terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

 


Wilson Cid
Seg, 21/02/2022 12:32

Além das intenções



((Wilson Cid, hoje no "Jornal do Brasil" )) 

 

Quase em uníssono, como se fossem parte de um coro orquestrado, os pré-candidatos à Presidência da República elegeram três temas preferenciais para o discurso que pretendem levar aos eleitores: fome, inflação e desemprego; pois entendem que mais de 80% dos brasileiros padecem desses problemas, sendo vítimas, ou, ainda que poupados, preocupam-se com a paz social do país. São os assuntos que os absorvem, com superficiais pinceladas na educação, saúde e segurança, discussões não menos momentosas.

Uma campanha acelerada ainda tarda. Nem se sabe exatamente quantos desses pré conseguirão romper certas barreiras políticas que se insinuam inarredáveis. No entanto, o tempo mostra-se mais que suficiente para que avancem dos enunciados e se dediquem logo às explicitações e detalhamento das propostas. Como vencer a fome, conter a inflação e estimular o emprego nos breves quatro anos de mandato? Porque, não sendo assim, sem mostrar as soluções, os temas que os preocupam e que são de todos os brasileiros, acabam reduzidos a meras boas intenções; e destas, como se diz popularmente, o tinhoso já se enfadou… Quem se aventurar numa eleição como a que virá em outubro, tem obrigação de expor, com objetividade, os instrumentos que pensa dispor para solucionar graves desafios que terá pela frente. Não basta prometer o céu; é preciso mostrar como chegar lá.

Na verdade, não é bastante falar de uma nação faminta, desempregada e inflacionada, mas é preciso indicar os caminhos das pedras com que os candidatos pensam evitar o afogamento do país. O que vai interessar ao eleitor é conhecer e avaliar as soluções, porque da natureza dos problemas todos estão suficientemente informados.

O alto nível da campanha presidencial impõe, como dever dos postulantes, um discurso de objetividades. Nesse sentido, por exemplo, temos à vista, como componente desafiador para os rumos da economia, as sequelas que a pandemia vem espalhando sobre ela e em todas as camadas sociais. Uma novidade excitante a reclamar engenho e coragem de quem pretende subir a rampa.

Outro detalhe a considerar. Seria imprudência dos candidatos da oposição, quantos forem e de que partidos vierem, supor que é bastante xingar o presidente com quem pretendem disputar. Não têm direito de se limitarem a isso. Que tragam propostas inovadoras e responsáveis nas bulas dos remédios que consideram apropriados para as enfermidades do momento.

Urnas divergem

Visto está que não se restringem apenas aos políticos e partidos as expectativas pertinentes ao processo eleitoral de outubro. Porque, já há algum tempo alimentadas pelo presidente Bolsonaro, que as deseja auditáveis, também ganharam expressão as reflexões de, pelo menos, dois ministros do Supremo Tribunal. Depreende-se do discurso de Luís Barroso, que se despede da direção do TSE, e de quem chega hoje para substituí-lo, Édson Fachin. Durante a temporada em que dirigiu a corte, Barroso insistiu, com todas as garantias, que as urnas a serem utilizadas são invioláveis, mesmo que sujeitas ao bombardeio de intervenções criminosas, preservadas em trinta níveis de defesa, além dos recursos criptográficos. Não foi suficiente, contudo, para impedir que seu sucessor no cargo advertisse sobre o perigo da ação dos hackers, que, fartamente sabatinados pelos sistemas mais protegidos do mundo, mostraram que têm competência para interferir.

Então, restando pouco mais de sete meses para o pleito, que se concentra principalmente na sucessão presidencial, as dúvidas não se esvaziaram – na verdade progrediram -, o que, de certa forma, acaba estimulando Bolsonaro e os setores políticos que o prestigiam a insistir no voto auditável. Nem se leva em conta que a pretendida inovação sucumbiu ao passar pelo Congresso.

Se já sobravam indagações, na semana passada o general Fernando Azevedo destituiu-se da função de representante das Forças Armadas junto ao Tribunal Superior Eleitoral, o que ajudou a ampliar as nebulosas, porque a alegação de que se afasta para cuidar de enfermidade familiar pareceu insatisfatória. Algo mais deve ter caído no desagrado do general.

