terça-feira, 29 de junho de 2021

 



Não há seriedade



((Wilson Cid, hoje, no"Jornal do Brasail" ))




É desagradável, mas nem por isso merece omissão a realidade de um país empenhado em colecionar aberrações, a mais recente das quais vem da Câmara dos Deputados, com generosa lei que alivia administradores corruptos ou incompetentes. Já não serão mais castigados com a inelegibilidade, mas condenados, quando muito, ao pagamento de multas. É sabido que a multa é sempre inferior ao prejuízo do mal causado, de forma que pode ser paga sem maiores sacrifícios. Os faltosos são inelegíveis desde uma lei de 1990, e a intenção de reformá-la sobe agora ao Senado, embalada por uma suspeita ”segurança jurídica”. Falta seriedade.


Esta e outras situações em curso fazem pensar na necessidade de o Brasil passar por uma poderosa carga de moralidade no trato da coisa pública, e no rigor do cumprimento das leis; estas, coitadas, muitas vezes sujeitas a conveniências obscuras. É preciso construir um país sério, aquela que teria se referido Charles de Gaulle; coisa que ficou como indelicadeza sua, até que o embaixador Alves Souza Filho assumiu a paternidade da frase, numa entrevista neste JB. Mas, de onde quer que tenha saído, a admoestação veio ganhando perenidade. A seriedade no trato da coisa pública continua sendo a aspiração de nossos dias.


Colecionamos esquisitices e deslizes, para acolher a conhecida queixa de Calógeras, para quem vivemos num Brasil de fato, que nada tem a ver com o Brasil legal. Daí termos de conviver com situações escabrosas, mesmo no campo de coisas seriíssimas, como a constituição da CPI da Covid 19, onde não faltam senadores em cujos ombros pesam graves suspeitas de práticas criminosas. Foram transformados, de culpados em julgadores; e, não satisfeitos, investem-se dos atributos de tribunal inquisitório, diante do qual, se não faltam culpados, há também depoentes honestos, desejosos de colaborar na elucidação dos fatos. Espanta ver, em muitos casos, a arrogância digna de Torquemada e da Baixa Idade Média. Muitas vezes, nem se respeitam as regras mínimas da educação.


Fala-se de uma CPI resultante de imposição do Supremo Tribunal, ante a singela obediência do SenadoDepois, a mesma corte, incursionando nos deveres do Congresso, decide que os governadores estão desobrigados de depor em Brasília, ainda que vários deles, por insídia, incompetência ou corrupção, deixaram de aplicar bilhões no combate à epidemia.


O que não falta nesta terra de perplexidade são denúncias e suspeitas; de tão volumosas que, independentemente de serem fundadas ou não, acabam tendo de ganhao destino dos arquivos mortos, o que também pode ocorrer com a promessa, ainda não cumprida, do presidente da República, de provar fraude na eleição de 2018. Denúncia grave, mas com todos os jeitos de descambar no esquecimento, onde já repousam condenadas tanto as coisas sérias como as lorotas. É o que, aliás, geralmente se observa nos inquéritos policiais: 30 dias para se apurar o que não foi apurado, e mais 60 dias de prazo prorrogado. A prorrogação é suficiente para se chegar a conclusão nenhuma… No caso da fraude, Bolsonaro sabe que terá de se contentar com a suspeita, o que lhe bastariaporque não tem como elaborar provas consistentes. Dentro de pouco tempo não se fala mais no assunto, o que também pode estar reservado para a CPI da Covid, se os senadores não deixarem de lado a intenção de complicar o que já é complicado pela própria natureza dos fatos que analisa.


Não há, no país, safras maiores que inquéritos inconclusos, mesmo quando se referem a casos gravíssimos. Tornam-se esquecidos, como se fossem coisas impertinentes para os poderes. Os exemplos são incontáveis. Apenas para lembrar um que é histórico, confirmando nossa imensa capacidade de esquecer: em menos de um ano, de agosto de 1976 a maio de 1977, morreram, em condições mais que suspeitas, as três principais lideranças civis do Brasil: Juscelino, João Goulart e Carlos Lacerda. E tudo ficou por isso mesmo. É sempre melhor deixar pra lá, num país amnésico, memória curtíssima.



