, que o presidente se redimira conosco, pois, antes, mesmo melhorando a estrada para Belo Horizonte, abrira também a BR-116, que nos eliminou como polo de comércio com a região Nordeste. Logo depois, levaria embora a capital federal, de cuja vizinhança sempre desfrutamos de proveitosos intercâmbios comercial, político e social. (Na década, ele veio mais duas vezes à cidade, oficialmente: em 57 para abrir trecho da BR-3, e, em 58, quando inaugurou o aeroporto e o Pronto Socorro).
Considere-se, contudo, que em 50, quando a presidência a República ainda era apenas cogitação do grande estadista, não foi dele, muito antes dele, mas das lideranças locais, o descanso em relação ao processo de esvaziamento econômico, acentuado com o advento da chamada Rio-Bahia. E, ainda mais distante, a incapacidade que tiveram para enfrentar outros desafios concorrentes, como o ramal ferroviário Ponte Nova - Mariana, que nos desviou do mercado da capital do Estado; além do deslocamento, sem resistência, da cultura do café para o São Paulo. Os líderes politicos adormeceram em cima de alternativas.
De certa forma, vierem compensações. Se perdíamos na produção e na economia, firmávamos como grande centro de prestação de serviços e referência de alto nível intelectual, com nomes das letras e do saber científico, como Franz Hochleitner, que chegou da Áustria, e nos projetou como polo americano de pesquisas da cultura maia. Na mesma galeria ilustre, há espaço reservado para Nélson Travinik, que aqui criou e manteve o Observatório Flamarion, até que não mais suportou a falta de apoio oficial, e foi embora. Nascia, em 56, o Instituto Histórico e Geográfico.
Como desejei registrar, nas primeiras linhas, os anos 50 não foram melhores ou piores que os anteriores. Diferentes. As pessoas se conviviam mais, todos tinham a impressão que o tempo andava sem tanta pressa. Alguém disse (acho que Petronio Bax) que o tempo devia ser multado por excesso de velocidade. Mas a década que procuramos desenterrar, se comparada, também deixou saldo capaz de justificar alguma saudade.
Muitos que leram até aqui dirão que faltou dizer. E faltou mesmo.
Setembro 2021, mês dos 15 anos de Helena e dos 8 de Arthur. Estes, sim, anos dourados.