terça-feira, 28 de dezembro de 2021

 

O doce abacaxi



(( Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))


 

Ouviu-se o presidente Bolsonaro dizer que já não vê a hora de deixar o ácido abacaxi, que a eleição de 2018 jogo em suas costas, embora não a contragosto, pois foi exatamente para descascá-lo que lutou o quanto pôde. Mais tarde, ainda com palavras amargas, confessou que não sabia onde estava com a cabeça ao aceitar a disputa. Na verdade, o crédito único que se pode conceder a essas queixas limita-se às dores de cabeça provocadas pelos problemas diários, muitos dos quais, se pungentes, resultaram do comportamento que ele próprio costuma adotar ante os desafios. Mas nada, em nenhum momento, sugere que, de tão desgostoso, realmente anda pensando em abandonar o páreo de 2022. É candidato, porque assim deseja, mesmo se instado a criar novos impasses. Poucos duvidam do real dissabor, porque, acima de tudo, o cargo e o poder conferem imensos prazeres. Carlos Lacerda já dizia que essa história de sacrifício na política é conversa mole.

Afora uma realidade que sempre cercou a vida de todo presidente, porque, por força dos interesses que o cercam, acaba perdendo parte da vontade própria. Manda muito, mas não tudo. As circunstâncias cobram e lhe impõem decisões, uma das quais é disputar a reeleição, quando isso convier ao grupo.

Um fenômeno interessante do ano eleitoral é que se aprimora a arte de jogar com o tempo, o que permite garantir que a encenação presidencial tem prazo de validade, como os iogurtes, até fins de janeiro, no máximo fevereiro, quando as articulações no campo sucessório cassam-lhe o direito do faz de conta.

Trabalho e mercado

Dizia o ministro da Economia, em recente interlocução, que o governo empenha-se, e continuará se empenhando, na aplicação de programas de digitalização no serviço público, porque está aí a base, o primeiro passo, para se atingir um mínimo de modernização e eficiência. E acrescentava um dado justificador: na substituição do pessoal aposentado, em cada grupo de 100, o modelo tradicional exige a convocação de 70; o que já seria um progresso. Mas, hoje, graças aos recursos da digitalização, pode-se operar a ocupação dos cargos em igual contingente com apenas 26 servidores.

O avanço tecnológico, fenômeno visível em todo o mundo, permite indagar se, no Brasil, temos feito o necessário, ou, pelo menos, o suficiente, para garantir capacitação a novas gerações de trabalhadores, dando-lhes fácil acesso às fontes de produção, estas cada vez mais impositivas, tanto no serviço público como na iniciativa privada. Certamente que há muito o que fazer. Nesse particular, os governos têm deixado a desejar.

É preocupante, porque no aperfeiçoamento da mão de obra os programas governamentais para o setor têm cuidado, preferencialmente, como cuidavam décadas passadas, de servir apenas às indústrias tradicionais, onde máquinas e processamentos foram caindo rapidamente na obsolescência. Não conseguiram agregar o progresso tecnológico em nível desejado. O que foi, e continua sendo, receituário para grandes dificuldades futuras, pois inibe nosso poder de qualidade e competitividade. Por cima de tudo isso, uma questão de superior gravidade: a baixíssima escolaridade observada na mão de obra nacional.

Quase concomitante ao referido pronunciamento do ministro Guedes, um programa de TV, editado na Europa, mostrava, em dias da semana passada, os atuais efeitos da robotização nas grandes indústrias, sobretudo no setor automobilístico. Um cenário de quase melancolia e rara a atuação humana; meia dúzia de solitários trabalhadores transitando em meio à silenciosa automatização. Tudo para confirmar que já se deu à máquina uma competência sonegada ao braço do homem.

Contribui para agravar esse problema o crescimento da população disponível no trabalho. O brasileiro produz massas de jovens, em grande parte despreparados, gerando anualmente milhões de expectativas, muitas delas frustradas.

A qualificação do trabalhador na era da informática devia merecer espaço entre as prioridades de 2022; nem que seja apenas para não desconsiderar os dados extraídos do depoimento do ministro Guedes.