Violência que persiste



O relatório do primeiro semestre da violência urbana no Rio de Janeiro, se garante que melhoramos, em comparação com outros tempos, ainda sugere a escalada em que ela não cessa de crescer. Independentemente dos gráficos estatísticos, há alguns detalhes que, de imediato, atraem as atenções. O primeiro a considerar é o inabalável contingente de maus policiais que continuam oferecendo força subsidiária ao crime organizado e às milícias. Graças a essa deformação, a cidade pode estar caminhando, a passos largos e seguros, para um quadro irremediavelmente caótico na segurança: a lei e o crime, a justiça e a impunidade alinhados num mesmo status. Não seria apenas capricho de coincidências o fato de os próprios representantes do povo estarem a serviço do crime, como os governadores deste estado - condenados, encarcerados, indiciados ou suspeitos – que se locupletaram ou ajudaram outros a se locupletarem.


Se o desejável seria o poder público dar tudo de si para que os males se transformem em forças do bem, fato é que aqui vai se dando a inversão: o bem desceu ao mal. O corpo doente da segurança descambou para o aconchego dos traficantes e dos milicianos.


Outro detalhe doloroso e crescente do semestre findo, não menos inquietante, é o requinte de crueldade das balas perdidas, anônimas e desocupadas, sem origem e sem destino, que continuaram preferindo crianças e adolescentes. Onde houver inocências, é aí que elas gostam de desembarcar. Continuou assim neste semestre.


Na Idade Média, época em que o Brasil e o Rio eram terras virgens, a salvo dos navegantes, a violência ainda se combatia com mais violência, porque a ordem e o crime se confundiam, para a insegurança generalizada. Hoje, resta a dolorosa involução. Estamos de volta à barbárie.



terça-feira, 22 de junho de 2021

 


O estigma dos vices



(( Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil )) 



Dois fatos, recentíssimos, levam a uma reflexão sobre o papel dos vice-presidentes nas páginas da história política brasileira, metade das quais vividas e escritas por eles, muitas vezes recheadas de conspiração e traições, uma performance negativa que não vai encontrar semelhança no resto do mundo. O primeiro fato foi a morte de Marco Maciel, e, depois disso, a queixa, com toque de amargura, do atual vice, general Mourão, que vem se sentindo excluído das reuniões de cúpula do governo.


O pernambucano Maciel primou pela discrição, virtude rara entre os vices, que, em geral, não se julgam suficientemente reconhecidos no papel de uma suplência à mercê dos caprichos do destino. No governo Fernando Henrique foi presidente por 324 dias, e com isso haveria de liderar a permanência de um vice na cadeira do presidente, só desbancado, mais tarde, por José Sarney, abençoado pela tragédia de Tancredo Neves, de quem herdou os cinco anos de mandato. No oposto das durações, ganhamos outro recorde mundial, quando, na crise de 1955, Carlos Luz foi presidente por apenas três dias.


Mourão, pelo próprio estilo, não mereceria ser ombreado a um Manuel Vitorino, que se queixava muito, mas infernizou a vida de Prudente de Moraes, ao ponto de preparar-lhe solenes exéquias; não se nivela à impertinência conspiratória de um Café Filho, nem à impaciência de Aureliano Chaves, que mal cumprimentava João Figueiredo. Mas Mourão sente-se no direito a uma cadeira à mesa do governo, tratando-se de um ator permanentemente de plantão para eventualidades, o que lhe impõe estar familiarizado com as pautas diárias do poder. Quanto a isso, tem razão, mas deve estar sentindo que o sutil desprestígio é a antecipação de sua exclusão do esquema bolsonariano que tentará a reeleição em 2022.


Não há novidade em Brasília. Agora, como sempre, a convivência palaciana pode atingir o momento em que antigos companheiros de chapa não mais cruzam os projetos, rompem as tênues linhas de pensamento que os identificavam na campanha eleitoral. No melhor dos resultados, instala-se um clima de cordialidade gelada, para onde possivelmente estejam caminhando os atores de hoje.


