Não há seriedade
((Wilson Cid, hoje, no"Jornal do Brasail" ))
É desagradável, mas nem por isso merece omissão a realidade de um país empenhado em colecionar aberrações, a mais recente das quais vem da Câmara dos Deputados, com generosa lei que alivia administradores corruptos ou incompetentes. Já não serão mais castigados com a inelegibilidade, mas condenados, quando muito, ao pagamento de multas. É sabido que a multa é sempre inferior ao prejuízo do mal causado, de forma que pode ser paga sem maiores sacrifícios. Os faltosos são inelegíveis desde uma lei de 1990, e a intenção de reformá-la sobe agora ao Senado, embalada por uma suspeita ”segurança jurídica”. Falta seriedade.
Esta e outras situações em curso fazem pensar na necessidade de o Brasil passar por uma poderosa carga de moralidade no trato da coisa pública, e no rigor do cumprimento das leis; estas, coitadas, muitas vezes sujeitas a conveniências obscuras. É preciso construir um país sério, aquele a que teria se referido Charles de Gaulle; coisa que ficou como indelicadeza sua, até que o embaixador Alves Souza Filho assumiu a paternidade da frase, numa entrevista neste JB. Mas, de onde quer que tenha saído, a admoestação veio ganhando perenidade. A seriedade no trato da coisa pública continua sendo a aspiração de nossos dias.
Colecionamos esquisitices e deslizes, para acolher a conhecida queixa de Calógeras, para quem vivemos num Brasil de fato, que nada tem a ver com o Brasil legal. Daí termos de conviver com situações escabrosas, mesmo no campo de coisas seriíssimas, como a constituição da CPI da Covid 19, onde não faltam senadores em cujos ombros pesam graves suspeitas de práticas criminosas. Foram transformados, de culpados em julgadores; e, não satisfeitos, investem-se dos atributos de tribunal inquisitório, diante do qual, se não faltam culpados, há também depoentes honestos, desejosos de colaborar na elucidação dos fatos. Espanta ver, em muitos casos, a arrogância digna de Torquemada e da Baixa Idade Média. Muitas vezes, nem se respeitam as regras mínimas da educação.
Fala-se de uma CPI resultante de imposição do Supremo Tribunal, ante a singela obediência do Senado. Depois, a mesma corte, incursionando nos deveres do Congresso, decide que os governadores estão desobrigados de depor em Brasília, ainda que vários deles, por insídia, incompetência ou corrupção, deixaram de aplicar bilhões no combate à epidemia.
O que não falta nesta terra de perplexidade são denúncias e suspeitas; de tão volumosas que, independentemente de serem fundadas ou não, acabam tendo de ganhar o destino dos arquivos mortos, o que também pode ocorrer com a promessa, ainda não cumprida, do presidente da República, de provar fraude na eleição de 2018. Denúncia grave, mas com todos os jeitos de descambar no esquecimento, onde já repousam condenadas tanto as coisas sérias como as lorotas. É o que, aliás, geralmente se observa nos inquéritos policiais: 30 dias para se apurar o que não foi apurado, e mais 60 dias de prazo prorrogado. A prorrogação é suficiente para se chegar a conclusão nenhuma… No caso da fraude, Bolsonaro sabe que terá de se contentar com a suspeita, o que lhe bastaria, porque não tem como elaborar provas consistentes. Dentro de pouco tempo não se fala mais no assunto, o que também pode estar reservado para a CPI da Covid, se os senadores não deixarem de lado a intenção de complicar o que já é complicado pela própria natureza dos fatos que analisa.
Não há, no país, safras maiores que inquéritos inconclusos, mesmo quando se referem a casos gravíssimos. Tornam-se esquecidos, como se fossem coisas impertinentes para os poderes. Os exemplos são incontáveis. Apenas para lembrar um que é histórico, confirmando nossa imensa capacidade de esquecer: em menos de um ano, de agosto de 1976 a maio de 1977, morreram, em condições mais que suspeitas, as três principais lideranças civis do Brasil: Juscelino, João Goulart e Carlos Lacerda. E tudo ficou por isso mesmo. É sempre melhor deixar pra lá, num país amnésico, memória curtíssima.
Violência que persiste
O relatório do primeiro semestre da violência urbana no Rio de Janeiro, se garante que melhoramos, em comparação com outros tempos, ainda sugere a escalada em que ela não cessa de crescer. Independentemente dos gráficos estatísticos, há alguns detalhes que, de imediato, atraem as atenções. O primeiro a considerar é o inabalável contingente de maus policiais que continuam oferecendo força subsidiária ao crime organizado e às milícias. Graças a essa deformação, a cidade pode estar caminhando, a passos largos e seguros, para um quadro irremediavelmente caótico na segurança: a lei e o crime, a justiça e a impunidade alinhados num mesmo status. Não seria apenas capricho de coincidências o fato de os próprios representantes do povo estarem a serviço do crime, como os governadores deste estado - condenados, encarcerados, indiciados ou suspeitos – que se locupletaram ou ajudaram outros a se locupletarem.
Se o desejável seria o poder público dar tudo de si para que os males se transformem em forças do bem, fato é que aqui vai se dando a inversão: o bem desceu ao mal. O corpo doente da segurança descambou para o aconchego dos traficantes e dos milicianos.
Outro detalhe doloroso e crescente do semestre findo, não menos inquietante, é o requinte de crueldade das balas perdidas, anônimas e desocupadas, sem origem e sem destino, que continuaram preferindo crianças e adolescentes. Onde houver inocências, é aí que elas gostam de desembarcar. Continuou assim neste semestre.
Na Idade Média, época em que o Brasil e o Rio eram terras virgens, a salvo dos navegantes, a violência ainda se combatia com mais violência, porque a ordem e o crime se confundiam, para a insegurança generalizada. Hoje, resta a dolorosa involução. Estamos de volta à barbárie.