Astros na política

Se forem prudentes, jogando mais na capacidade de trabalho e como enfrentar o potencial dos adversários, os políticos confiarão menos nas previsões astrológicas, que na semana passada começam a rechear as redes sociais. Se acreditarem, melhor então que aceitem, com devidas reservas, as promessas do alinhamento dos astros e suas influências sobre o destino das pessoas. Até porque, o sol, neste ano frequentemente citado pelos videntes, certamente estará muito ocupado com anunciadas explosões, sem tempo para influir na eleição presidencial do Brasil. No mais, os astromantes garantem que vamos ter dificuldades políticas, enchentes e desastres, coisas que acontecem mesmo, naturalmente, sem que alguém tenha de antecipar que vão acontecer.

Ainda na seara política. Em 1960, famosa e simpática astróloga do Sul de Minas sugeriu ao marechal Lott que aprontasse o terno da posse, pois tinha como certa sua eleição para a Presidência da República, mas foi Jânio quem se elegeu. Nos Estados Unidos, país onde mais frequentemente se pede aos astros que antecipem o que está para acontecer, o presidente Trump também tinha êxito garantido pela conjunção dos sóis. E perdeu para Binden.

Sobre a eleição de 2022, cristais consultados anunciam que a sucessão de Bolsonaro é algo para se definir logo no primeiro turno, o que parece pouco provável que aconteça, independentemente de adivinhações.

Casos recentes recomendam aos políticos que entrem no novo ano com os pés no chão. Há grandes falhas nas previsões. Alguns dos astrólogos norte-americanos mais lidos e ouvidos, interpretando Nostradamus, garantiram grande terremoto na Califórnia em 25 de novembro passado, o que felizmente não se confirmou. Mais estranho ainda é que, há dois anos, não houve astros e videntes que descobrissem e nos prevenissem sobre a grande pandemia da Covid, que estava a caminho, e no Brasil roubaria a vida de 640 mil. É tudo para sugerir aos candidatos que joguem a sorte na sua capacidade de realizar e convencer. Essa história de que os astros não mentem jamais ficou longe, no carnaval de 1973, por conta do samba de enredo da Vila Isabel.

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terça-feira, 21 de dezembro de 2021


A palavra em crise



((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" )


Numa época propícia para se tratar de presentes e formulação de bons desejos, não estará delirando quem pretender desejar ao Brasil, como num milagre, a valorização da palavra, notadamente quando figura nas relações políticas, onde, parece, ela perdeu o sentido, não é mais significante. Daí esse interessante fenômeno a que temos assistido todos os dias: os homens públicos falam, e nada acontece; ou o que dizem não repercute, não provoca, por mais grave que seja. Muitas vezes, para deformar, as expressões ganham significado diferente do que deviam significar.

A observação resulta de um caso recente e exemplar. Há poucos dias, o general Augusto Heleno, sobre quem pesa a responsabilidade da segurança institucional, disse ser urgente o presidente da República adotar medidas drásticas em relação ao Supremo Tribunal Federal, antes que seja tarde demais. Referia-se, sem dúvida, ao atual estágio das estremecidas relações entre Executivo e Judiciário.

Medidas drásticas, disse ele, em meio a uma solenidade militar. Mas o que é isso? Que reais dimensões teriam essas medidas?, tratando-se de recomendação partida de um ministro da área de segurança da instituição. Entretanto, mesmo sendo graves, pesadas e com clara insinuação, suas palavras voaram pelo vento. Não aguçaram golpistas de plantão, e o presidente, a quem o discurso chegou alinhavado num misto de advertência e apelo, nada disse. O Tribunal ameaçado fez ouvidos moucos. Ninguém cuidou de interpelar. Tudo ficou por isso mesmo, tal como em setembro, quando brados retumbantes ecoaram em favor do golpe, não suficientemente levado a sério. Eis o tempo de dizer ou desdizer, tanto faz.

O ministro e muitos outros, antes ou depois dele, deixam transparecer que o meio político vive algo que pode ser definido como crise de substância nas palavras, que não mais se potencializam, perderam sentido. Saem aos borbotões, preferencialmente pelos cotovelos, não mais pela boca. Mas é preciso caminhar no sentido de retomar o valor e a seriedade que devem inspirá-las, para que se justifiquem. Tarefa a começar com os políticos, sem necessidade de buscar socorro no léxico do estruturalismo linguístico.