A necessidade, ou mesmo a conveniência da figura do vice, nunca deixou de ser questionada, principalmente pelos que veem nos incontáveis estremecimentos com o titular um largo ensejo para crises políticas. Mas, sobretudo, questiona-se a necessidade. Esta, entre outras razões, inspirou o senador amazonense Jefferson Peres (1932-2008) a sugerir, em projeto, a extinção da figura do vice, ou, se muito, que seja apenas o sucessor, no caso de falecimento ou impedimento definitivo do governante. (Por morte, assumiram Nilo Peçanha, Delfim Moreira, Café Filho e José Sarney; por impedimento definitivo, Itamar Franco, no lugar de Fernando Collor). O vice não mais seria admitido como substituto, presidente por algumas horas ou poucos dias. Hoje, com os modernos recursos de comunicação, o titular decide e assina, em qualquer lugar do mundo onde estiver. Enquanto não for assim, ficamos com a singular impropriedade de dois presidentes despachando simultaneamente, um aqui e o outro além das fronteiras. Ora, se um costuma ser problema demais, imagine-se a fartura de dois…



                                          O terceiro caminho                                  




Ampliaram-se, embora ainda longe de amadurecerem, as propostas partidárias e de outros setores influentes, com vistas à construção de uma terceira via eleitoral para a presidência da República em 2022; de forma que o eleitorado não seja condenado a se manifestar e votar em um dos dois candidatos, que já têm trabalhado em clima de polarização de expectativas, o que é útil para ambos. A rota de uma alternativa é a primeira razão, mas é desejável que não seja a única, porque não basta que o terceiro seja apenas político de longas jornadas ou que  saiba xingar os adversários. É preciso que, como novidade, anime a nação com novas ideias, inove nas práticas políticas. Um estadista, acima de tudo.


A terceira candidatura à presidência não poderia estar restrita a uma rota de escape, variante para quem não se compraz em transitar nas vias preferenciais; os brasileiros que consideram, tanto Bolsonaro como Lula, já não têm bagagem para voltar ao poder, e ambos chegando às urnas arranhados e sangrando nas lutas que eles e seus adeptos têm travado com virulência cada vez maior.


Enganam-se, portanto, os que consideram que o terceiro  candidato, venha ele de onde vier, basta ser contra Bolsonaro, contra Lula ou quem a este o PT vier substituir.


O ideal é que haja uma proposta alternativa, não se pode desconhecer. Caso contrário, além de se ter o eleitorado gessado em duas candidaturas, uma parcela da população votante vai correr para os votos nulos e brancos, que, se chegarem a uma dimensão significativa, podem comprometer a legitimidade representativa de quem ganhar o novo mandato. Em últimas eleições, já foi possível contabilizar apreciáveis contingentes do abstencionismo, que, somado aos votos não computados, expõe a chaga de a sociedade descrente com os políticos. Porque, não raro, o cidadão aproveita a eleição para, injustamente, condenar a vala comum a política e os maus agentes que dela se servem.




terça-feira, 15 de junho de 2021

 

Quando a pandemia partir



(( Wilson Cid, hoje no ”Jornal do Brasil”))



Graças a uma comissão de inquérito, instaurada no Senado Federal, estamos diante da tentativa de apurar culpas pela tragédia que o país sofreu e ainda sofre, na passagem devastadora da Covid 19. Os senadores saem à caça do perfil de culpados, mas já antecipando visível intenção de onerar o governo, pelo que deixou de fazer, ou, se fez, incorrendo em equívocos, além das inseguranças na condução das políticas sanitárias. Com quase meio milhão de brasileiros defuntos, confiscados do direito de despedidas solenes, velados em ambientes restritos, realmente é preciso que alguma coisa fique minimamente clara; o que se espera, mesmo ante o temor da visível politização de questões pertinentes à ciência e à medicina, várias vezes relegadas, ante a preocupação inquisitorial que estimula certos senadores.



