terça-feira, 30 de novembro de 2021

g, 29/11/2021 12:36

Golpes fora de moda



(( Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))

 Dizia-se que o Sete de Setembro seria momento decisivo para as instituições, imaginando-se que o presidente Bolsonaro, à frente de multidões, motivaria seus apoiadores para amortecer as consequências de um golpe, que estaria em fase de elaboração nos gabinetes de Brasília. Já se sabia que isso não aconteceria, ante visíveis sinais de que parte ciosa da sociedade não tem ânimo para aderir à ideia. Pois bastaram dois meses para que se levantassem novas suspeitas em torno de algo semelhante, desta vez não originária de um presidente que se sente acuado, mas parte da reflexão de um membro do Supremo Tribunal, num simpósio de brasileiros em Portugal. Sentiu-se no ministro Dias Tóffoli o esforço para colocar em xeque-mate o modelo presidencialista definido na Constituição. O pretexto foi a imperiosidade de um poder moderador fora das alçadas políticas. Para muitos, uma invenção para camuflar outros propósitos.

Interessante, e quanto a isso cabe refletir, insinuações golpistas, transparentes ou escondidas, já não têm sido levadas muito a sério. O que é bom para um país que não admite o epíteto de republiqueta. Certamente seria melhor que ameaças nem houvessem. No passado, coisa parecida agitaria, de tal forma, as bases da democracia, que os vigilantes logo reagiriam, embora algumas vezes saíssem estilhaçados.

O Brasil conquistou o direito legítimo de se fartar de golpes ou tentativas, até porque foram aventuras que sempre se prestaram a retrocessos. Perpetrados ou não, deixaram cicatrizes, algumas permanentes. O golpismo é violência inimaginável em países que nunca sofreram desse mal, como Austrália, Nova Zelândia, Israel, Noruega, Suécia, Canadá, entre outros.

Os golpes, de onde quer que procedam, fardados, togados ou engravatados, estão fora de moda, ficaram condenados a outros tempos. Percebe-se isso na indiferença com que a sociedade reage às incursões. Compreende-se, porque se o brasileiro tem alguma razão para duvidar da solidez de instituições desejáveis, mais ainda desconfia de quem trabalha para enfraquecê-las, com ideias que vão surgindo em gotas homeopáticas.

Espaço generoso

A caminho das últimas semanas de sua presença na presidência do Tribunal Superior Eleitoral, o ministro Luís Barroso retoma discussão sobre a necessidade de as mulheres estarem mais presentes nas casas do Congresso. Hoje, elas estão distantes do direito de ampliar suas cadeiras no Senado, onde são 13%, e na Câmara, com 14% das vagas.

O ministro acha que as bancadas estariam bem, se ocupadas com 30% delas. Por que 30%? Ele não esclarece em que bases se inspirou para dar sustentação a esse percentual. De qualquer forma, confiando-se mais na sensibilidade do eleitorado, talvez essa conquista da população feminina devesse ser objeto não da imposição de lei, porque é tarefa que se ajusta melhor em iniciativas de suas entidades representativas. Elas constituem maioria na população, e têm direito até de almejar mais. O caminho adequado é a mulher tentar conquistar o voto feminino.

Porque sucessivas eleições têm revelado que a eleitora não é amplamente fiel ao gênero. Talvez por intuir que a solução dos grandes problemas que vivemos independe de as saias serem menos ou mais numerosas no Legislativo. É uma realidade que não se pode enfrentar apenas com as intenções de um ministro.

Responsabilidade na pandemia

Se uma nova e retumbante ameaça da pandemia pode escapar da África e, com um breve sopro, atravessar o oceano, depois de prosperar com variantes na Europa, chegamos ao ponto em que os governos federal e estaduais precisam redefinir responsabilidades no possível novo enfrentamento dessa peste, a maior que nos atormenta, desde a Espanhola de 18. No começo do mal, há cerca de dois anos, o Brasil perdeu tempo em discussões infecundas, às vezes histéricas, entre os poderes constituídos; pior, milhares de vidas se foram, quando o Supremo tropeçou ao aceitar que governadores e prefeitos eram soberanos para adotar as medidas defensivas. Muito dinheiro foi desviado ou aplicado inadequadamente. O modelo fracassou, não apenas por causa de competências em conflito, mas porque esqueceram de combinar com o vírus… O mal se alastrou, sem tomar conhecimento da autoridade de prefeitos e governadores. A pandemia não sabe ler as placas que indicam divisa entre estados e limites entre municípios. De novo, se vier, passará por cima.

Sem que se saiba se os governantes aprenderam a funesta lição, podemos estar agora diante de uma perigosa novidade, suficiente para preocupar. Há cidades onde as autoridades, temerosas das consequências de nova incursão da Covid, proibiram desfiles de carnaval e de escolas de samba, além de outros eventos que promovam aglomerações. Contudo, muito perto delas, a poucos quilômetros, foi diverso o entendimento de outros prefeitos, que adotaram o carnaval, e, por extensão, o direito de exportar o excedente dos riscos que vão correr suas populações. O vírus, com entrega em domicílio.

De pouco adiantam medidas preventivas se não forem comuns a todos. Pouco valerão se os vizinhos não as adotam. O que parece muito claro, suficiente para se tomar em conta que um poder superior tem de prevalecer e assumir o controle da ameaça.

O Rio de Janeiro está no centro da questão, depois de autorizar aglomerações carnavalescas, porém indefinido a quem apelar, se dessa liberalidade vierem consequências. É sabido da dificuldade de se impor limites a uma festa popular, que figura entre as maiores do mundo, bem como impossível desprezar os resultados do fluxo turístico. Inaceitável é que, correndo, paralelamente, o risco da tragédia sanitária, não se saiba a quem cobrar responsabilidades na hora certa.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

 

Seg, 22/11/2021 12:50

Soluções pela metade


((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" )) 

Interessante o fato de tema de interesse da política nacional, e só nacional, tornar-se objeto de debates e avaliações num evento de lideranças brasileiras reunidas não aqui, mas em Portugal. Fala-se do semipresidencialismo, que, sempre mal explicado, originário das dificuldades da hora, tem tudo para ampliar incertezas da sociedade, se já não bastassem as muitas que nos assaltam todos os dias. Desenterrou-se o assunto, transportado para o outro lado do oceano, mesmo sabendo-se que os portugueses, por maiores que sejam as simpatias que nos devotem, nada podem fazer por nós nesse particular. Restam duvidosas as razões embutidas na inovação, que ultimamente tem empolgado muito o ex-presidente e jurista Michel Temer, sabendo-se que o conteúdo da tese fere a dimensão do poder Executivo, onde ele já não mais está.