Jogo empatado

Artur Lira, presidente da Câmara, bem que se esforçou, mas ainda não foi desta vez que conseguiu derrubar a resistência, já antiga de trinta anos, à proposta de regularização dos jogos de azar no país. Mesmo com sua posição pessoal, francamente favorável à aprovação, o deputado teve de protelar a retomada das negociações, sem data que o autorize considerar vencidos os obstáculos; um deles, de imediato, começa por exigir quórum de 308 votos do plenário. Tudo muito difícil, mais ainda por se tratar de uma questão que inflama a ojeriza da bancada religiosa.

Não é de hoje que os posicionamentos sobre a matéria convergem para dois pontos: os contrários garantem que seria uma lei capaz de ampliar certa compulsão para o jogo, coisa que facilmente já se identifica com o temperamento brasileiro; e, ao mesmo tempo,  instrumento legal capaz de abrir largo espaço para a lavagem do dinheiro de origem criminosa. São pontos de vista que contrariam os pragmáticos, pois, para estes, os jogos movimentariam R$ 65 bi, e impediriam que 220 mil brasileiros voem, todo ano, para o Exterior, onde se dão bem com legalizadas roletas, diferentes das nacionais, aqui perigosamente clandestinas. Ajudam na evasão dos reais.

Nada de novo, portanto, para embaraçar os planos do deputado Lira e do relator Felipe Carreras. Devem saber eles que interpretações tão antagônicas dificilmente podem se conciliar; pelo contrário, acentuam-se com a decisão do presidente da República de antecipar-se à lei, anunciando que está preparado para vetá-la, se aprovada. O que ele não pode explicar, muito menos corrigir, é a exclusividade com que o governo vem explorando, através da Caixa Econômica, variados jogos, pouco menos perniciosos que aqueles que se deseja proibir. Promovendo fabulosas rendas semanais, por isso mesmo as lotos sempre estarão a salvo da privatização, mas não da contradição.

Pauta para 2022

No entendimento do ministro Luís Barroso, que vai encerrando sua passagem pela presidência do Tribunal Superior Eleitoral, o feito principal da corte, neste ano, foi a consolidação da urna eletrônica, que considera imune às fraudes. Contudo, não deixa de reconhecer que vai sendo transferido para 2022 um significativo elenco de desafios, cuja importância se acentua exatamente por coincidirem com o ano em que se processarão eleições gerais.

(Sem nominar Bolsonaro como autor dos ataques desferidos contra o sistema eleitoral, embora deixando isso suficientemente claro, de outro lado Barroso aplaude o Congresso, por negar a introdução do voto impresso. Página virada, entende ele).

São velhas questões que não perdem sua importância, e a principal delas, entre outras razões sustentáveis, é o desejo de uma democracia representativa aperfeiçoada. Salta, nesse sentido e de imediato, a avaliação da participação de mulheres e negros na função do voto, considerando-se que constituem, no gênero e na etnia, a parcela majoritária da população brasileira, coisa que os censos vão confirmando em sucessivas pesquisas ou estimativas.

Na linha das discussões transferidas para o próximo ano há que se reservar espaço, igualmente, para o desempenho dos partidos no processo eleitoral. A experiência revela que essas organizações continuam se confundindo nos propósitos, e têm deixado muito a desejar quanto à sua responsabilidade na indicação de programas objetivos a serem apreciados pela sociedade. Na escala dos temas sempre adiados, também convém não ignorar outro desafio que se impõe: conter os partidos, protagonistas, cada vez mais salientes, de campanhas eleitorais caríssimas, sob o patrocínio do dinheiro público que alimenta os sedentos fundões.

Vai em tudo isso um visível descompasso. De um lado, a modernização do sistema de votação, de que se orgulha o TSE; e, de outro, o atraso na representatividade e no desempenho das agremiações políticas. Certamente são problemas que não se esgotarão no ano que vai chegando, mas seria bom impedir que, pelo menos, os debates sobre eles continuassem passando em brancas nuvens. Como vêm passando.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

 sunto)

Wilson Cid
Seg, 13/12/2021 12:07


O que vai ficar?