Os poderes que conflitam nessa matéria fariam bem se aparassem logo os desencontros, para a tranquilidade do país. Há tempo, porque a população ainda não desviou totalmente suas atenções para a eleição. Por hora, tem outras prioridades a preocupar.

O impeachment

O que teríamos a aprender em sete décadas de vigência da Lei 1.079, de abril de 1950, que definiu crimes de responsabilidade de quem exerce cargos ou funções maiores, a começar pelo presidente da República? Passado tanto tempo desde que Gaspar Dutra a sancionou, admite-se que há alguma coisa a ser aperfeiçoada, por força das experiências impostas pelo tempo.

Por certo foi que, pensando assim, o presidente do Senado criou comissão especial de trabalho para sugerir o que for conveniente aperfeiçoar ou alterar, sem que se destruam princípios básicos da jurisprudência. O grupo, presidido pelo ministro Ricardo Lewandowski, tem 180 dias para apresentar conclusões; e se compõe de pessoas de saber jurídico, via indicações dos tribunais, OAB e órgãos que podem contribuir. Excluiu-se a participação de agentes políticos, o que talvez permita que se tomem conclusões eminentemente técnicas no que se adotar.

Particularmente quando se trata de encaminhar pedido de impeachment do presidente da República o que a comissão deve desejar é eliminar ou minimizar a interferência de clamores e paixões, diferentemente do que se viu nos episódios Fernando Collor, que se antecipou, renunciando, e Dilma Rousseff, em cujos governos os acidentes administrativos certamente teriam sido relevados se ambos contassem com sólido apoio parlamentar. A interferência dos interesses políticos no momento grave afeta o julgamento, tal como já havíamos observado na destituição dos presidentes Café Filho e Carlos Luz, na década de 50, que nem direito de defesa tiveram. As tensões foram alegadas para que se adotasse tramitação ao toque de caixa.

Quando se trata de afastar o governante, os artigos 51, 52 e 85 da Constituição guardam suficiência para a preservação dos interesses maiores da sociedade, blindados frente a outros propósitos que não legais e justos. Os ilegais e injustos sempre correm paralelos, quando os casos são julgados pelo Congresso.

Hoje, são muitas, cerca de vinte, as propostas de impeachment do presidente Bolsonaro, mas com escassas possibilidades de avançarem, exatamente por se deixarem influenciar por intenções políticas, além dos pecados administrativos que se tenta imputar ao seu mandato.

A propósito, estando a comissão presidida pelo ministro Lewandowski, caberia lembrar que a Lei 1079 também cuida dos membros do Supremo Tribunal Federal. Estão sujeitos a julgamento pelo Senado, quando pecarem e incursionarem em atividades e interesses político-partidários. Está claro na Parte Terceira, Título 1 do texto legal: para aqueles ministros o Senado não é apenas tribunal de pronúncia, mas também de julgamento. Pode chamar os togados à fala, quando exorbitarem. Talvez seja hora

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022


Uma fartura perniciosa



((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil")) 

Qualquer observador menos desatento percebe que, no rastro dos acontecimentos políticos do dia a dia, sempre sobra espaço para se solidificar a ideia de que a abundância dos partidos no Brasil não é apenas um problema para a ordem política, mas também permanente desafio para eles próprios. Como são 33 – nas contas atuais – a luta pela sobrevivência, principalmente dos pequenos, leva a disputas acirradas, numa tentativa de preservar espaços mínimos, muitas vezes à custa de escasso respeito mútuo. Fazem lembrar as crianças de antigamente praticando o jogo da gata-parida...

A atual discussão que se trava na complicada tentativa de constituir federações partidárias, certamente condenadas a um rotundo fracasso, revela, com clareza cristalina, o mal que vem do excesso dessas siglas, de onde se extraem dificuldades para acordos que sobrevivam, pelo menos, até meados de 2024; sim, apenas mais dois anos, porque não há otimismo tão imprudente que seja capaz de admitir fôlego de quatro anos para esses conluios.