Se, para o bem do país, ideal é abrir as portas ao parlamentarismo, sem retoques e sem limitações, o semi não teria como remover os males do sistema, como também incapaz de importar e absorver conhecidos benefícios institucionais do Gabinete. Quer dizer, ficamos em meio caminho andado, sem chegar a lugar algum.

De Lisboa, o que veio, então, é uma reflexão sobre o mais-ou-menos, como xarope que não cura, mas engana a tosse. Leonel Brizola, vale ser lembrado, viveu e morreu sonhando com o que chamou de socialismo “moreno”; isto é, um sistema que trouxesse o conteúdo original, mas que se pintasse com as tinturas do temperamento nacional. Vivo fosse, talvez adotasse a ideia de um presidencialismo “moreno”, apenas com discretas cores, para não ferir demais as tradições do seu jeitão gaúcho.

Sejam quais forem os atores de hoje, cabe indagar a quem ou a quais grupos interessa voltar a ideia à tona. Mais ainda quando, ainda sob os céus de Lisboa, o ministro Tófolli fala sobre limites da presidência da República, que, de alguma forma, já se escraviza a um modelo de poder “moderador”, que ele entende ser o próprio Supremo Tribunal. Mas, tanto o ministro como os bens intencionados hão de convir que esse poder, para dispor da eficácia moderadora, há de ser eminentemente político, sem as rédeas do Judiciário, ao qual cabem outras atribuições. Fora disso, os magistrados interferem na essência do regime, não mais apenas violentando o sistema.

Se o assunto não ficar sepultado nesse evento que o ministro Gilmar Mendes houve por bem exportar, merecendo maiores reflexões, caberá descobrir que forças, ocultas ou aparentes, andam interessadas no enfraquecimento do presidencialismo de coalizão. Ou se, ainda na faixa das suspeições, teria ribombado em Portugal o sonho do Centrão, empenhado em robustecer seus poderes legislativos. Não convém confiar apenas nas aparências carregadas por gente que se diz preocupada com a boa governabilidade.

Pauta envelhecida

No dia em que se dispuserem a pesquisar matérias condenadas à poeira nas comissões técnicas e nos gabinetes que as entravam, os presidentes do Senado e da Câmara talvez se sintam estimulados a forçar a tramitação e votação conclusivas de muitos projetos que são realmente de fundamental importância. Vários deles pretendem corrigir o desajuste de certas leis que, tão superadas, conflitam com as novas realidades determinadas pelo tempo. Como a maioria penal aos 16 anos, sabido que as moças e moços dessa idade, mais que os do passado, têm hoje ampla capacidade de descortínio para diferenciar o mal e o bem; o que é certo ou errado. Sabem perfeitamente como se portar. As crônicas da cidade andam repletas de jovens que vão envelhecendo na delinquência, roubam e matam, ainda assim tratados com benevolência; nem são presos, mas apreendidos.

Outra questão de antiga pendência, matéria igualmente agarrada, trata do voto facultativo, que, se tem virtudes e defeitos, exatamente por isso está a exigir depuração legislativa; até porque somos um país em que 30% dos cidadãos chamados às urnas preferem se inscrever no abstencionismo, anulam o voto ou optam por torná-lo branco. Essa média da multidão ausente, que vem se consolidando em sucessivos pleitos, reclama ampla discussão e, com base nela, exige posicionamento do Congresso.

Mais idoso, entre todas as postergações, figura o projeto de emenda constitucional, engavetado desde 1957, propondo o parlamentarismo. É preciso discuti-lo, mas, desta vez, pela via de um debate consciente, sem os atropelos, sem os calores e ressentimentos que prosperaram em 1993, quando derrotá-lo foi mero instrumento para devolver a João Goulart poderes presidenciais que 64 havia golpeado.

No mesmo antigo esquecimento adormece a questão do número ideal de componentes das casas legislativas, sem que seus presidentes se deem ao trabalho de acelerar definições. Bastaria, para tanto, vencer a evidente má vontade de deputados e senadores, que não se interessam por conversa dessa natureza. Incursão mais recente coube ao paranaense Álvaro Dias, que pretende reduzir o número de senadores de 81 para 57, preservando-se o critério de idêntica representação das unidades federativas. Quanto aos deputados, segundo a mesma propositura, os 513 cairiam para 404. Já em 1934, a Constituição reduziu os senadores para dois em cada estado, mas durou pouco. Tempos depois, bem depois, Lúcio Alcântara, mais rigoroso, quis que seus colegas na Câmara Alta tivessem mandato de apenas quatro anos, tal como se confere aos deputados. Claro, não conseguiu.

Em relação aos números para a composição das bancadas, cabe discussão mais ampla, com base na constatação de uma inconveniência: numericamente reduzidos, os parlamentares teriam ampliado seu poder de pressão política no Congresso. O que, contudo, sempre se revelou dado insuficiente para conter os que desejam impor limitação nos gastos com o Legislativo. Não sem alguma razão, considerando-se que o Congresso brasileiro é o mais caro do mundo. Se, como se percebe, há prós e contras, precisamos conversar muito sobre isso.

Partidos enfraquecidos

A organização dos partidos determina, entre o pouco que deles se exige, que sejam organizações políticas de caráter nacional. Faz sentido, pois o primeiro entre seus compromissos é a defesa dos altos interesses do país e da sociedade que nele vive. Contudo, não é o que se tem visto. O que temos são partidos com sede nas grandes capitais, e meras sucursais funcionando nos estados mais importantes, mesmo assim com pouca capacidade para influenciar e decidir. São ouvidos na hora das convenções ou das prévias internas.

