terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

 



A desordem partidária


(( Wilson Cid, hoje, no “Jornal do Brasil”))


Essa desarrumação partidária em que vivemos tem algo a ver com as inseguranças com que se veste a democracia brasileira, onde não tem faltado confuso jogo de cores e tonalidades, gerando uma espécie de marafunda em ópera burlesca. Disso resulta que nossos políticos são, a um só tempo, autores e atores, alternando-se entre vítimas e beneficiários, com um mesmo pano de fundo. Os partidos, em profusão, tornaram-se meros grupos, que se improvisam, navegam de acordo com os ventos da ocasião, preocupados apenas onde ancorar as conveniências. Já não se preocupam se o país destroçado corre o risco de encalhar.


Há quem ensine que, depois dos liberais e conservadores do Império, os partidos jamais escaparam da ditadura das improvisações; das momentâneas circunstâncias. Que digam os velhos mineiros, detentores de enorme influência na Velha República, hábeis na arte de ceder, mas sem abrir mão de certa prudência e do comedimento que faltam hoje. Nem foi exceção o arroubo de 1889, quando um diretório do PRM dissolveu-se para protestar contra a adesão de antigos monarquistas. Hoje as adesões se operam por atacado e a granel. Estão na moda.


Não é preciso escarafunchar páginas do passado distante, porque os dias que correm são o bastante para expor ao Brasil a quanto anda a fragilidade partidária. Têm razão os que se preocupam com isso. Porque não há como praticar a política sem partidos vigorosos, razoavelmente definidos e não tão frágeis como os temos agora. Ainda meses, para confirmar, viu-se o presidente Bolsonaro, mesmo com o Diário Oficial na mesa e a caneta na mão, fracassar na tentativa de organizar a Aliança para o Brasil, com a qual desejou hastear sua nova bandeira. Interessante é que, no contraponto, sem saber criar, ele se revela hábil para promover cizania e divisões.


Essas forças políticas se satisfazem com o poder imediato. A importância das legendas mede-se pelo momento, não pelo que pontificam seus programas originais, vaga e superficialmente lembrados. A balbúrdia que domina nesse campo nem exclui esquisitices. Bolsonaro, de novo citado, é um exemplo: ele desembarcou da nau vitoriosa do PSL, mas não saiu totalmente; mantém nele um pedaço do cordão umbilical que ficou da eleição de 2018.


Veio fevereiro, e logo deixou sua marca no painel da falência dessas organizações. A eleição dos presidentes do Senado e da Câmara revelou-se um festival de deslealdades partidárias e ideológicas. O senador Rodrigo Pacheco não se acanhou de eleger-se na garupa de momentâneo conluio, que aproximou esquerda e direita, enquanto na Câmara, sob inspiração não diferente, assistia-se a uma singular disputa pela Segunda Secretaria, quando a candidatura avulsa de Marília Arraes, do PT, bateu, com apoio de adversários ideológicos, dois outros petistas... Outro estupro da unidade de bancada machucou gravemente o deputado Rodrigo Maia, antes o expoente consagrado do DEM. Caiu atirando, denunciou traições, e afivela as malas para buscar outras plagas.


Sem serem exceção nesse enredo de tensões aparecem os tucanos. Anteciparam divergências internas para cuidar da sucessão presidencial, confiando ao governador Dória a construção da desarmonia, como se desejassem, com ele, sepultar a primeira realidade de qualquer eleição, que é somar, para depois multiplicar. Nessa hora, dividir é tropeço só para principiantes.


Interessante observar que, mesmo quando a ditadura podia se impor, nem assim os generais hesitaram em juntar as forças que a apoiavam; pelo contrário, foram elaborados poderosos instrumentos para mantê-las unidas em torno dos princípios da fidelidade. Foi com essa intenção que o generalato e juristas de plantão não tardaram em inventar as sublegendas, o voto vinculado em eleição majoritária e o bipartidarismo amarrador. Muitos governistas, fiéis por conveniência ou por submissão, marcharam como se fossem os Voluntários da Pátria: mãos amarradas nas costas, fuzil na nuca e pouca reclamaçãoEntendiam os ditadores que fidelidade partidária é preciso, ainda que artificial, sob o tacão das gemadas.


Quando as tropas de 64 e seus comandantes deram adeus aos políticos, e voltaram aos quartéis, sem olhar para trás, como a mulher de Jó, para não verem as ruínas salgadas, as lideranças civis sobreviventes cuidaram de buscar espaços. Com tanto tempo de limitado oxigênio, queriam um lugar ao sol, com escassos ideais, carregando apenas a promessa de redemocratização; aliás, para confirmar uma tradição muito nossa: somos um país com mais redemocratização do que democratização.


Depois dessas longas temporadas de experiências, parece claro que a política nacional se ressente de partidos mais nítidos, melhor definidos quanto à forma e ao conteúdo; quando deviam estar reduzidos a um número capaz de abrigar e representar as diversas correntes do pensamento nacional. Longe dessa fartura de 33!, que desobriga a todos de preservar um mínimo de identidade.


Há duas decorrências significativas causadas pelas distorções analisadas. A primeira é que os partidos, da maneira como se mostram, tornaram-se robusta contribuição para desestimular jovens e velhos a se filiarem, porque não conseguem ver neles um atrativo real. Pergunta-se aos jovens, hoje, em qual dessas 33 siglas gostariam de filiar-se. Certamente, preferem confiar seu ideal a um time de futebol, porque ali, ganhando ou perdendo, seja quem for o dirigente, sempre fica a coerência. Decorre também da indigência dessas representações o vácuo que se abre à incursão de segmentos estranhos à política, o que costumeiramente se dá entre evangélicos e militares.


Pois bem, pelo que se vê, com esses partidos, como são e como estão, não vamos sair do lugar para ir a lugar algum.



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