terça-feira, 4 de abril de 2023

 


Tempo de via-crucis



((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))

Mesmo que não se saiba por onde andam os cuidados religiosos do presidente Lula, e se dá importância a isso, é possível que nestes dias de semana um pouco mais santa ele atente para o fato de que também está vivendo sua via-crucis, sob o peso da cruz dos três primeiros meses de mandato, caminhando por um calvário tão antecipado, que, seguramente, não fazia parte de seus sonhos. Porque os espinhos que lhe incomodam a cabeça, longe de serem apenas obra dos adversários, começam sendo arranjo trançado no próprio governo, com gente de casa empenhada em disputas por poder e prestígio na fonte comum. Esse quadro, por maior que seja a simpatia dos apoiadores, empenhados em conter a fúria dos acontecimentos, clareou-se nos últimos dias, tanto pelo que se noticia como pelo que transpira. Seja como for, o presidente está trilhando uma via dolorosa, em parte por ele próprio criada, sem que surja no horizonte o providencial Cirineu.

Desencontro ameaçador é a divergência entre auxiliares. Enquanto uns desejam governo vocacionado para imposições políticas, em nome da popularidade, outros, em confronto, estão nas equipes técnicas, ou mais ou menos técnicas, mas todas com sensibilidade para saber que, chegado o momento adequado, é preciso tirar da gaveta algum remédio amargo destinado a conter dificuldades na economia. Aliados de dentro e os desalinhados de fora que querem entrar têm ajudado a aquecer o termômetro. Quanto a uns e a outros, o difícil é saber até que ponto a corte permanecerá fiel.

Se o clima tem perturbações na cozinha de casa, que já andava tenso, para agravá-lo associam-se e contribuem sinais de conflito nas bancadas governistas do Congresso, onde senadores e deputados não precisaram mais que três meses para levantar questões pontuais, que, bem analisadas, revelam o propósito de testar a Presidência da República na sua capacidade de dar atendimento às postulações partidárias. Há dias, o PSB do vice Alkmin advertiu que a base ainda carece de reforços. O que não deixa de ser um complicador a mais.

Ainda que o setenário santo recomende tempo para reflexões e convivência harmoniosa, é evidente que Lula tem mais pedras para ameaçar tropeços, como se vê nas negociações para tramitação de Medidas Provisórias, porque os parlamentares não dão fé na boa intenção de se privilegiarem as que tratam de políticas sociais. Por isso e por outras razões, insistentemente desafiador, o Congresso ajuda a balançar o arcabouço da reforma fiscal.

E, acima de tudo, no que mais incomoda, são as pressões da CPI, com consequente abertura dos arquivos da ABIN, sobre o trágico 8 de janeiro. Eis um dia verdadeiramente mal explicado.

Providencial e refrescante para Lula, como a toalha de Verônica, veio a pneumonia, pretextada para mantê-lo em resguardo por sete dias, levando-o a desistir de compromisso internacional de primeira importância, como também ganhar algum fôlego para descongestionar os brônquios e a política. E ver também como enfrentar os ventos pouco propícios da volta de Bolsonaro ao país, que certamente não chega para bater palmas, muito menos pedir paz e desejar boa Páscoa.

No tempo dos generais

Com a decisão das lideranças militares de excluir comemorações oficiais no aniversário do golpe de 64, o que veio contribuir para conter excessos, tanto de simpatias como sentimentos hostis em relação àquele episódio, resta aos historiadores desapaixonados a tarefa de cuidar, além de tudo que já se disse, da vida dos generais das seis décadas de poderes ferozmente concentrados em suas mãos. É preciso que se fale mais sobre eles; o que foram, o que quiseram ou não puderam na intimidade com o poder discricionário. Porque é certo que em alguma coisa eram diferentes, embora se igualassem nos compromissos com a larga temporada de excepcionalidade. Ou as diferenças não representam maior significação? Mesmo alinhados como ditadores, uns melhores que os outros? É preciso saber melhor, periciar o papel de cada qual. Para tanto, já temos a favor um horizonte distante, o que é bom para dar à História, preservada em relação a paixões e preconceitos. Em geral, aqueles generais são citados apenas como ditadores, como se isso bastasse. Seriam idênticos em tudo, o que não tem correspondência com a verdade. Com o fato incontestado, para servir de ponto de partida a novas reflexões, que os presidentes de 64, salvo João Figueiredo, não conseguiram cumprir o que solenemente haviam prometido a favor de um governo que entendiam como ideal. É um detalhe que nem sempre figura como questão essencial.

Quase seis décadas passadas, a poeira do tempo já não pode perturbar a melhor visão crítica da História sobre o prometido e o não realizado, e a informação daqueles homens sobre os porões e corredores. onde excessos eram praticados. Qual sua responsabilidade pessoal naquilo?

General Castello Branco, empossado no mesmo 64, disse que passaria o cargo a um civil no ano seguinte. Não só descumpriu, como prorrogou o próprio mandato. Dissolveu os partidos, suprimiu direitos e eliminou eleições diretas, em nome de uma nunca bem definida “emergência revolucionária”.

Menos polido, mas igualmente apregoando compromissos, o general Costa e Silva assumiu, dizendo que deixaria o governo sem o horror dos Atos Institucionais, sendo que nem ele mesmo conseguiria chegar ao fim do mandato, surpreendido por um derrame cerebral. Veio Garrastazu Médici, com a boa nova de que acabaria com a repressão; pois foi exatamente sob sua passagem que mais se torturou e mais se matou. Quando chegou o general seguinte, Ernesto Geisel, com ares de sisudez prussiana, as promessas aliviadoras eram as mesmas, mas também irrealizadas. Prometeu respeitar o Congresso, mas não hesitou em fechá-lo por causa de uma infantilidade do discurso do deputado Márcio Emmanuel Moreira Alves, para quem as moças não deviam namorar soldados… Geisel cassou e se tornou pai do Pacote de Abril. Um pacote de maldades.

O que antigos pesquisadores escreveram, e os novos devem confirmar, é que os generais de 64 assumiram e se mantiveram permanentemente em obediência à bandeira e aos tanques da Vila Militar, de onde saíam as ordens finais e traçavam-se os rumos do poder.

Diante de uma história em que tanto se prometeu e tanto se descumpriu, a exceção foi, no fim do ciclo da excepcionalidade, o presidente João Figueiredo, que, reagindo a pressões dos gabinetes, promoveu a reabertura política, a anistia e devolveu o governo a um civil. Não chegou ao cargo pela via democrática, mas foi diferente dos que o antecederam.

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