Um dos últimos legados do governo Temer foi a sanção da Lei 13.509, que dá um passo à frente na política de adoção de menores, matéria que vinha se regendo, até então, por normas superadas, em contraste com as crescentes necessidades, como revelam os abrigos e as entidades de trabalho voluntário, dedicados a receber crianças prematuramente órfãs ou enjeitadas pelos pais, que vivem pelo mundo em relações mal sucedidas. A nova lei pretendeu removeu obstáculos que se criavam para famílias candidatas a receber esses menores, mas ainda persistem exigências burocráticas em relação aos adotandos. Os entraves, quando excessivos, causam espécie, porque dificilmente um menino abandonado ou provisoriamente recolhido em creches entrará em um lar, em vida, nova para piorar. No Brasil, precisamos facilitar muitas coisas que cercam o cotidiano das pessoas, e essa é uma delas.
Dados recentemente atualizados indicam cerca de 9 mil meninos e meninas estão com salvo-conduto pronto para ganhar uma família, sem que faltem casais dispostos a assumir o encargo. Não raramente, acabam desistindo, por causa da burocracia, quando tudo poderia estar solucionado em trinta ou quarenta dias. Não obstante a nova lei e os progressos que trouxe, o governo ainda permanece devedor de iniciativas que estimulem casais organizados a oferecer abrigo. Se por nenhuma outra razão, que seja pela certeza de que cada menino adotado é uma esperança de educar e preparar o cidadão para escapar dos vícios e do crime. Vejamos o que a equipe do presidente Bolsonaro tem a dizer a esse respeito, e o que pode fazer.
Já se ouviu dele uma vigorosa promessa de combate frontal à burocracia, onde reside a origem de alguns dos grandes males nacionais. Quando prima pelo excesso, além de se servir como fonte de corrupção e tráfico de influência, esparrama seus males em todas as direções. Tem servido também para atravancar a vida de centenas de meninos e meninas, quando lhes acena um futuro melhor.
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Ficou apagado na poeira do tempo o dia em que, pela primeira vez, um ser humano compadeceu-se e adotou uma criança órfã, algo que teria merecido especial registro num daqueles originais rabiscos de caverna. Muitos milhares de anos atrás, o homem acabava de ficar de pé, rompia com a ancestralidade selvagem dos macacos, e então conhecer um tênue sentimento de solidariedade. Num dia que se perdeu no amanhecer da civilização, alguém acolheu em sua caverna o menino cujo pai não havia voltado, com vida, da caçada. Não há como dizer que foi assim. Se não foi, pode ter acontecido algo semelhante. Primeira vez.
Há pensadores que não duvidam em considerar aquele gesto pioneiro, juntamente com a comensalidade, passo inicial na marcha da civilização. E aí caminhou, como símbolo da solidariedade humana; aquela que, dois mil anos passados, o Cristianismo adotaria como vértice salvífico. E nela, por que o acolhimento da criança abandonada deixaria de figurar? Para tanto, a Igreja valeu-se dessa origem: todos viraram filhos adotivos do Cristo, a despeito dos burocratas romanos.
A grandeza da adoção, testemunhada por algumas grandes personalidades, que dela se valeram ( um adotivo que se desvirtuou foi Brutus ao golpear César), muitas vezes excita poetas e prosadores, tentando descrevê-la. Em vão. Difícil traduzi-la em palavras. Talvez tenha sido Padre Vieira o que se saiu melhor. No sermão do Carmo, em São Luiz do Maranhão, 1659, diria simplesmente que “o filho natural ama-se porque e filho; o adotivo é filho porque se ama”.
A burocracia é um estado de espírito que insensibiliza as pessoas para as dores dos outros, à força de superar suas próprias frustrações
- Carlos Lacerda, em “O Cão Negro”
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