Col no "Jornal do Brasil" 13 fev 19
Paciente presidente
Faz lembrar abril de 1985. Os corredores e apartamentos do hospital onde Tancredo Neves padecia, para depois entrar em agonia, haviam se transformado em instalações palacianas, ministros, assessores e políticos com trânsito, sem que alguém os contivesse, nem em nome do risco de infecções fatais. Contou-se depois que no próprio gabinete cirúrgico a maioria era de pessoas totalmente estranhas aos procedimentos.
Quando num hospital, quem se submete ao tratamento não é presidente; é um paciente; naturalmente fragilizado, com o organismo enfraquecido pela inércia física e o acúmulo de medicamentos, muitos dos quais concorrem para gerar indisposições. Não haveria de ser diferente a experiência de Bolsonaro.
Soa como imprudência instalar um gabinete do governo em um salão do hospital, onde ele é acumulado de problemas e tensões, quando a ocupá-lo nada mais se devia permitir além de repouso e descanso, que são essenciais para a restauração de quem só agora, cinco meses depois, escapa dos incômodos da colostomia. Despachos inadiáveis são problema para os ministros resolverem.
Os médicos não devem se constranger em desautorizar visitas, que, quanto mais bem-vindas, mais contribuem para cansar e infeccionar. É assim em qualquer lugar. Quando o presidente Figueiredo foi a Houston, para submeter-se a uma cirurgia cardíaca, Ronald Reagan desejou visitá-lo. Foi desaconselhado, pelas mesmas razões que em S.Paulo deviam polpar Bolsonaro. Por que fotos na sua privacidade, pastas carregando problemas, pronunciamentos sobre mortes ilustres, cobrança de inquérito sobre o atentado de que foi vítima. Que paciente é esse?
Nos dias finais de Tancredo o país parava para ouvir o assessor Antônio Brito ler boletins médicos, que nem sempre retratam o real quadro clínico: ou vagos, aumentando as ansiedades de milhões. Há um detalhe significativo: o que esses comunicados significam para os médicos não é o mesmo que traduzem para a política.Adescoberta de “uma sombra que sugere pneumonia” tem leituras diferentes, da mesma forma nas especulações sobre a alta do paciente: quando é ampliado o tempo de internação, aadministração e os políticos logo lançam previsões pessimistas.
|Nós, a estatística
Quando se vê a obra sinistra da insídia e da falência dos governos, ao mesmo tempo em que escapa da sociedade o culto aos valores, começamos a pensar que já não mais somos gente; somos a pessoa condenada a ser mera peça de estatística. Caducou o direito à individualidade. Somos números. Desliza uma represa de rejeitos, morrem 150; os tiroteios já não se comprazem com um morto, são 10. Alastra-se o fogo do descuido, e lá se vai, prematura, a vida de 10 meninos, que nem tiveram tempo de sonhar direito com seu futebol. Chove abundantemente no Rio, morrem sete, o prefeito confere as estatísticas, novas e antigas, e diz, com ar de fatalidade, que encostas sempre constituíram problema para os cariocas; sem que se leve em conta o vasto tempo que ele e outros tiveram para corrigi-lo. Não se fala nisso, até que venham outros acidentes.
Observe-se que desde as barragens até as escarpadas do Rio, as tragédias acontecem e vão continuar acontecendo, pela ausência de precauções; estas inexistem, porque deixamos de ser gente; somos números; e os números, quando tratam da morte, insensibilizam, quanto mais alto forem.
Esses criminosos dos nossos dias, que matam porque fazem as coisas mal feitas, incrivelmente aprenderam a não prejudicar o sono, desconhecendo a impessoalidade de suas vítimas, transformadas em dados de um ramo da matemática. E dormem, para acordar e de novo oferecer desculpas vazias: a sirene enguiçou, foi a chuva, o fogo foi culpa dos fios.
“A morte de uma pessoa é tragédia, mas a morte de muitos é apenas uma estatística”.
- Stalin, ditador russo
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