((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" )) 



Afinal, como vamos carimbar o passaporte deste 2021?, já de malas prontas para se despedir do calendário. Entre as pessoas sempre predominou certa vocação fatalista, ao considerar que os anos, quaisquer deles, são pouco diferentes entre si, e assim continuarão sendo. Mas os pessimistas sentenciam que, se o ano velho foi ruim, pior se espera de seu sucessor, com inflação resistente, a ameaça de nova variante virótica e tensões eleitorais. Sem que sobreviva, faz bem dizer, algum ânimo de otimismo, porque sempre haverá algo de bom nos gatilhos do tempo. Em se tratando de política, independentemente do fundamento das previsões sombrias, é preciso lembrar que eleição, só pelo simples fato de ser praticada, já é algo salutar para a democracia e pelo direito que confere ao povo de manifestar-se livremente, ainda que, muitas vezes, equivocado.

No choque de expectativas, boas ou ruins, o ano que vai entrando em horas de crepúsculo deixa outra preocupação, raramente citada, mas latente, promissora, ameaçadora. É a marcha das radicalizações a que se assiste em setores diversos da vida nacional. Não apenas na política. Mas nela com agravante da tentativa de se impor viés maniqueísta; isto é, discursos do bem ou o mal; na verdade apenas a luta entre dois males, cada qual pregando suas injúrias.

Ano em que se acentuaram conflitos entre os Poderes, esses mesmos que Montesquieu desejou ver responsáveis e equilibrados entre si, interdependentes. Longe do ideal desejável, no Brasil ampliaram-se os embates entre eles, culminando com o Supremo Tribunal avocando a si atribuições fora de sua alçada.

Nem faltou, neste tempo tenso e inseguro, a contribuição de segmentos religiosos para mais dividir e distanciar brasileiros, até há pouco desacostumados com isso, mas agora chamados a experimentar o sabor da disputa entre credos na indicação de ministros, e, para confundir mais, o estranho comportamento de líderes que avocam a si o direito de interferir nas obrigações do governo e assumir o poder de vetar atos do serviço público.

A História tem razões várias para recomendar aos pregadores que sejam cuidadosos, porque, no que disserem, pode estar carregado perigoso potencial de intolerância. Sabe-se muito bem que os intolerantes da Fe levaram o mundo a encharcar de sangue terras até então pacíficas. E, em nome de Deus, foram capazes de praticar infâmias e ignomínias. Milhares morreram por isso, como ainda morrem, sob as graças do fundamentalismo, o mais radical de todos. O Brasil tem que remover, enquanto é tempo, o risco de semelhante tragédia.

Neste passo, ainda que estejamos distantes desse perigo, é oportuno lembrar que o presidente Bolsonaro tem, de fato, como ajudar o país a não cair em situações temerárias. A começar abdicando de considerar que a melhor justiça é a que se faz com togas consagradas, sem que se lhe casse o direito pessoal de incursionar nas águas do Jordão, sob aplauso dos evangélicos, ou agradar aos católicos em Aparecida. Não deve se permitir misturar política e religião e desconhecer a experiência semelhante a que viveu Bastide: uma e outra acabam se atropelando.

(Algumas vezes, o presidente deixa perplexos os que o ouvem e que o leem. Realmente duvidoso saber em que dimensão metafísica ele instalou sua crença e com que base nela procura governar. Ou dá a impressão de que, tratando das coisas de Deus, andou pelas largas veredas do jagunço de Guimarães Rosa, bebe água de todo rio, reza cristão católico, aceita as reflexões pouco cristãs do compadre Olavo, e nem descarta as rezas dos evangélicos, como o velho Matias roseano. Bolsorano também parece inclinar-se por águas várias).

Por fim, para preocupar mais no ano que finda, uma coisa imperceptível para muitos, mas nem por isso insignificante, é o esforço que se tem feito para separar e distanciar cores e etnias na vida brasileira, como se fossem adversárias. Não para advogar a igualdade entre elas, o que é rigorosamente desejável, mas diferenciá-las; se possível indispondo-as.

A maldosa tentativa de desvirtuar o objetivo ideal figura entre as coisas que ajudaram a entristecer o ano, com espaço para ideias estapafúrdias e esquizofrênicas, como ter na conta de jogo preconceituoso o papel da bola preta do bilhar. Na verdade, maluquices desse gênero não merecem ser levadas em conta, por carecerem de um mínimo de seriedade.

Prisão sem consenso

É farto o rol dos debates parlamentares que jamais chegam ao consenso, por mais que gente bem intencionada tente alcançar o entendimento. Seria enfadonho tentar citá-los, mesmo que recorrendo apenas aos principais. Um dos temas, a prisão em segunda instância, é agora lembrado, porque está de volta em uma comissão da Câmara dos Deputados, e promete reacender divergências no final da semana.