É possível, entretanto, que alguma responsabilidade fique definida, por mais que se suspeite da tradição das CPIs…



Mas, há uma coisa que não pode escapar das preocupações do Congresso Nacional, até porque elas já serão do domínio de toda a sociedade. Trata-se, primeiro, de encarar o conjunto de desafios que essa pandemia nos deixará como herança sinistra. Qual será - cabe indagar desde agora – o patrimônio das experiências e de ensinamentos que restará do rastro lutuoso, quando ela for embora. Que lições a aprender na lápide de meio milhão de sepulturas?.



Líderes religiosos têm se antecipado. Lembram Tomás, o grande doutor da Fé, para quem o mal que Deus permite é exatamente para ensinar; e, mesmo com dor, estimular o aperfeiçoamento da vida que segue. Santo Agostinho, que o precedeu, insistia na mesma reflexão, para garantir que Deus jamais permitiria a pandemia, que não fosse para dela tirar um proveito maior. Fazer nascer melhor sentido da vida, sem ganâncias excessivas, mas olhar para os excluídos, descer dos orgulhos, remir dos pecados. Um recado universal, pois todos padecemos das mesmas vulnerabilidades, fracos diante de um vírus que entra sem pedir licença, mata bons e maus, culpados e inocentes, crentes, ateus e agnósticos. Um vírus democraticamente assassino.



É duvidoso que tão profunda lição seja assimilada facilmente nestes tempos que preferem esquecer o passado, ainda que recente, porque prazeres e prosperidade são coisas do imediato. Mas é bom aprender, porque o futuro pode estar preparando outras surpresas, como a Covid de hoje, que escapou das previsões de Nostradamus e de todos os astrólogos de plantão…



É estimulante pensar no que virá depois da pandemia, quanto às relações entre as pessoas, no trabalho ou na convivência social, nesta hora confinadas e distantes, por medo do contágio. Reféns dos computadores. As crianças, presas nos apartamentos, com o ano letivo cambaleando, enganadas e enganando o pouco que não aprenderam nas aulas virtuais. E qual será a demanda de setores produtivos da economia, gravemente afetados? Como ficarão os sistemas de transporte, o comércio, os hospitais?, todos chamados, seguramente, a uma reciclagem que não fazia parte de seus planos.



Já não mais preocupado apenas em buscar culpados pelo desastre, ao Congresso se impõe a iniciativa de discutir rumos para o Brasil no pós-pandemia. Não faltam questões capitais, como a premência de uma legislação que permita ao país superar entraves para produzir insumos destinados a vacinas, sem depender da correria das importações. Como também – e aqui vai uma das primeiras responsabilidades das casas legislativas – traçar diretrizes para condutas sanitárias de abrangência nacional, evitando-se o que se tem visto: confrontos entre os governos central, estaduais e municipais. Convém lembrar que somos entes federativos. O Brasil é um só. A Covid 19 ajudou a construir essa advertência.



                                             Nós, os da selva



Um pedido de desculpas foi insuficiente para conter reações contra o presidente Alberto Fernández, que, num momento de fogoso patriotismo, definiu os brasileiros como gente saída das selvas, enquanto seus argentinos, mais bem formados e cultos, fizeram-se graças aos barcos europeus. No tropeço verbal, fez pouco caso dos portugueses, não menos europeus, também aqui aportados sob o sopro de ventos marinhos. Com fervor portenho, pouco antes, havia dito que o mundo todo se orgulhava de seu país.



Mas não é uma expressão atropelada, de mau gosto, que deve constituir preocupação maior. Pior que isso é, da parte de um governante, o repetido descuido no uso das palavras. Porque, quando, infelizes nas línguas oficiais, elas tendem a gerar dificuldades, como nesse caso mais recente, que vem dando trabalho à chancelaria de Buenos Aires. “Não foi bem isso que ele quis dizer”… Antes, o conterrâneo Francisco, Papa, brincando, não nos definiu como silvícolas, mas sugeriu ocupássemos mais tempo em rezar do que beber cachaça. Identificou aqui uma robusta identidade com as destilarias. Nada que seja capaz de nos recomendar à misericórdia de Deus.



