terça-feira, 27 de julho de 2021

 





Golpe, esse velho fantasma



((Wilson Cid, hoje no "Jornal do Brasil" ))



Essa história é mais que antiga, antes mesmo que Brasília se fundasse como capital. Nos parlamentos, como nos quartéis, quando se especula muito sobre a inconveniência de golpe de estado, é porque não falta quem o queira; e, para viabilizá-lo, conspira-se. Trata-se de velha e permanente atração para os que descreram dos caminhos legais e democráticos na solução dos problemas e dos desafios. É a razão por que nunca de dissipa, em definitivo, clima de conspiração que se tem sentidoSeja como for, uma vergonha o país, em pleno século 21, que já passou pelo vexame dalgumas quebras da ordem constitucional, ainda hoje ter de ouvir sandices e roupantes de façanhas patrioteiras.


Nos últimos dias não se insinua outra coisa, às vezes velada, outras explicitamente. É o assunto do palavrório em que se alternam civis e militares, estes não apenas os apijamados, mas também os da ativa, o que é mais grave.


agenda conspiratória tem a estimulá-la, entre os temas mais frequentes, umdemorada definição sobre como tramitao impeachment do presidente Bolsonaro; medida extrema que, no quadro atual, parece deteriorar-se por causa do acúmulo de pedidoque nesse sentido foram encaminhados à Câmara. Pediu-se demais, no atacado e no varejo, o que dá aos situacionistas argumento para esticar o assunto; além dos que têm dúvida se o presidente e seu governo são responsáveis e culpados únicos nas consequências da pandemia. Nesse caso, em particular, é interessante perceber que, quanto maior a evidência da responsabilidade, menor a possibilidade de construir o comprobatório, confiado ao erro juvenil que se cometeu em relação à CPI da Covid: na ânsia apressada de atacar o governo, cometeu-se o descuido de constituí-la de senadores altamente suspeitos. Dessa deformação aproveitam-se golpistas e antigolpistas.


impeachment é algo complexo, muito mais na ressaca dos dias seguintes, do que propriamente no momento da decisãoTanto que foi tentado apenas nove vezes em toda história da República, desde Floriano, e apenas em duas vezes consumou-se, mesmo assim porque Fernando Collor e dona Dilma não souberam transitar com desenvoltura política num Congresso que sabe como comporFazer acertos é aquela antiga vocação, que levou o ex-presidente Lula a ver ali nada mais que 300 “picaretas”; mesmo assim insuficientes para salvar a companheira Dilma da degola.


Outro componente a alimentar a incômoda discussão, que nem devia sair das fronteiras de republiquetas, está na atuação de setores militares. Tanto incursionam na área politica para falar da inconveniência de um golpe; tanto garantem que isso nunca se dará; tanto insistem em que não agiriam ao arrepio da Constituição, que fica parecendo ser algo diferente o que vai na consciência desses homens. Pode ser que gostariam que acontecesse o que dizem não desejar.


Porém, o ponto mais sensível alimentar temores é a ameaçadora pregação presidencial de que o processo eleitoral de 2022 terá de se desenrolar por meio do votauditável, ou não haverá eleição. Dizer algo assim, se é tão grave partindo da autoridade maior, pior quando ganha o respaldo do ministro da Defesa, que incursiona em campo reservado a uma discussão de natureza política e da alçada civil. É um avanço que tange, arranhando, a hierarquia e a disciplina, quando entra numa seara que pertence ao seu comandante supremo. Nada mais a sugerir que a leitura do Artigo 142 da Carta, onde se define, com clareza, o papel das Forças Armadas.



Solução pela metade


Sofremos a tentação das mexidas emergenciais no sistema ou no regime, quando as dificuldades apertam, como se não fosse mais profunda a razão das dores que nos afligem. Se as costas do governo ardem, nelas aplicamos cataplasma ou ministramos analgésicos na Constituição ofendida, tal como em 61, quando se pretendeu amarrar os poderes do presidente João Goulart. Receituários assim, improvisados ou intempestivos, sempre acabaram sendo uma ponte para se chegar a lugar algum.