Fato é que o projeto das difíceis associações, de momentâneo e circunstancial interesse eleitoral, continua esbarrando exatamente nos numerosos partidos, que agora a lei cuidou de jogar num balaio de conflitos inevitáveis. A Justiça acabou ampliando até 31 de maio a tolerância para que acertem os ponteiros. Pouco adiantará.

É de toda evidência o cenário que se traçou diante dos olhos: os grandes partidos (apenas três ou quatro ditam ordens no Congresso) querem atrair os pequenos, não por simpatia ou ideal de alinhamento, mas para transformá-los em serviçais caudatários das ambições maiores; e delas só estão se salvando com o escudo dos interesses regionais. Aos mais raquíticos restaria o sonho de atropelar a cláusula de barreira. Para tanto, nem faltam inocentes sempre esperançosos nas boas graças dos maiores. Os ricos pedem que os mais pobres venham ajudá-los…

( Certos partidos nanicos pretendem importar para a política de nossos dias as páginas de Os Miseráveis, de Victor Hugo, onde se lê a eterna expectativa de Valjean de receber um sinal de benemerência de Javert, o poderoso policial.))

Ainda sobre a inconveniência das demasias que se incorporaram ao pluripartidarismo, vêm concordando as lideranças que advogam o semipresidencialismo, a ser adotado até o final da década. Mas sabem que é impossível chegar lá sem que, antes, sejam capazes de promover a redução do número de legendas e o excesso herdado do bipartidarismo da ditadura. O que se viu em fins de 70, restaurada a liberdade, foram correntes políticas empreendendo corrida para sair da sombra e encontrar seu lugar ao sol; novas siglas fazendo o papel de umbrelas salvadoras. Mas esse tempo passou, é preciso corrigir os defeitos que ficaram, entre os quais a intragável sopa de letrinhas.

Prêmio ao crime

A indisposição do Congresso Nacional para ferir temas que considera excessivamente polêmicos ou complexos, capazes de perturbar o ano eleitoral, permite admitir que reformas essenciais ficarão mesmo para a próxima legislatura. Mas, também quanto a esta restam algumas dúvidas, porque deputados e senadores, tão logo assumam em fevereiro, já estarão preocupados com a eleição para as prefeituras em 2024. Um novo pretexto destinado a empurrar matérias que, sendo agora polêmicas, continuarão com a marca da inoportunidade política. Cabe prever que muitos parlamentares que vão se instalar começam sonhando com as prefeituras dos municípios onde fincam seus redutos eleitorais. Muitos não negam e confessam a ambição de suas candidaturas municipais. Estes certamente vão preferir estar distantes do parlamento, e nisso uma nova dificuldade para a tramitação de matérias que requerem dedicação presencial.

No fundo, o que certamente haverá de prevalecer entre os congressistas é que as grandes questões tornam-se desgastantes; invariavelmente, porque embaralham e confundem as atenções dos eleitores. Mas, num exercício de argumentação, cabe lembrar e indagar que, se o objetivo é prender o interesse da população, por que não ampliar as campanhas e tratar, não de complexidades, mas de temas que já ganharam a preferência da opinião pública? Para citar um entre vários que se ajustam nessa avaliação: o fim dos chamados “saidões”, coleção de regalias para milhares de criminosos que estão cumprindo pena, e são premiados com longas ausências, não raro aproveitadas para que sejam cometidos outros graves delitos. Há, na Câmara, projeto do deputado Neucimar Fraga (PSD-ES) e, no Senado, idêntica propositura de Ciro Nogueira (PP-PI) mandando a Justiça eliminar tal benefício. Setores vários da sociedade manifestam amplo apoio à iniciativa.

O cidadão apenado goza de liberdade de 35 dias, mais bem servido que o trabalhador, que tem 30 dias de férias... Uma excrescência que precisa ser corrigida, se não por outras razões, pelo menos que duas sejam levadas em conta: a primeira é que, antes da ilusória ressocialização, a pena é um castigo pelo crime que se comete. A razão seguinte a recomendar o fim dos “saidões” é que a liberalidade sempre enseja a reincidência.