Cuidado com as palavras!, porque sobre como o dizê-las haverá de se pedir estreita conta no Juízo Final, ameaçou o evangelista Mateus. Disso eram mais ciosos os políticos antigos. A não ser nos discursos lidos, só falavam o estritamente necessário. Um ajudante de ordens do presidente Dutra julgou-se premiado, quando ouviu dele uma raridade, a breve queixa sobre o calor que fazia em certa manhã. Não menos econômico, cultivando horror ao excesso de palavras, o governador Benedito Valadares queria que as reuniões do secretariado só se fizessem depois de tudo resolvido, para que se falasse pouco.



A loquacidade faz mal aos estadistas, e acaba comprometendo muitas biografias. E aqui, tão perto da bela capital argentina, o presidente Bolsonaro corre esse perigo, embora, quando fala, ganhe o aplauso de grande parte dos apoiadores. Deixa-se trair facilmente pelas palavras. Estou inclinado a achar que o verbo pode ser seu grande adversário, maior que o próprio PT, embora também ali não falte palavrório inútil; o palavrório, de ambos os lados, disputando a chegada ao segundo turno.



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terça-feira, 8 de junho de 2021

 




Um leão insaciável



((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" )



A poucos dias de expirar o prazo para o contribuinte encaminhar a declaração de renda, muitos, não necessariamente com a intenção de sonegar, preferiram deixar o cumprimento dessa obrigação para a última hora. Duas semanas antes, estimava-se que eram quase três milhões. São os que declaram, mas esperam a hora fatal, fenômeno que se repete todo ano; e acabou despertando a atenção do professor Renato Dimas, um dos mais recentes e ilustres mineiros a ter a vida ceifada pela Covid 19. Escreveu ele, certa vez, com o fervor dos mestres de tempos antigos, que a demora desses contribuintes não é descuido, mas uma forma de reagir ao fato de tratar-se de um imposto injusto; mais ainda, por praticar a maldade de incidir, em diferentes graus de tolerância, sobre ricos e pobres. Estes - coitados! - geralmente padecem dos descontos na fonte de trabalho, o que lhes garante a virtude cívica involuntária de não poder sonegar. Diferentemente do contribuinte poderoso, contemplado com a faculdade dos recursos e de certas deduções, que permitem escapadas tangenciais.


O imposto de renda, mais ou menos no formato que temos hoje, fará 100 anos em 2022. Valeria aproveitar o centenário para se propor a revisão do modelo, começando por conter o feroz animal que o simboliza, um guloso que exige para si o filé na partilha injusta. Para começo de conversa, caberia ao poderoso leão rever a abrangência da alíquota de 27,5%, um confisco que pesa demais, porque o estado dá em troca muito pouco; e esse pouco chega com imperfeições, corroído pela catástrofe da corrupção generalizada, que vem do poder central, sempre contido na hora de distribuir. Costuma-se dizer que em outros países cobra-se até mais. Mas a comparação é estrábica. Não enxerga tudo. Naqueles, o imposto que o contribuinte paga vai socorrê-lo no essencial, do berço ao túmulo.



A Reforma Tributária, repetidamente prometida pelo Congresso Nacional, podia lançar mão dessa oportunidade para que, no alcance de tudo que se pretende aperfeiçoar, cuide também de conter a gula  oficial. 


Em passado recente, José Nêumanne Pinto definiu bem esse imposto, que as pessoas só gostam de declarar na undécima hora. “Ao longo dos anos, o estado brasileiro protagoniza cenas explícitas de tirania cruel, deslavado desinteresse pela Justiça e covarde desfaçatez, quando espalha os bisturis com que esfola, sem piedade, os desprotegidos cidadãos da classe média”. Não há negar. Essa classe dos intermediários é sempre convidada a fechar o vácuo tributário deixado pelos pobres, que não podem pagar, e os ricos, que podem, mas sabem como não pagar.