Os exemplos são vários, como ocorre agora na filiação do presidente Bolsonaro ao PL, gerando visível conflito entre Waldemar Costa e seu grupo com vários setores que se julgam desprestigiados em pretensões regionais. O PSB é pernambucano, o Novo é mineiro, já o PSDB, mais paulista que brasileiro, acaba de enfrentar problemas nas relações do estado-sede com o Rio Grande, dado suficiente para reduzir ainda mais o prestígio da legenda, que andava alto em outros tempos.

Não serão melhores as expectativas no MDB, quando for chamado a mostrar seu candidato à sucessão de Bolsonaro. Dividido entre correntes e ideias, tem contribuído para tornar mais confuso o horizonte da oposição, enquanto a tarefa de alimentar divergências e remover conciliações vai se ampliando com os partidos de esquerda, igualmente descuidados de suas responsabilidadenacionais.

segunda-feira, 8 de novembro de 2021


Nélson Brandi, "Bacuri", sempre citado entre as figuras das noites boêmias da cidade


Memórias de noites bem bebidas


Nos primórdios

 

1 - Não saberia dizer onde termina a lenda e começa a história; ou onde ambas foram se misturando na caminhada dos tempos. Mas a verdade, contavam os antigos – os muito antigos – que, dando continuidade à marcha da abertura do Caminho Novo, amanhecendo o século 18, Domingos Rodrigues da Fonseca trouxera da Borda do Campo generoso carregamento de cachaça especial; tão especial, que acabou caindo no agrado geral de negros e brancos, sem distinção de peles e de gostos. Bebiam, irmãmente, chefes e escravos. Era produzida de canas selecionadas, cujos miolos ficavam longamente expostos ao sereno frio da região, antes de serem guardados no seio dos troncos de umburana. Umburana era a árvore adequada, porque, discreta, preservava a bebida, sem corromper o sabor e o perfume naturais. Imagina-se que o resultado fosse um buquê de qualidade, quando a bebida ganha a virtude de se desfazer como algodão doce. Quando a língua estala no céu da boca.

 

Como toda campanha de desbravamento, interrompia-se a marcha por volta de 2 da tarde, para descansar, pescar e caçar. Acontecia assim por aqui. Convocava-se logo a mula com as bruacas de bebida. Quando, naquele Morro, que depois seria chamado Da Boiada, Domingos e sua gente deram adeus ao vale do Paraibuna, começava a ficar para trás a fama de terra de bons iniciadores.

 

2 – Deste então, não faltou quem cuidasse de cultivar Juiz de Fora como cidade simpática ao etílico. Bastava que chegasse a tarde, o sol recolhido e o crepúsculo começando a escorregar do Morro do Cristo. Aqui só não bebem o sino e o ovo; o sino porque tem a boca virada para baixo; o ovo porque já nasce cheio, segundo o viajante Reverendo Walsh…Sujeito debochado.

 

3- Já então, como querem pioneiros da época, bebia-se desgarrafadamente. Tanto é real que, na metade do século 18, de passagem para Vila Rica, o historiador Richard Burton, deteve-se, por alguns dias, só na margem esquerda do Paraibuna; até porque nada havia na margem direita. Escreveria, anos depois, sobre a multifacetada qualidade de nossa bebida:

 

“O homem do povo é francamente favorável à cachaça. Reconhece nela as virtudes de refrescar o calor, aquecer o frio, secar o úmido e umedecer o seco”.

 

Depois, o Reverendo Walsh leu e confirmou,mas já agora condescendente:

 

“Mostra-se a cachaça um salutar antídoto contra os efeitos do frio e da umidade”.

 

4 - Acaba que as muitas décadas depois confirmariam os efeitos da herança, porque quem, a cavalo, vinha de Caeté e Sarandira, vencendo o Morro da Boiada, já no Costa Carvalho tinha paradas obrigatórias pelos ranchos de secos e molhados – mais molhados que secos - até chegar à adega de Sô Tunico. Avenida Sete diante da subida da Major Delfino. O vinho de garrafão não era lá essas coisas; contudo, o disponível da hora e da vez. Um mil réis o copo, se não me engano. Com alguma sorte, podia-se identificar uma garrafa de gim, quase a salvo dos fregueses. Era para consumo interno. Meu próprio pai identificou o esconderijo.

 

Afora algum vinho, o frio da cidade, mas não apenas ele, tornava convidativo o “martelo”, como se chamava o gole da branquinha. Para outros era apenas o tapinha no beiço.

 

5 - Verdade seja dita. O herói da Conjuração Mineira, Tiradentes, que andou muito por aqui, medindo terras e eliminando quadrilhas de assaltantes, deixou sua contribuição. Corria o ano de 1783, e, quando acabou com os bandidos destas plagas, como o bárbaro Montanha, recolheu-se por alguns dias às graças da Rocinha da Negra, na divisa das províncias de Minas e Rio de Janeiro, ainda não unidas pela ponte do Paraibuna, só inaugurada por Dom Pedro I em 1824. Consta que a tropa do alferes era conhecida pela estreita intimidade com que honrava a cachaça Matozinhos, descida, envelhecendo em longa viagem, procedente das terras do Urucuia. Não há registro insuspeito para confirmar, mas a Rocinha tinha fama de ser generosa no copo. Outra motivação para manter os arranchados eram as belas mulatas do lugar. Elas também bebiam com singular desenvoltura.

 

 

Os diferentes

 

1- Na aparência, nosso simpático Loló tinha algo do Dom Quixote, porque, magérrimo, dava a impressão de que as bochechas se beijavam por dentro. Mas, quem o conheceu tinha outro motivo para ligá-lo ao Cavaleiro da Triste Figura, que, certa vez, referira a alguém que jamais permitia o copo ocioso. Tal como o nosso Loló.