Fundo guloso

Não havendo contratempo ou alteração da pauta, o Supremo Tribunal Federal pode decidir, amanhã à tarde, se é possível tolerar a volúpia com que os deputados mergulharam no Fundo Eleitoral, ampliando de R$ 2 bi para R$ 6 bi o dinheiro público que pretendem consumir em suas campanhas. As togas dessa corte, quando chamadas a interromper abusos praticados pelos agentes do poder econômico, financiadores de candidaturas comprometidas, não imaginaram, ou não quiseram imaginar, que, ao proibir o financiamento privado corruptor, estavam, como consequência, abrindo as portas por onde ingressou o apetite avassalador dos candidatos. Amanhã, desejável é que os ministros encontrem uma forma de conter o avanço, que escandaliza a sociedade brasileira. Aliás, para eles constitui oportunidade de repaginar seu prestígio na sociedade, que já esteve em nível bem melhor.

Mas, admitamos, não é fácil. Primeiro, porque o Tribunal tem dado demonstrações de simpatia e tolerância em relação a figuras exponenciais do Congresso Nacional, sem medir esforço e recursos jurídicos para isentá-las das graves acusações que pesam sobre elas. Ainda agora, para ampliar a coleção de espantos, encontrou argumento para liberar os senadores Jáder Barbalho e Renan Calheiros de acusações, suficientemente demonstradas, de terem ambos se beneficiado com comissão de 0,45% sobre concessões para obras empreitadas. Por estas e outras, ao STF tem sido atribuído empenho para reduzir a população carcerária, soltando, preferencialmente, os maus políticos…

Outro detalhe, que pode constranger os ministros na hora de condenar os excessos com o Fundo Eleitoral é que, se decidirem conter a gula dos parlamentares, estarão, ainda que indiretamente, endossando antecedente crítica de Bolsonaro, que já condenara o avanço despudorado. E, concordar com o presidente da República, ainda que de forma oblíqua, não é coisa do agrado do Supremo.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022


Federações natimortas



(( Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" )) 

Nascida sem que pudesse dissimular a índole de maquiagem das velhas coligações, que tanto mal produziram na representação parlamentar, a federação dos partidos acabou exigindo pouco tempo, nada mais que algumas semanas, para desmascarar-se a si mesma. Logo estampou sua incapacidade de unir, com seriedade, siglas com um mínimo de identidade e visão patriótica, mas traída pelo poder operacional dos interesses estaduais, sempre acima e à frente das questões nacionais; um certo ranço do modelo que prosperava com desenvoltura na Velha República: os estados sempre antes da Federação, tempo em que as decisões começavam pelos membros menores, que ditavam a conduta do corpo maior.

As dificuldades dessas estranhas fusões não seriam novidade, muito menos causa de espanto, porque em qualquer época passada as eleições brasileiras puderam assistir a muitos cenários esdrúxulos, como a ligação de partidos de esquerda unindo-se a extremistas da direita; sim, porque assim, em determinado momento, ditavam conveniências regionais. Passada a temporada dos momentâneos interesses, retomavam-se antigos rancores, alguns célebres, sobrevividos em variadas histórias pitorescas. Dissipavam-se os ódios, que, havendo necessidade, voltam a sopravam velhas cinzas, e depois descansar nos antigos túmulos. 

No caso atual, tempo das federações, os problemas logo se evidenciaram com o pedido protocolizado junto ao TSE para que a pretendida associação dos partidos não mais obedeça à exigência dos seis meses constitutivos, contados antes das eleições de outubro. Pretendeu-se encurtar a antecedência para apenas dois meses, dadas as evidentes dificuldades para um diálogo produtivo e conclusivo entre possíveis aliados. Visto estavam a ponderar os imbróglios estaduais. O pedido de tempo para pensar e acertar é suficiente para evidenciar a fragilidade da invenção federativa, pá de coveiro chamada a exumar as velhas coligações. Invenção laboratorial que, a ser mantida, mesmo diante de tamanha artificialidade, não terá como garantir os quatro anos de sobrevivência que a lei impôs aos criativos “doutores silvanas” da política, inventores do monstrengo. Até porque não haveria como resistir ao teste da eleição dos prefeitos em 24. Pode-se apostar: assumida a nova legislatura, em fevereiro, os próprios parlamentares, reeleitos ou novatos, cuidarão de devolver ao túmulo as coligações pintadas de federação.