Não passa sem lembrança o que, a propósito, contava o professor Miguel Reale, segundo o cronista já mencionado. Para  jurista, a tragédia da sociedade brasileira, frente ao imposto de renda ”é o próprio símbolo do fisco federal, o rei das feras, aquele que reserva para si mesmo, sem a menor cerimônia, o mais suculento naco da injusta divisão”. O resto da selva que se dane. Certamente também desejaria o mestre que o animal fosse contido, ou, pelo menos, não tão animado nas mordidas. Um leão ideal, como o Marrusko, que o poeta Murilo Mendes conheceu num circo do interior: desdentado, amnésico e vegetariano…



                                               O  risco do precedente



Muito se fala sobre a celebridade do momento, general Pazuello, já não mais por causa de seu desempenho na CPI da Covid 19, mas graças ao gesto insólito que o levou a participar de evento público e político, no qual a figura central era o presidente Bolsonaro. Li muito sobre o assunto, ouvi o suficiente do que se tem falado a respeito, mas sobre a atitude desse general falta destacar o que pode ser a promessa de um grave e embaraçoso constrangimento, muito possível de acontecer. Pergunto, então: e se um outro general subir ao palanque de Ciro, de Lula ou de qualquer outro para emprestar solidariedade a quem se lançar na disputa presidencial? Qual o superior que bateria o rebenque nas pernas do indisciplinado? Pazuello foi o primeiro, mas pode não ser o único.


O perigo, pois, está no precedente.


A esta altura da discussão sobre como lidar com o general, se o que se pretende é preservar o rito da disciplina, tão pregado pelas Armas, melhor seria aproveitar o pretexto de sua prestigiada volta ao governo, e convencê-lo a tomar o caminho da reserva, para não incomodar e não ser incomodado na ativa. Mesmo assim, punindo, o Exército tem de fingir que não lê sua própria história, ocupada com quarteladas e golpes, estes sim, muitas vezes, quebraram a disciplina, a hierarquia e ofenderam a Constituição. Mas, no modesto caso do general estrategista seria uma saída acomodatícia.


(Sempre haverá tempo para velhos panos quentes, que, mesmo sendo quentes, ajudam a esfriar tensões. Desaquecido o clima, também ao presidente deixaria de se impingir a acusação de colocar o generalato sob suas botinas capitãs).


O perigoso caminho que se abre, por força da precedência, a outras manifestações políticas que o Exército tem na conta de afronta à disciplina, é o que se sobrepõe a tudo que se disse e ainda se dirá sobre o episódio, que, para muitos, também mexe com as memórias dos idos de 64, quando a imprudência política, vestida de farda, ajudou a arrastar o país para a ditadura.


terça-feira, 1 de junho de 2021

 


Presidencialismo agonizante


(( Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil")) 



Não seria necessário qualquer exercício de futurologia para se prever, desde agora, a mais sadia contribuição com que o mandato de Bolsonaro e seus adversários vão marcar sua passagem pelo cenário político. Não há dúvida. Pelo que fazem ou falam, pelo que deixam de fazer e falar, estão escrevendo um dos capítulos finais de nossa acidentada experiência com o presidencialismo. O destino confiou a eles o que faltava para as exéquias do regime, e não se vexam de enriquecer, com novas dúvidas, os elementos que recomendam a grande mudança, um outro caminho; caminho que não seja o atual modelo político, que já há muito o pensamento civilista de Rui definia como grave irresponsabilidade, “uma ditadura em estado crônico”.


Os brasileiros, percebendo ou não, estão desacorçoados do presidencialismo, que, se nasceu capenga e defeituoso, veio perdendo, ao longo do tempo, força e capacidade para dar fôlego a uma nação que acumula ansiedades. Nesse mister, tanto Bolsonaro como os que o contestam vêm trabalhando, ombro a ombro, para mostrar que o modelo esgotou-se em si mesmo. E, por padecer de sérias moléstias intestinas, não tem mais como salvar-se. É preciso sepultá-lo de vez.


Isto posto, sabendo falido o que têm ajudado a enfraquecer, o melhor que podem fazer, esses atores que estão dentro do governo e os que o contestam, é propor à nação que comece a estudar as eficiências do parlamentarismo; como implantá-lo conscientemente, sem os atropelos de 1961, sem desconhecer as peculiaridades que nos diferem de outros países, onde o Gabinete já se revelou mais competente. Além de sua histórica virtude de impedir que seguidas crises políticas e administrativas coloquem em risco as instituições.