 

Pois, nas costumeiras peregrinações vespertinas pelos botequins, ele acabou se insurgindo contra os tira-gostos. Chegou mesmo a imaginar uma campanha desmoralizadora. Alegava, não sem razão, que se a função da bebida é dar gosto ao paladar, tentar tirar seu efeito, logo após ingerida, parece um contrassenso. De fato.

 

2 - Cultivava o hábito de, no aniversário de morte da mãe de um amigo dileto, acompanhá-lo, com vagar, ao Poço Rico. Rumo ao Cemitério Municipal. Visitavam o túmulo e, depois de breves minutos silentes, o amigo enfiava a ponta do guarda-chuva onde houvesse terra aparente; e o pouco que dali saísse era suficiente para mergulhar num próximo cálice comum de cachaça. Compartilhado pelo companheiro, sorvia aquele barro com a mais respeitosa reverência filial, como se dali pudesse ressuscitar bênção maternal.

 

O ponto de abastecimento preferido de Loló era o Bar do Neca, onde preparava a maneira de esconder o resultado dos excessos; o que convinha, por ser de uma das famílias mais ilustres da cidade. O ritual: saia olhando firme para a paisagem distante, sempre caminhando e forçando firme os calcanhares. Pode ser que a receita desse algum resultado; mas, na vez que assisti a essa marcha, não me pareceu bem sucedido o despiste.

 

 

3- Daltemar Cavalcânti Lima, poeta e livre de compromissos com a vida, tinha notável capacidade para intuir o desfecho dos páreos no hipódromo do Rio, o que o tornara uma espécie de oráculo dos apostadores. Mais do que isso, gozava de plena intimidade com os botequins; de forma que o amigo Lourival, dono de restaurante, querendo ajudá-lo nas despesas inevitáveis, desejou confiar a ele a guarda da adega...Desistiu, advertido de que tamanha imprudência só teria semelhança se a maternidade contratasse Herodes, o Grande, para tomar conta do berçário…

 

Interessante é que, na sua total disponibilidade de tempo, foi perseguido por muitas oportunidades de emprego. O prefeito Itamar quis lotá-lo no aeroporto da Serrinha, onde outra tarefa não havia além de apreciar o voo negro dos muitos urubus. Não aceitou. Poeta nasce para ser cigarra; nada a ver com formiga. Não era preguiça, mas ele considerava a carteira de trabalho um acinte, agressão ao direito fundamental do nada fazer. Preferia consumir o tempo e a bebida com os amigos no Brasão, mesa 14, presidida por Luiz Fernando Medina. E ouvindo sonatas de Beethoven, que dona Aurora Buson extraía do piano.

 

4- Dos copos também nascem estranhas bebidas e figuras meteóricas, como a que fomos conhecer no segundo semestre de 1983. Não esqueci, porque foi pouco antes de o Diário Mercantil sair de circulação. Outro caso singular. Veio aqui a professora Maria Cristina de Almeida Rebouças, carregando esse nome de princesa consorte, interessada em pesquisas sobre Mariano Procópio, porque fora ele o primeiro presidente do Jóquei Clube do Rio de Janeiro. Enturmou-se logo, e nisso deu a conhecer e oferecer o Red Bull, que era a associação de partes iguais de vodka e suco de tomate, casca de limão, e, por fim, uma pitada de sal; e outra de canela, que, ausente, não teria feito falta.

 

Nunca mais se soube daquele xarope de coloração mênstrua. Mas de Maria Cristina ficou bela lembrança; não só os olhos, mas o olhar, de onde nascia um misto de ternura e melancolia. Melhor ainda é que ela não era chata nem vulgar, os dois pecados capitais imperdoáveis na mulher.

 

Habeas copus

 

1- No pódio olímpico do alterocopismo a medalha de ouro pende solene no peito do advogado Amanajós. Amanajós Alcântara de Vilhena Araújo. Tão logo bacharelou-se em S.Paulo, 1902, correu para Juiz de Fora, onde dedicaria todos os ânimos e a vida aos botequins. Hoje, os médicos diagnosticariam dipsomania, incontrolável necessidade de álcool. Murilo Mendes, na “Antologia da Prosa”, o definiu como “bêbado, grandalhão, sinistro, nu do centro para cima (…) abandonou a família em casa, vai em flecha para a beira do rio, onde moram as horizontais“. Amanajós, primus inter pares.

 

Outra vez, ligeiramente embriagadíssimo, só com a roupa essencial, saiude uma das costumeiras visitas à zona, na Hypólito Caron. Caminhava apoiando-se no guarda-chuva e, cerimonioso, tirava o chapéu ao cruzar com os conhecidos.

 

2- Chegaram a tal ponto suas bebedeiras e decorrentes confusões, que o governo arranjou um jeito de mandá-lo para o Acre, onde foi promotor, juiz e, por breves dias, até governador do Território. Falando nos autos, andou citando ”eminentes juristas europeus”, como Halfeld, Meurer, Surerus, Arcuri e Krambeck. Idiotas da corte aplaudiam a falsa erudição, porque não sabiam que eram nomes de pessoas ilustres de Juiz de Fora, semqualquer intimidade com a ciência jurídica. Também por lá aprontou tanto, que acabou preso, o que não o impediu de beber, pois tinha suficiente prestígio para que garrafas contrabandeadas entrassem e saíssem da cela. Do pouco que sabemos dessa fase, apenas que continuava abominando água de torneira e não fazia distinção de rótulos; não os diferenciava, consumia os conteúdos. Sem preconceito. Bastavam o preceito e o conceito.

 

3- Pois chegou o dia em que o fígado, exausto, sem folga e sem poder gozar férias, resolveu pedir demissão. E o inchado coração, solidário, subscreveu. Era 16 de julho de 1935. Dia em que a mais famosa vida boêmia, também já cansada de tantas jornadas, mergulhou na orfandade. Requiescat in pace.