Esta é uma dedução que certamente não pecará pela impertinência, depois de as urnas deste ano ajudarem a inviabilizar esse laboratório de complicadas misturas de partidos e ingredientes que não estão conseguindo a assimilação pretendida. No máximo, num exercício de generosidade, salvará partidos nanicos que correm para escapar da guilhotina do desempenho e, talvez, assegurem acesso a algumas migalhas dos fundos eleitorais ou escassos segundos de propaganda na TV. Mais que isso seria esperar quase o impossível.

Não se fala do vice

As articulações que gravitam em torno das pré-candidaturas à Presidência da República passam ao largo, quando se trata de nomes cogitáveis para a vice. O que se tem visto são raras especulações ou comentários quase sempre sem maior consistência. A explicação geralmente conhecida é que na composição das forças políticas o vice está condenado a ser resultado das alianças possíveis, situação que explica um fato bastante conhecido: a escolha costuma não coincidir com o gosto e a preferência de quem encabeça a chapa.

Do pouco que se tem falado a respeito, depreende-se que o PT planeja convidar o egresso tucano Geraldo Alkmin, missão que está a exigir grande esforço, porque o projeto fica longe de ser do agrado da maioria petista, cujo paladar repugna esse cardápio. Em outra vertente, o governador paulista João Dória, também pré-candidato, mal disfarça o desejo de ter a companhia de um nome do MDB, partido que finge não aceitar, mas sabe muito bem como tirar proveito do cargo, sem sofrer os desgastes naturais da Presidência. E é o que temos.

O nome do vice, produto dos acertos, muitas vezes também resultado de longo processo de exclusões, devia ser uma peça mais importante no debate eleitoral, sem que se perca de vista que, longe do papel de mero figurante, é quem pode ser chamado, nas eventualidades, a assumir os destinos do país, muitas vezes em momentos gravíssimos. Neste particular, o Brasil tem relevância, pois, diferentemente do que se experimentou em qualquer outro país, aqui os vice-presidentes protagonizaram metade da história republicana. De Floriano a Temer. Quase invariavelmente, as crises políticas começaram com eles ou terminaram neles, realidade que tem tudo para estranhar a irrelevância com que a disputa presidencial os relega, sempre esperando que se formem os comboios das alianças para embarcar em um deles.

Não apenas por curiosidade, releva saber, para se confirmar a importância de quem sucede ou substitui os titulares, que em nossa acidentada peregrinação pela República na pele dos vices somos duplamente recordistas mundiais. O mandato mais curto, em 1955, com Carlos Luz, que presidiu por apenas três dias; o mais longo, quando Sarney ficou com os cinco anos de Tancredo Neves, assumindo o primeiro lugar, até então com Andrew Johnson, que havia abiscoitado três anos e 11 meses de Lincoln, nos Estados Unidos.

Vê-se, sem maior esforço, que o eventual sempre teve papel notável na História. Bastaria isso para justificar a necessidade de a campanha pelos votos colocá-lo em lugar privilegiado e decisivo, expondo suas ideias, e o eleitor possa conhecer quem poderá estar, em qualquer dia, assumindo o destino desses milhões que somos nós.

É preciso cobrar

Certamente que, não sendo raras as divagações no plenário do Supremo Tribunal Federal, onde, ainda recentemente, houve tempo e vagar para se ocupar do caso de alguém que roubou um quilo de picanha, é de se esperar que, encerrando agora seu recesso, a corte insista com o Congresso Nacional para que demonstre, claramente, os critérios obedecidos (se é que houve sérios critérios) para a destinação das verbas do chamado “orçamento secreto”, que, pelo próprio nome, já autoriza muitas dúvidas. No Senado, o relator da peça fantasma, Márcio Bittar, ficou devendo a relação dos parlamentares que endossaram, e tendo nomes preservados, os pedidos formulados por prefeitos, vereadores e entidades, todos contemplados. Quem são os patronos das generosas emendas? Nada, absolutamente nada, justifica cobrir de segredos o destino do dinheiro que sai dos impostos. Portanto, nesse lamentável episódio encoberto, estão aparelhados os poderes Legislativo e Judiciário. Não têm como se eximir.