Vale considerar, de olho no passado brasileiro, que os tropeços da nossa democracia começaram, prosperaram, e mesmo quando se refizeram, jamais contaram com qualquer mérito do presidencialismo. Compreende-se: seu titular, aparentemente poderoso, mostra-se simultaneamente forte para fazer concessões, mas impotente para tomar decisões que requerem a coragem oportuna. Como fraco também tem se revelado frente à pressão das emendas parlamentares, que o vício acabou por transformar em moedas políticas, que tanto compram como silenciam.


Ideal que o 2022, que se avizinha, viesse para escrever o epílogo da crônica desse regime exausto, que viveu demais, sempre emprestando, entre outros defeitos, decisivo apoio à desorganização e ao enfraquecimento da Constituição, que durou quase intacta por 65 anos no Império, mas  com dezenas de retalhos ao passar pelas experiências republicanas. Na verdade, tal regime nem devia ter existido, como nota o professor Almir de Oliveira: em vez de termos procurado aperfeiçoar o parlamentarismo do Império, copiamos o presidencialismo e o federalismo americanos. Que pena.



A pizza é o destino?



As CPIs do Congresso Nacional costumam ser comparadas a pizza, porque acabam dando em nada, quase sempre por incorrerem em equívocos, entre os quais o fato de se prolongarem por tempo mais que o necessário. Seus organizadores não aprendem que os trabalhos devem ter curta duração, para não se perderem e nem perder o interesse da opinião pública. Como também desconhecem que convém manter os debates e depoimentos rigorosamente ligados às questões que originalmente inspiraram a criação da comissão, porque é na diversificação exagerada da pauta que acaba se condenando ao fracasso.


A que atualmente está em curso, em Brasília, pretende desvendar responsabilidades do governo em relação à Covid 19, mas pode descambar para o desinteresse, graças à longevidade que já a ameaça; e a tentação de faturar politicamente, ouvindo gente demais, o que facilita emaranhado conflituoso de argumentos para o relato final. (Costumeiramente, nas delegacias de polícia, é o que se vê nos inquéritos que pretendem apurar um crime. Basta ouvir muitas testemunhas para se elaborar o impasse, e os culpados voam impunes).


Sobre numerosos depoimentos e testemunhos de pessoas ligadas ao governo, parece perda de tempo querer surpreendê-las, extraindo delas a condenação do presidente; ora, é gente em maioria afinada com ele, pronta para desonerá-lo. Outro ponto: chamar nove governadores a depor talvez não sirva para incriminar quem quer que seja. Governadores, se forem à CPI, chegarão ao Senado apenas com a visão política dos fatos; e segundo as conveniências no momento. Vários deles, já se percebe, quando tiverem de abrir a boca, vão abri-la para eximir o governo e desculpar Bolsonaro daquilo que são acusados, isto é, descaso diante da epidemia e incompetências acumuladas, que já resultaram na morte de quase meio milhão de brasileiros. Aliás, na Comissão também já se sugeriu a convocação imediata do presidente, quando ideal seria deixá-lo para o fim, depois de se saber o que falaram muitos, contra ou a favor.


Mas o que realmente acaba comprometendo uma CPI é a intencional sobrecarga de atividades. Tem gente com habilíssima experiência para confundir e complicar, embora fazendo parecer que está ajudando… Se é possível complicar, por que simplificar?


Neste Rio de Janeiro, quando ainda capital da República, em maio de 1957 pretendeu-se cassar o mandato do deputado Carlos Lacerda, acusado de traição, por obter e divulgar documento secreto do Itamaraty. O inquérito, mesmo sem se deslocar do deputado, enveredou para as relações de Getúlio Vargas com o ditador Peron, as ambições continentais do peronismo, a famosa Carta Brandi, sindicalismo de João Goulart e até comércio ilegal de madeira de lei. Resultado: de tão confusa, a comissão de inquérito deu em nada. Os erros podem se repetir.