 

 

Tempo da cerveja

 

1 - Não seria lícito desprezar a contribuição dos estrangeiros na velha história de copos raramente condenados à solidão e ao vazio. Os germânicos, fundando a Colônia de São Pedro, não tardaram em providenciar cerveja em disponibilidade. Primeiro, para consumo interno e familiar; depois a produção industrial, quando chegaram a ter uma dezena de fábricas, de onde saíam cervejas com cuidados artesanais. E havia as que eram produzidas pelos padres europeus da igreja da Glória. Estas, muito faladas pela qualidade, embora poucos os eleitos para bebê-las. Como o Velho Testamento, também muito citado e pouco consumido.

 

2 - E não é que a nossa espumosa, saída do bairro Fábrica, foi compartilhar momento histórico!? Aconteceu quando a cerveja do velho José Weiss chegou ao Rio de Janeiro, e com ela os vitoriosos levantaram brinde à República, na noite daquele 15 de novembro de 1889. Consolo para o trágico desperdício de março do ano anterior, quando um pesado carroção da Cervejaria Kremer derrubou 27 metros da Ponte Americana. Foram nas águas do Paraibuna três cavalos e todas as garrafas.

 

3- Outra compensação viria em 1891. Começou a operar a Chimica Industrial, de Henrique Vaz e Constantino Paleta, produzindo 1.000 quilos diários de gelo. Adeus à cerveja quente, morna ou esfriada apenas na paciência dos serenos.

 

3 - Sobre ela cabe outro registro. Vamos buscá-lo em 1893, ocasião em que se discutia a transferência da capital mineira. Juiz de Fora constava entre as opções, ao lado de Curral Del Rei, Paraúna, Barbacena e Várzea do Marçal. Como, até certo momento, a Comissão Aarão Reis dava-nos preferência, a população do Ouro Preto moveu vigorosa campanha contra a cidade. Padre Camilo Veloso, espécie de cruzado barroco, com armadura, elmo e lança (dispensava o cavalo, pois já dispunha de patas), chegou a apelar à rapaziada ouro-pretana para não consumir as cervejas de Juiz de Fora. E ia mais longe: para ele, esta era uma cidade de “rudes fazendeiros e operários ignorantes”. E o Paraibuna não corria; vomitava. O padre só sossegou, quando a capital saiu de Ouro Preto, e foi ser Belo Horizonte no Curral Del Rei.

 

4 – Vêm à lembrança dois ilustres que frequentavam a cerveja do Faisão Dourado. Mané Bento, invariavelmente de linho branco, gostava de apreciá-la sem gelo. E o doutor Detzi, que não aceitava ser servido por mãos que não fossem as próprias. Devolvia a garrafa, se fosse contrariado.

 

 

Chegam os vinhos

 

1 - Portugueses e italianos, à medida em que foram chegando, fizeram o favor de introduzir, para concorrer, os coloridos sabores dos vinhos, que também não eram dispensados pelos sírios e libaneses; mas estes acrescentariam algo que, lamentavelmente, não prosperou entre os nossos hábitos de copo e mesa - o árak, à base do anis, que assume cor leitosa ao contato com indispensável e discreta dose de água.

 

2- Não demorou muito para que surgisse na cidade uma furiosa devoção às uvas esmagadas.

3 - Certa noite de janeiro de 1992, foi na Academia Rio Branco, então sob a presidência de Jean Kamil, que o inesquecível Bill Ruhena presenteou-me com o “Gongo Sôco”, livro em que Agripa Vasconcelos descreve as festas cleopátricas de João Batista Ferreira Chichorro de Souza Coutinho, o mesmo que Pedro I imortalizaria como segundo Barão de Catas Altas. Todos os vinhos do barão procediam da Europa, transitavam por aqui, quando Juiz de Fora vivia sua adolescência. Não tínhamos gente com cabedal para experimentá-los, mesmo nas demoradas passagens.

 

4 -Sob as cinzas não exumadas do passado ficou a fama do banquete de uma das noites do Gongo, em que Padre Pereira, de pé, solene, fez a mais alta saudação ao vinho, que chegava servido em taças de cristal da Boêmia:

 

“Não o bebam sem antes aspirar, lento, o aroma ancião; e, degustando-o, pensem na luz que lhe amadureceu as bagas; no gorgulhar dos rouxinóis pousados nas parras e, sobre o mais, na glória de Deus, que nos permite a graça de bebê-lo”.

 

5- Bebia-se todos os dias, sem exceção, com raras preocupações quanto aos efeitos malignos à saúde, sem embargo da numerosa presença de médicos formados em Coimbra. Hoje, quem se preocupasse poderia recorrer a outro Barão, o de Itararé. Invertendo conhecido brocardo, dizia que o fígado faz muito mal à bebida.

 

Lembro-me, por oportuno, de uma comparação sobre as experiências vividas pelos vinhos e pelos homens. Penso ser de Cícero. Vinhos e homens julgam-se pelo tempo: os maus azedam e os bons apuram.

 

Com as mulheres

 

1- Os poetas, como os santos, conhecem o dom da gratuidade. O que não os impede de debitar às mulheres, maldosamente, o pecado dos excessos etílicos. Quando os exageros predominam nos copos, tentando afogar neles o fracasso de ternuras não correspondidas. De bom alvitre culpar a insensibilidade feminina. Por que? Ora, porque é mais fácil. Eis o porquê. Ou, então, a culpa seria da impaciência das esposas, preocupadas com as jornadas noturnas dos maridos pelos bares e botequins, arrastando angústias indefinidas. Para esses, voltar para casa sempre foi algo complicado. Oswaldo Mascarenhas, professor na Escola de Engenharia e trovador, entendeu essa aflição:

 

“Na hora incerta do revés

pensa o marido nas ruas:

bebo duas…volto às dez

ou bebo dez e volto às duas“.