O conflito esbarra, quase sempre, no detalhe essencial. Em grande parte, juristas e parlamentares defendem que a prisão seja recomendada apenas quando se esgotarem todos os caminhos recursais. Portando, só prender depois de vencida a terceira etapa. Está, contudo, largamente demonstrado que se trata de um poderoso instrumento de que se têm valido grandes criminosos para procrastinar o julgamento definitivo ou, graças à lerdeza da Justiça, jogam com o tempo, e dele se servem para ganhar o presente da prescrição. Nesse particular, políticos corruptos têm sido fregueses contumazes.

Na contra-argumentação, defensores da aplicação da pena na segunda instância não veem justificativa para se esperar a terceira apelação, até porque nesta, ao ser atingida, já se esgotou o campo das provas e do mérito da ação. Pode-se recorrer a qualquer tempo, sendo do interesse do réu preso, sem que se imponha limite aos seus direitos.

A verdade que se sobrepõe é que o expediente das longas causas tem se revelado privilégio dos ricos que esbarram na Justiça. E dela têm como se livrar. Têm dinheiro para que seus processos sirvam de almofada nas cadeiras dos cartórios, pagam bem pelo moroso expediente de demoradas e inúteis certidões e despachos, sustentam caros escritórios de advocacia, presenteiam quem tem disposição para ser simpático à sua causa. Coisas inacessíveis aos pobres. A terceira instância é elitizante e elitizada, ao arrepio da igualdade de direitos. Isto é algo que não se pode contestar e vai continuar acima das velhas divergências.

Um golpe à vista

Pode ser que, com uma canetada, o presidente da República pretenda oferecer novo agrado aos deputados, sancionando a lei que desenterra a propaganda partidária e a devolve aos veículos de comunicação social. Extinta essa propaganda em 2017, a Câmara decide retomá-la, sem encontrar justificativa plausível. Trata-se de uma exumação que ofende a seriedade, ainda mais quando se tem como certo que os partidos, de tão vazios e inoperantes, pouco ou nada têm o que mostrar. Afinal, o que terão eles para propagar?

Voltando a ter tempo nas redes de rádio e televisão, sem nada desembolsarem, dão o golpe conhecido como joão-sem-braço, fingindo indigência e mandando a conta para o governo, pela via da renúncia dos impostos devidos pelas emissoras. Com isso, cai a arrecadação em milhões de reais, mais um em prejuízo da população.

Sem qualquer remorso, os deputados também querem a sanção presidencial a tempo de o regalo ser praticado no primeiro semestre do ano eleitoral, o que certamente resultaria em proveito para os que sonham com a reeleição. Tudo com objetivos muito claros, sob a bênção de certa desfaçatez.

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Seg, 06/12/2021 13:12


Ajudar para votar



(( Wilson Cid, hoje, n "Jornal do Brasil" ))  



Acreditam muitos bolsonaristas, na linha dos mais fiéis, que o presidente teve, na semana passada, antecipado, o presente de Natal, quando o Senado inflou seus planos de reeleição, com a aprovação de uma nova roupagem do antigo bolsa família; e, com isso, ganhando fôlego para seu projeto de reeleição. Certamente, foi um estimulante, porque o presidente abençoará, todo mês, com o socorro de 400 reais, milhares de famílias quase a caminho da indigência. Não foi fácil passar pelo Congresso, porque os governistas viram-se na contingência de apertar o orçamento, romper limites e, mais uma vez, empurrar para longe os precatórios, que continuam sobrevivendo como espécie de velhos viúvos enjeitados, porque sempre aparecem propostas mais atraentes. De fato, tem potencial de votos a versão atualizada do programa assistencial, o que, contudo, não significa dar ao candidato necessária tranquilidade para o embate nas urnas. O Auxílio Brasil é forte, mas não suficiente para, por si só, fazer um presidente. Nas conversas palacianas alguém deve ter advertido Bolsonaro sobre isso.