Há um vácuo no cumprimento das exigências do STF, onde, vê-se, as exigências de transparência com outros poderes não são tão abrangentes como deviam ser.

Já nem se questiona, ainda que fosse de total pertinência, avaliar a aplicação das verbas de emendas, como as que passaram com a discreta simpatia do atual presidente do Senado por Minas, e do que o antecedeu, influente o bastante para destinar R$ 3,8 milhões para a construção de novo estádio no Amapá. Sabem todos que não só lá, como em qualquer outro lugar do Brasil, o que menos faz falta é campo de futebol.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022


Rica e pobre campanha



((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))



Na campanha eleitoral deste ano há uma coisa da qual os partidos e os candidatos não poderão se queixar, porque, além de ser farta a coleção de temas que estão a exigir discussões sérias e profundas, quem for aos palanques vai contar com a generosidade do Fundo Eleitoral, que ampliou suas reservas de R$ 2 bi para R$ 6 bi, violência praticada pelos deputados contra a seriedade, depois de obterem sanção presidencial com a lógica da extorsão. Aporte-se a esse tesouro o Fundo Partidário, mesmo que bem mais modesto, com R$ 1 bi, mas longe de estar na indigência. Obra do Congresso ao avançar no dinheiro que sai suado do bolso do povo. Acho que já reproduzi aqui o que, certa vez, disse o senador americano John Randolph: o mais delicioso dos privilégios é mesmo gastar o dinheiro dos outros… Sem dúvida.

Não será, portanto, por falta de dinheiro que a campanha teria de se empobrecer quanto ao conteúdo, nem abrir mão de um alto nível, para se empenhar apenas no destino dos candidatos; mas, acima de tudo, que se transformasse numa eficiente jornada cívica, ajudando a instruir a natureza e a responsabilidade do voto.

Feitas algumas comparações com o resto do mundo, algumas já conhecidas, observa-se que o Brasil pode ser incluído entre os que mais produzem maldades nas campanhas eleitorais, porque, na leva das verbas vultosas dos fundos, elegem-se poucos bem intencionados e muitos com ideias e planos perversos, valendo-se do dinheiro da população para trabalhar exatamente contra os interesses dela.

Um ponto de observação, a partir dessa terrível realidade, recomenda que o eleitor deve se tornar mais exigente com o voto. Adotar extremo cuidado com os lobos que se vestem com pele de cordeiro, os que balem falsamente, dificultando a fácil identificação dos maus. Porque se os indesejados não trazem estrela na testa e não há como adivinhá-los, tudo concorre para que o voto se acautele cada vez mais, e não afunde no pântano da política armada pelos maus caracteres, que são muitos e nenhum pudor.

Se a realidade política dos nossos dias revela o mundo de armadilhas e tramas contra os interesses nacionais, maior é a insegurança de grande parcela da população; e exatamente por isso não se pode abrir mão da guarda. Portanto, desconfiar das promessas vãs, seguidas de falsos sorrisos e agrados fáceis. Que assim seja neste 2022, para que o brasileiro não continue sendo criticado como gente que não sabe votar. Há anos, disse Pelé, num intervalo de suas habilidades com a bola, que o brasileiro precisava aprender a votar, referindo-se à pobreza da representação nas casas dos poderes. Hoje, o professor Daniel Ibrahim Marun, que vai publicar ensaio sobre eleições em países que visitou, como México, Canadá e Espanha, chega a conclusão muito próxima do atleta, garantindo que todos os males brotam e prosperam do descuido dos eleitores, principalmente quando votam com excesso de paixão ou ódio exagerado. Estejam eles na terra de Pelé ou em qualquer lugar do mundo.

Maioridade penal

É natural certa dificuldade em assimilar, muito menos adotar, o argumento corrente entre senadores e deputados candidatos, de que o ano eleitoral não é adequado para o debate de temas de maior relevância. A lógica sugere entendimento oposto, porque, se é chegada a hora de enfrentar a sociedade, e dela ouvir grandes preocupações, é mais que natural abraçar a oportunidade para se falar sobre questões momentosas.