 

2 - Às revoltadas que mantinham suspeitas quanto à fidelidade, nada mais havia para argumentar; a não ser confessar que, antes das doçuras da companhia, a prioritária lealdade era para os fermentados e destilados. Conta-se que certo marido, flagrado ao sair do Raffa’s, em madrugada chuvosa, garantiu à noiva jamais ter se embriagado. Explicou com as mesmas palavras de Hamphrey Bogart, nas noites de Casablanca: “Não sou eu que estou bêbado, mas a humanidade que está sempre três doses abaixo do normal”. Conseguiu escapar dessa. Mas não de outras suspeitas, porque o casamento não aconteceu, e ele continuaria solteiro, aposentado de seu Credireal, perfeitamente só.

 

3 – É de outrora, não de agora, que acaba mesmo ficando com a mulher a culpa pela bebida consumida em alta escala. Por isso, as relações entre as duas são, quase sempre, de dúvidas e distância. Há quem encontre explicação na poesia de Rubaiyat:

 

“Dizem-me para não beber. E eu respondo: quando bebo, ouço o que dizem as rosas, as tulipas e os jasmins. Ouço mesmo o que não pode me dizer minha bem-amada”.

 

 

4 – Muitas vezes, lembranças de amores acidentados invadem mesas dos salões requintados ou tomam lugar no balcão de qualquer copo-sujo, como se costuma humilhar o botequim de periferia. Houve caso interessante, em 1963, no Bar Acadêmicos, que ficava na Batista de Oliveira. Um homem de meia idade chegara de Vitória, e foi estar com nosso querido Paulo Emerick, que nos deixou em outubro. Capixaba de Cachoeiro do Itapemirim, Paulo estava no auge do prestígio no Rádio, e muitos que chegavam do Espírito Santo iam procurá-lo. Estando no bar, foi o visitante lhe dizendo que vivia uma fase em que bebia todas e mais algumas.

 

5 - O nome era quilométrico, mas agora ocorre apenas ser o lojista Odilon. Paulo não tinha como ajudá-lo, porque a tragédia do conterrâneo estava num casamento em ruínas, e ele não encontrava jeito de recolher os destroços e partir. O que impedia a chegada de novo amor, àquela altura já em formatação. O tal negócio: a mulher que não vai, a mulher que não vem. À medida em que narrava, o sujeito ia tentado afogar o drama em sucessivas doses de rum, temperado com coca-cola. Para piorar.

 

Além de todas as belezas da amada a caminho, Odilon também sentia nela lampejos das virtudes de mulher bíblica: amável como Raquel, prudente como Rebeca, fiel como Sara. Nem eu nem Paulo imaginamos o que foi feito dele.

 

6- Menos que a cachaça ou qualquer outra bebida, o vinho ficou celebrado como o menos intolerável nas relações entre os gêneros. O que talvez possa explica o fato de elas também o apreciarem, mas com alguma moderação.

 

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Velhos tempos

 

1 -Acho que já contei essa história antes. Se for o caso, antecipo desculpas. Tenho pedido a Deus que me poupe de ser velho repetitivo, coisa enfadonha, que tento evitar. Uma oração de abadessas francesas que viveram há 300 anos, também pedia para a gente não ceder a muitas repetições. Mas vamos lá.

2-,Nas aventuras etílicas dos anos 20 e 30 já se tornara difícil, quase impossível, dissociar boêmios e jornalistas. Parece que nasciam para destinos siameses; com alma e cabeça coladas. Abriam-se jornais, sempre numerosos, mas de vida efêmera. O que não impedia que os colegas continuassem bebendo. Com ou sem emprego, contava Paulino de Oliveira, mantinha-se o ritmo nos endereços de costume, o cabaré Borzeguim, na Marechal Deodoro, o Berimboa, no Vitorino, onde a boêmia tinha o compromisso quase diário de assistir ao nascer do sol. Naqueles, como também no famoso Assírio, bebia-se cerveja, com raras variações. Dançava-se. Muitos protestos, porque a dança só durava 2 minutos. O cabaretier insolente tocava um apito, e os casais tinham de se desfazer. Todos de volta às mesas e às garrafas; e, dali saindo, tomava-se o rumo do Dia e Noite, que só fechava em Sexta-Feira da Paixão. Nessa vida, Paulino fazia pouco das preocupações da mãe. “Desse jeito você não chega a ter netos”. Pois os teve, com fartura.

 

3 - O tempo correu, profissionalizou-se o jornalismo, e daquelas antigas noites restou pouco, até porque morreram os jornais. No Diário da Tarde, produzido nas madrugadas, havia breves intervalos, algumas vezes os solteiros esticavam ao Raffa’s ou ao bar do Português (quem não era português nos bares?). Viviam ligados às oficinas, mas não eram de chumbo. Havia, no Largo Riachuelo, uma carrocinha de angu à baiana, que podia se fazer acompanhar de algumas e discretas doses de Ipioca. Até que Marim Toledo ou Eloísio Furtado convocava todos de volta às laudas e às máquinas.

 

4 - Ainda hoje, esses goles noturnos ajudam a entender a vida, como dirá qualquer boêmio talentoso que se preze. Um deles, na Barão de São Marcelino, escreveu para o Bar do Chicão, a advertência com duplo sentido: quem não bebe não vê o mundo girar.

 

Com solenidade

 

1 -Nunca tinha visto alguém assim. Em Belo Horizonte, fui apresentado a uma figura especial, que depois tive como conhecer melhor em Juiz de Fora. Nós o tratávamos de Sargento, intelectual que já não exercia função militar. Parece que o tenho na frente, no Faisão Dourado, preparando a solenidade, que consistia em sorver a cachacinha vinda das bandas de Conceição do Mato Dentro, com todas as referências do filho ilustre, José Aparecido. Rigoroso quanto ao asseio do cálice, colocava-o contra a luz, cuidado que denunciaria qualquer mancha inconveniente. Meticuloso, com olhos de perito, inspecionava e fazia circular a borda, que havia de estar imaculada. Tinha todo o tempo, sem pressa, e, por alguns instantes, solene, mantinha assim suspenso o cálice sagrado. Parecia que acabara de desenterrar o Graal ou descoberto os anéis azulados de um novo astro. Saudava o achado com breves murmúrios, como se aquela mesa fosse um confessionário. Só depois da cuidadosa liturgia é que confiava o líquido à alma já sequiosa e clemente.