O governo precisa de algo mais para garantir o primeiro teste eleitoral do presidente, e levá-lo ao segundo turno. Restará, por exemplo, o clamor geral para se barrar o processo inflacionário, cruel para todos; e, quando chega avassalador, dele nem escapam os beneficiários do programa social recém-aprovado. Fica a pergunta: até que ponto a sangria inflacionária pode corroer os 400 reais de hoje? Qual seu valor real na hora do voto de gratidão? Nesse particular, não se permite dizer que os beneficiários vão entrar num ano de total segurança.

Além do mais, ainda como tema que não deve escapar da avaliação dos bolsonaristas de boa vontade, cabe considerar que outras faixas da população, que não aquela a que se destina a ajuda, continuarão cobrando do candidato incursões mais corajosas no campo estrutural do governo. Destacam-se dois temas, dependentes de articulações no Congresso, onde já deram sinais de esbarrar em dificuldades, a despeito da importância de ambos. Trata-se das reformas tributária e administrativa. Complexas em si mesmas, têm todos os ingredientes capazes de aquecer divergências e retardar decisões que figuram na órbita política. Os parlamentares que fazem oposição sabem como trabalhar dificuldades e criar obstruções, facilmente ampliadas em ano eleitoral.

São detalhes bastantes para que o governo admita que, mesmo sustentável a expectativa do voto de gratidão dos necessitados, gerada pelos 400 reais mensais, o esperado gesto das classes mais humildes está longe de suficiência para uma campanha exitosa. Cuidem os apoiadores de reconhecer a existência de outros obstáculos, e ajudem o candidato a superá-los, se o desejarem sinceramente.

É interessante o “caráter” do voto. E os que nele confiaram conhecem a realidade: da mesma forma como interesses contrários cuidam de tornar esquecidos os favores esquecidos, o tempo é ágil e hábil para criar novas postulações. Estas, na expectativa de serem atendidas pelo candidato, apagam as gratidões.

O novo ministro

Na próxima semana, quinta-feira, o ministro André Mendonça ganha assento vitalício no Supremo Tribunal Federal, depois do exercício de paciente refém de pirraça da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, que, tanto quanto pôde, atrasou a aprovação, para irritar a Presidência da República. Ao fim, convenceu-se a maioria dos senadores de que o indicado é pessoa tecnicamente qualificada para a responsabilidade de que estará investido, da mesma forma como não identificou nele antecedentes de ordem moral duvidosos, capazes de comprometê-lo.

Talvez fosse dispensável, na antevéspera da sabatina realizada no Congresso, a insistência com que os defensores de sua candidatura, a começar pelo presidente da República, evidenciaram as convicções de fé do novo ministro, de forma que, no entendimento daqueles, a conquista de uma cadeira na alta corte da Justiça fosse, antes de tudo, a vitória de um segmento religioso. O que não pode ser, mesmo diante do esforço de apresentá-lo à nação como alguém “terrivelmente evangélico”, expressão encontrada, mais de uma vez, no Velho Testamento, do qual os crentes gostam de se valer para interpretações literais. Ali, terrível não é definição de terror, mas o sentimento temente a Deus; alguém inabalável frente aos desígnios do Criador.

( Interessante é que Bolsonaro não se anima a remover os riscos de conflito religioso nessa questão. Ao contrário, prefere estimulá-los, como acaba e fazer, prometendo, se reeleito, mandar mais dois “terrivelmente” para compor o plenário do Supremo).

Tudo bem. Como todo brasileiro, o jurista eleito e nomeado ministro tem direito de professar sua fé e propagá-la, embora cuidadoso, ao ser sabatinado, procurou conter reações ao afirmar que, se em uma das mãos sustém a Bíblia, com a outra levanta a Constituição. Para esta, o estado é laico, como tal tem de ser respeitado, e com ela defendidas as instituições, primeiro dever do doutor Mendonça e dos dez pares com quem vai dividir responsabilidade e conviver com os que chegaram lá sem dizer de que templo vieram.

A Carta impõe que matérias e causas em julgamento não podem ceder a convicções religiosas pessoais. Mas, nunca falta quem pretenda colocar em choque a laicidade necessária e a fé do julgador e arquitetar embaraços. Já se vai testar o “terrivelmente evangélico” no voto de desempate para o recurso de apenados transexuais e travestis, que pleiteiam o direito de usar os sanitários que desejarem, independentemente de causarem constrangimento a outros. Os evangélicos não aceitam concessões nesse ponto. Sexo é o que a natureza determinou. Como ficamos, ministro?