Sob o mesmo pretexto da inoportunidade, e com o temor de maiores cobranças resultantes das urnas, continuam sendo empurradas para o futuro discussões importantes; e, ainda agora, é o que se dá com a questão a maioridade penal aos 16 anos, como recomendou PEC já aprovada pela Câmara em 2015. Naquele ano, estimulava os deputados uma pesquisa que dava 70% da população apoiando a ideia de que, sendo outros os tempos, é inconcebível que, menor de 18 anos, o brasileiro seja considerado penalmente imputável.

Vale, pelo menos, discutir o assunto, porque, com ou sem coincidência com o ano das urnas, não se esgotaram as razões para que sejam retomadas as divergências, ainda que poucos reconheçam as amplas responsabilidades do garotão, que aos 16 anos pode votar, casar e se habilitar para dirigir carro, mas continua abençoado pela tolerância do Código Penal para cometer os mais diversos crimes, entre os quais, não raro, os hediondos. Quando passa dos 15 anos, vivendo num mundo sem antigas inocências, mas sob fantástica massa de informação, ele perde o direito de dizer que não sabia o que estava fazendo ou distinguiu o mal e o bem. Mas este argumento é insuficiente para os que não querem mexer na lei, além de terem como certo que, preso, um jovem de 16 anos também estará automaticamente condenado a ser criminoso para o resto da vida. Se é verdade, cabe lembrar que a escassa possibilidade de recuperação não vai cair apenas sobre o moço delinquente, mas ocorre em relação à totalidade da população apenada. É a realidade que a condena a isso.

Há anos, a desembargadora Áurea Pimentel Pereira, daqui do Rio, lembrava, e hoje ainda sua reflexão serve para se avaliar delitos praticados por menores, que o comportamento criminoso não está ligado, necessariamente, à exclusão social, à miséria e aos indigentes. O bandido, moço ou velho, não será apenas vítima dos defeitos do seu tempo, nem apenas excluídos das favelas, porque quem viola a lei está em todo lugar; e, muitas vezes, informado e instruído no recesso do lar. Demais, se todos os crimes forem atribuídos à vida miserável, o que dizer dos miseráveis que não se corrompem, vivem honestamente e vencem?

O que poderia justificar descaso com questões dessa natureza, que ferem fundo o interesse da população, e mantê-las equidistantes da campanha eleitoral e dos que em breve votarão e serão votados?

A quem chamar ?

Na última vez em que se tornaram arestosas e aquecidas as relações do presidente da República com o Supremo Tribunal Federal, situação do tipo das que sempre justificam temores da nação, pediu-se o socorro conciliador de Michel Temer, que, bem sucedido, mostrou competência para aplicar panos quentes sob o clima de festa da Independência. Agora, a disputa de prestígio e de poder retorna ao cenário, depois que Bolsonaro se recusou ir à Polícia Federal para depor sobre suposto vazamento de dados sigilosos do Tribunal Superior Eleitoral.

O novo quadro tem tudo para ampliar o clima de tensões, sem que se saiba se o ex-presidente Temer ainda dispõe de suficiente chá de ervas para esfriar a febre dos desafetos Bolsonaro e ministro Alexandre Morais. Resta algum pessimismo em relação a isso, porque não há remédio capaz de durar sempre. E ninguém consegue ser pacificador de plantão.

Há um detalhe a ser considerado ao lado desse impasse de cordas esticadas entre o Palácio do Planalto e o Supremo. É hora de avaliar até que ponto Bolsonaro se sente com costas largas para ganhar o apoio dos militares no grave conflito, já que pouco espera de ajuda política do Congresso; sim, porque, no presente caso, a solidariedade não poderia contar com favores compensatórios, como os parlamentares gostam de cobrar pelos bons serviços prestados. Por outro lado, pergunta-se, até que ponto seu desafeto, Moraes, poderá se valer da adesão ou tolerância de seus pares na corte. Nem todos o eximem da culpa de estar esticando excessivamente essa corda, que ninguém vê nem toca, mas existe e é muito perigosa.