 

2- Não menos solenes entre os que conheci eram os amigos que Ministrinho sabia improvisar num conjunto musical caminhante por todas as ruas. Contou, certa vez, no Mesa de Debates, programa que tínhamos na TV Educativa: entre um samba e outro, o pessoal descansava o instrumento; pouca conversa, só o indispensável. As mãos desciam, sem pressa, para os copos. Quase sempre cerveja. Se começavam a demorar mais nos copos do que no cavaquinho, é porque chegara a hora de recolher.

 

3 - Sobre as relações copos-relógios, Roberto Campos conta em “Lanterna na Popa”, seu livro de memórias, um caso pitoresco. Dean Acherson, secretário no governo Truman, convidou Décio Moura para um drinque vespertino. O embaixador brasileiro recusou. “Cavaleiros não bebem antes do crepúsculo” (Gentelmen never drink before sunset). Tempos depois, Roberto encontrou-se com Acherson, e ouviu dele a pergunta: “Onde anda aquele filho da puta que não bebe antes do anoitecer?”.

 

4 -Por que a vontade vai se acentuando com o entardecer, convidativo para o happy hour? Porque ele é mais doce que as manhãs, explicou Joaquim Nabuco, que nem era um bom copo, mas com sensibilidade suficiente para perceber que o crepúsculo é a promessa da noite que vai chegar, cheia de estrelas. Tudo para inspirar.

5 – Vinha a noite, principalmente nos anos 70 e 80, e convidava ao Old Schotch, Xanan, Faisão, Vivabela, Dream’s, Raffa’s, Futrica, Neca, Olímpico, Galdêncio, Turunas, Dia e Noite, Rio Lima. E o heroico Redentor, onde a boêmia montava sua última trincheira. Não sei quantas mais eram as peregrinações por essas ruas e galerias notívagas!

 

Bares não se diferem. Jornalista Geraldo ”Gerrô” Melo confirma: “Como morei no Rio, Brasília e BH, noto que esses estabelecimentos só divergem na forma, apresentação. Houve um tempo em que as mulheres não podiam ir; aqui, acolá. Era um território exclusivo dos machos. Ainda bem que essa época já passou” E mais: “Bares costumam ser lugares de acontecimentos engraçados. O bêbado é personagem de Pirandello, sempre à procura de um autor. Enquanto se busca, pode ser interessante - antes da quarta dose - e terrivelmente chato, a partir daí”.

 

 

6 - Aproveito, quando a dúvida ainda é a hora de começar ou parar, para citar o que certa noite rolou na já citada Mesa 14 do Brasão. Falava o deputado Amílcar da longa dissertação de especialistas sobre as relações entre o beber e as horas do relógio. Haviam chegado à conclusão que é alcoólatra o sujeito que bebe antes das 10 da manhã. Sem chance: se começa antes daquela hora está liquidado. O que ensejou uma dúvida, não esclarecida. E o boêmio que chega às 10 vindo da madrugada anterior? Alcoólatra por antecipação? Antes ou ainda?

 

7- Levantamo-nos e fomos pra casa.

 

 

Uísque moderado

 

1 - Independentemente da origem, de safras e quantidades consumidas, as bebidas sempre tiveram críticos ferozes, sem condescendências; mas costumam poupar a velha Escócia, onde águas navegam sobre belas turfas, purificam-se, e depois vão se haver com o malte. Dali surge o uísque, que há séculos trabalha para tornar as pessoas menos áridas e mais alegres, da mesma forma como transita nos ambientes mais refinados da humanidade e também abençoa grandes tragédias.

 

2- Mas, se ocorre de fazer o mal, não é dele a culpa. Os inquisidores não aceitam o argumento de que não é uísque o vilão, mas a intemperança de quantos extraem dele o prazer malífico. Dirão os abstêmios de cartilha: boa desculpa em meio às aventuras etílicas! A propósito, um caso clássico: certo interlocutor, dizia a Winston Churchill que não bebia, e por isso se sentia 100% bem. Ao que o primeiro-ministro retrucou: bebia muito e sentia-se 200% bem.

 

(Não é prudente julgar pessoas, muito menos grandes personalidades, pelo tanto ou pelo pouco que bebem. Franklin Roosevelt, que fincou as bases do que seria o maior país do mundo, tomava, no mínimo, oito doses diárias de martini; Churchill, liderando a defesa das liberdades ocidentais contra o nazismo, evaporava meia garrafa de uísque até a hora do almoço. Adolf Hitler tinha horror a bebidas, só tomava chá, e proibia que fumassem em sua frente. E deu naquilo).

 

3 - Talvez o que mais comprometa seja a momentânea disposição de quem segura o copo. Segundo o Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, é preciso considerar que a embriaguez não depende da quantidade de álcool ingerida, mas do estado de espírito do momento.

 

4- - De fato, parece de todo improdutivo sair por aí para garimpar culpas e desculpas nos tonéis. Missão inglória, sem resultados. Ao fim e ao cabo, uma discussão sem fim, sem acordo, mesmo entre pessoas qualificadas. Um jogo de argumentos que termina empatado. Alguém disse que um gênio inventou a bebida e outro gênio garantiu que ela faz mal à saúde. Eis a verdadeira incompatibilidade de gênios.

 

5 - Tudo pode ser resolvido com base numa lei de temperança, promulgada nos dias de glória do Império Romano. Arqueólogos desenterram pedra daqueles tempos, onde uma inscrição latina ensinava a arte de beber, com moderação.

 

“Primus, subtus; secundus, sicut primus; tertius, paulatinum”. O primeiro gole, rápido; o segundo, como o primeiro; a partir do terceiro, com vagar.

 

6- A pedra ainda estava escondida, por volta de 1850, Juiz de Fora começava a virar cidade, quando Mestre Lão, chegando da Vila Nova do Caeté, tinha razão em ignorar a pedra e a inscrição romanas. Por isso, começou bebendo uísque com água, depois uísque sem água, e, por fim, bebia uísque como água.