Agora, ouvimos falar em semipresidencialismo, espécie de esparadrapo com que o presidente da Câmara quer abafar problemas imediatos, mas apenas para aplicá-lo nos governos seguintes. Tanto assim, que propõe a mudança para só viger em 2026. O que autoriza perguntar ao deputado Lira por que não aproveitar melhor esse interregno de seis anos, e com ele debater com a sociedade um parlamentarismo definitivo, claro, sério e real, sem maiores preocupação em causar desgosto aos presidentes, por ficarem limitadas suas atribuições ao Estado, sem poderes eminentemente de governo.


O presidencialismo pela metade, como estão nos propondo, pretende imitar experiências vividas em Portugal e França, como se nada houvesse para diferenciações entre o Brasil e eles.


Sem a intermediação desse semi, prefixo suspeito, deviam as lideranças políticas planejar e mostrar as excelências do parlamentarismo, que já devíamos ter adotado há meio século, independentemente de crises e incertezas. Portanto, mais adequado seria o presidente da Câmara dos Deputados cuidar, com coragem, de uma preliminar indispensável: avançar para a autenticidade dos partidos, e neles um mínimo de condutas ideológicas e programáticas, base do regime de Gabinete. O que significa ânimo para reforma político-eleitoral inovadora. Sem isso, o pretendido semipresidencialismo seria apenas continuar chovendo no molhado.



quarta-feira, 21 de julho de 2021

 Convergências e divergências


(Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil") 


A inesperada obstrução intestinal, que levou Bolsonaro a hospitalizar-se, também obstruiu, pelo menos temporariamente, ao que parece, as articulações para um próximo encontro dele com representantes dos dois outros poderes, numa tentativa de quebrar o ritmo das tensões que têm se multiplicado, principalmente quando avançam no campo do Legislativo e do Executivo. Não há negar: aos setores de decisões que eles representam couberam, como ainda cabem, as responsabilidades pelo agravamento de uma crise política cada vez mais hostil e perturbadora.

Alvíssaras a qualquer tentativa de diálogo, quando se almeja o bem do país! Porque sem ele a paz é intangível; se está ausente, nada pode funcionar a contento.


O que talvez devesse ser objeto de maior atenção é que, ao contrário do que se tem afirmado, a adiada reunião não devia se pautar, inicialmente, pela tentativa de superar divergências. Porque estas já vão à mesa cercadas de posições assumidas. O que deve abrir a conversa não são divergências, mas convergências. Estas é que conduzem, num passo adiante, às questões em torno das quais se diverge. Quer dizer, buscar a paz pelo que ela já acumula de experiência. O conflituoso fique para uma rodada seguinte.


Assim, o melhor caminho para a pacificação é começar tratando das coisas das quais os líderes não podem divergir. Um exemplo, que logo ocorre, algo que vai cobrar esforço geral, necessariamente, da presidência da República, do Congresso e do Supremo Tribunal: a reorganização da vida social e produtiva dos brasileiros, na boa hora em que a pandemia nos deixar. Muitas coisas vão estar fora do lugar, confusas, sensivelmente afetadas por um vírus desorganizador, que impera há quase dois anos. Políticos, executivos e juristas terão muito o que estudar e decidir naquela bendita hora.


Privilegiar uma conversa tensa que principiei pelo que já está acordado, pelo consensual, nada tem de inovação. Todos os grandes acertos políticos começam pelo alinhamento de pontos comuns; depois, então, tenta-se aplainadas as muitas contrariedades. É conhecida a história de êxitos do Abade de Pilignac, que Luís XIV enviava a Roma para abrandar relações com o Papa Alexandre VIII. Os dois só começavam a conversar sobre temas em torno dos quais não havia conflito. Por isso, a diplomacia do Abade sempre levou a melhor.


No atual caso brasileiro, cabe lembrar que nem tudo distancia os três atores privilegiados. Em breve, já retomando suas atividades, Bolsonaro poderá receber, com serenidade, os presidentes do Supremo e do Congresso, porque têm a aproximá-los um detalhe comum, ainda que indesejável: Executivo, Judiciário e Legislativo estão rebaixados e igualados no mesmo desprestígio junto à sociedade. Solidários, ombrearam-se num mesmo nível de antipatias. Humilhados pela sociedade, é o que os induz a conversar sem laivos de superioridade. Diz-se em Brasília, que, como no purgatório, não há, hoje, ambiente para conflitos, porque chegou a hora em que todos são obrigados a se desvencilhar dos pecados, para não serem condenados a um inferno comum.


Estando nivelados, nada, contudo, impede que se assegure, por se tratar de clara evidência, que a condução dos futuros entendimentos fica, preferencialmente, sobre os ombros do presidente Bolsonaro, mesmo cultivando o mau humor, herança do atentado que sofreu em setembro de 2018, com sequelas agravadas em sucessivas intervenções cirúrgicas, além das tensões naturais da política e sua escassa paciência para lidar com atritos. São poderosos ingredientes negativos, que se juntaram para tornar as relações em permanente sobressalto. Se não se corrigir, alterar um pouco o enfrentamento às controvérsias, Bolsonaro pode acabar agravando tudo, num colapso nervoso, levando a vida do país a padecer de obstruções generalizadas, mais graves que as intestinais que na semana passada o aborreceram.


A saúde de um presidente, se abalada, quase sempre resulta em reflexos na sociedade que governa. Kennedy, com sua fratura no disco da coluna, projetava alterações no humor dos americanos, da mesma forma como Eisenhower fazia seus súditos sentirem as sensações da cardiopatia que trouxera da Guerra Mundial. O médico Pierre Acosse, no seu “Os Doentes que nos Governam”, conta casos de estadistas com intestinos irritados que criaram sérios problemas; como em 1919, quando as sangrias e as obstruções intestinais de Wilson andaram prejudicando as negociações da paz.




Falta de compostura



É preciso admitir, mesmo em nome da ironia, que a Câmara dos Deputados é uma instituição corajosa; pelo menos na cota que constitui a maioria dos senhores e senhoras que a compõem. Pois não é que, em plena vigência da tragédia sanitária, e uma CPI tentando ferir a escuridão dos negócios corrompidos na compra de vacinas; mesmo num momento em que o país afunda em grave crise entre os poderes, com tentativas de subversão da ordem constitucional, pois é diante de tantos fatos aterradores que os deputados, como atletas em um campeonato de indecências, decidiram engordar o fundo partidário em que vão saciar a fome de suas campanhas eleitorais. O farto banquete, que era de R$ 2 bilhões, sobe agora para R$ 5,7 bilhões. Eis o capricho de uma violência contra a moral política: o dinheiro triplicado é tirado do cidadão, para que, em 2022, esse mesmo cidadão vote em quem lhe roubou. Ora, bolas!


Praticou-se o estupro sobre algo que a política brasileira devia preservar. E o país totalmente indefeso, até porque o fundo enriquecido é particularmente generoso com os dois partidos majoritários em plenário, o PSL e o PT. Vale registrar que o singular presidente do PSL, deputado Luciano Bivar, não viu crime nenhum no avanço, pois acha tratar-se de um aumento razoável. Mas ficou devendo explicar qual o conceito que faz de razoabilidades.


O novo fundo, abarrotado, é um desafio para o poder de sanção do presidente Bolsonaro, num momento em que ele não pode dispensar boas relações com o Congresso. Difícil acreditar que tenha coragem de vetar o assalto.





terça-feira, 6 de julho de 2021

 





Reforma fora de hora



((Wilson Cid, hoje, no"Jornal do Brasil")) 



A insistência com que alguns setores políticos, notadamente parlamentares, vêm propondo a discussão de itens sensíveis da pretensa reforma política, autoriza supor segundas intenções nessa campanha, que neste momento não teria como almejar aperfeiçoamentos substanciais. Porque esta é exatamente a hora mais inadequada, totalmente imprópria para que se possa conferir atenções a matéria dessa relevância. Há que se indagar. Mesmo que seja com uma dose de boa vontade, como discutir e votar tal reforma?, quando a quadra em que vivemos ferve, febricitante, na maior crise sanitária de que se tem notícia; como? se no Congresso prospera uma tentativa de levar o presidente da República ao impeachment, o que, só pela tentativa, já resulta em grave problema.