 

7 - Um dos nossos três que chegaram à Academia Brasileira de Letras, ministro João Luiz Alves, era acusado, por seus detratores, de apreciar o escocês em copo opaco, para encobrir a cor denunciadora. Dizendo que Arthur Bernardes já tinha eleição liquida e certa, foi logo contestado pelo inimigo Djalma Andrade:

 

“É mentira o que dizes.

Pois é mais do que sabido

que se o caso fosse líquido

tu já o terias bebido.

 

8 - O ministro da Guerra de Vargas, alagoano Góis Monteiro, que aqui esteve duas vezes, era conhecido pela admiração que devotava a Adolf Hitler; e, no Senado, pelas doses de uísque em xícara de chá. As duas bebidas tinham a mesma cor, o que podia dispensá-lo da moderação.

 

9 - Nunca faltaram os embustes. Lembro-me da tarde em que o juiz Sidney Afonso, da Vara Eleitoral, anunciou, pela primeira vez, que no dia da votação estariam proibidos o consumo e a venda de bebidas alcoólicas, o que contribuiria para evitar desordens. A intenção foi boa, mas não faltou quem tomasse cachaça e uísque em pequenas xícaras, soprando o líquido, para aparentar aos eventuais fiscais tratar-se de inocente cafezinho.

 

10 - Muitos anos atrás, não menos de setenta, a cidade tinha o prazer de interromper os passos na esquina da Avenida com Rua do Sampaio, onde as vitrines do armazém de “seu” Ribeiro enchiam os olhos com as dezenas de garrafas do legítimo escocês. Uma época em que, imaginava-se, as falsificações eram raras.

 

À margem do rio

 

1- Curioso o fascínio que o Paraibuna exercia sobre aquelas noites calmas do passado, embora algumas vezes agredidas por enchentes inesperadas. Hoje as pessoas passam indiferentes; não antes, quando os boêmios, principalmente eles, detinham-se nas pontes para ver e tentar entender o mistério daquelas águas; que, como os grandes amores, se vão passando, também vão ficando.

 

2- As visitas dos desacompanhados, se demoradas demais, olhares fixos no rio, preocupavam. Bêbado solitário, sem conversação, sempre dá a impressão de a vida estar travando a última peleja com a morte. Não raro, encorajados pelo álcool, foi dali que os suicidas saltaram para o nada.

 

Pensando neles e no rio, Rangel Coelho lembrou:

 

“Bêbados, loucos e poetas, que se valiam dessas noites de astros tontos para ouvir os soluços obstinados de suas águas profundas”.

 

3 - Dizem que nos dias atuais não é assim. Mas, quando se fala de décadas passadas, o que caracterizava os boêmios era a bebida, para alegrar ou para oferecer um certo isolamento melancólico. Talvez porque o álcool se afigurasse como salvação. Via única. Consumiam-se, sem a fartura de hoje, raros baseados no receituário das drogas, que, hoje, mais do que nunca, cumprem perigosamente seu dever sinistro. Antes era só o álcool.


Pecado líquido

 

1 - Tem a história do sujeito que, sol ou chuva, pontualmente às 11 horas, vai ao Bar do Bigode para tomar a primeira dose da autogratificação. Se o conhecesse, Santo Agostinho apareceria com severa repreenda, porque é pecado colocar a virtude da pontualidade a serviço do vício.

 

Já no velho Faisão, era Mário Almeida, ateu convicto, empresário bem sucedido, mas sofrendo de dolorosa artrose e, como suplemento, o incômodo da erisipela. Apreciava uísque com rótulo de um caminhante, Johnnie Walker, cirineu que o ajudava a carregar as dores daquele calvário. Foi morrer em agosto de 2005, em estação de águas sulfurosas…

 

2- Para os inveterados, melhor, então, seria ouvir um pastor anglicano que em 1972 andou por aqui e em Bicas, pregando mensagens salvíficas,como se lia no Diário da Tarde. José de Arimateia era seu nome. Mostrava-se tolerante com os fiéis acostumados a beber, e talvez por isso não tenha entrado em conflito com padre Manuel, também conhecido pela fidelidade ao consumo.

 

3 - Arimateia tinha preparadas, de cor e salteadas, as citações de tolerância encontradiças na Bíblia. “Bebido em tempo certo e na medida certa, o vinho traz gozo para o coração e alegria para a alma”, segundo o Eclesiástico. Além do gesto de piedade em Provérbios 31,6: “Bebida aos moribundos e vinho para os amargurados, porque, bebendo, eles esquecerão a miséria e não se lembrarão de seus sofrimentos”. Ofício de beatitude.

 

4- Mas a moeda tem o outro lado, e os textos sagrados permitem leituras deferentes. Nunca faltaram severas homilias contra as bebidas, até bem mais numerosas que as tolerantes. Mas nenhuma delas foi mais rigorosa que a do padre Humberto Rohden, que excomungava a Halfeld por causa dos bares, e, graças ao que neles se vendia, era uma rua imprestável para qualquer tipo de apostolado. Mas Wilson de Lima Bastos conta que o padre se redimiu, fugindo com a bela Inah...

 

Estatuto

 

Poetas como Roberto Medeiros, Hegel Pontes, Dormevilly, Rangel, Sílvio Machado e José Carlos foram fundadores da União dos Trovadores de Bar, cuja sede espalhava-se por todas as mesas da cidade, onde fosse possível beber algo. E deixaram um estatuto elaborado em 57 trovas, satíricas ou não. Correu o Brasil. Duas dessas dessas trovas:

“Se atacado de cirrose/ e o mal ao leito o detém/ é bom tomar uma dose/ enquanto a morte não vem.”.

 

“Quem paga a conta, de início,/ independente de inquérito,/ receberá em comício/ diploma de benemérito”.

 

5 – Se você chegou até aqui, eu agradeço. E levanto o brinde. Saúde!

 

Wilson Cid

 

Novembro de 2021, 23º de Gabriel.