As crises política e sanitária, encavaladas, cada qual disputando precedência e atenções especiais; e o país sob nuvens pesadas, que misturam ansiedades e descrenças. Como, então, abrir uma cunha nesse quadro, para dividir tempos, por exemplo, com distritão e nova cota parlamentar para mulheres, entre outras ideias, que, longe de serem impertinentes, são totalmente inoportunas nas atuais circunstâncias.


Suspeita-se de segundas e indiretas intenções no encaminhamento dessa reforma, neste momento, sem que se possa ignorar que, em tudo que se pretende mexer, há que ver tramitado em prazo improrrogável até outubro, para que se preserve tempo hábil de vigência na eleição de 2022. A persistir, teremos garantia de atropelos, correrias e decisões apressadas, porque na legislação eleitoral alterações substanciais requerem antecedência de um ano.


Chegando o momento de reconhecer a impropriedade momentânea para mudanças, num tempo escasso e muita insegurança entre as lideranças, provavelmente os patronos da reforma acelerada se contentem em adiar tudo, em troca de condescendências, que, em última análise, é o que desejam, como rever a Cláusula de Barreira, que condenou vários partidos à escassez de oxigênio político. Estão ofegantes, ameaçados de ficar sem propaganda na TV e sem os cofres dos fundos, condenados a morrer, a menos que nova lei ofereça um socorro generoso.


Outra compensação para se esquecer a reforma – quem sabe? - seria reduzir as pretensões ao fim do voto proporcional, essa infâmia que a consciência política do país custou a banir. Muitos deputados gostariam de reativar o antigo erro, que seria a forma de restabelecer a prática de desviar votos dos bem votados em favor dos candidatos que não gozam de suficiente prestígio para se eleger; são como viajantes caroneiros que se valem da boleia alheia.


É preciso reagir, com vigor a qualquer tentativa de restabelecer o voto proporcional, que, no pensar do jurista e ex-ministro Saulo Ramos, é o mais fecundo arranjo, o despropósito de derrotar muitos entre os mais votados e eleger os menos escolhidos. Sua abolição, dizia ele, foi reclamada (e custou a ser ouvida ) pelas inteligências mais lúcidas do Congresso.



Novidade que veio dos pampas



A alguns pode parecer de importância menor, mas, na verdade, sobram razões para admitir que, em meio aos solavancos de uma política conturbada, carregada de incertezas, ocorreu fato realmente novo; e seria arriscado condená-lo ao refugo. O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, já lembrado entre presidenciáveis, roubou a cena exclusiva dos veteranos, ao assumir dois lances formidáveis. Primeiro, apresentou-se como gay. Nada a esconder. Antecipou-se, expôs um segredo comportamental, e com isso esvaziou, desde agora, investidas homofóbicas que, seguramente, viriam dos adversários, entre os quais não estão ausentes alguns de seus correligionários tucanos.


O segundo lance, que tem tudo para não ser desconsiderado nos projetos da sucessão de Bolsonaro, em 2022, está na evidência de que Leite já sai cativando a simpatia e votos fiéis de uma vasta comunidade que luta pelo efetivo reconhecimento da liberdade sexual; os que não mais desejam omitir, mas manifestar, livremente, sua natureza, sem terem de se curvar à natureza dos que discordam. Ele deixou de ser uma expressão limitada aos pampas. É uma figura nacional.


Interessantes os caprichos da política, capaz de gerar fatos inesperados, como essa atitude do governador gaúcho, que entra na semana confirmado como possível candidato à presidência da República, sustentado por um marketing gravado em cores do arco-íris.


Não se vota ou se deixa de votar em alguém por causa de opções sexuais. O significa que, depois do gesto de coragem, o governador agora terá de dizer o que pretende para o seu país plural e multicolor.


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