terça-feira, 15 de fevereiro de 2022


Uma fartura perniciosa



((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil")) 

Qualquer observador menos desatento percebe que, no rastro dos acontecimentos políticos do dia a dia, sempre sobra espaço para se solidificar a ideia de que a abundância dos partidos no Brasil não é apenas um problema para a ordem política, mas também permanente desafio para eles próprios. Como são 33 – nas contas atuais – a luta pela sobrevivência, principalmente dos pequenos, leva a disputas acirradas, numa tentativa de preservar espaços mínimos, muitas vezes à custa de escasso respeito mútuo. Fazem lembrar as crianças de antigamente praticando o jogo da gata-parida...

A atual discussão que se trava na complicada tentativa de constituir federações partidárias, certamente condenadas a um rotundo fracasso, revela, com clareza cristalina, o mal que vem do excesso dessas siglas, de onde se extraem dificuldades para acordos que sobrevivam, pelo menos, até meados de 2024; sim, apenas mais dois anos, porque não há otimismo tão imprudente que seja capaz de admitir fôlego de quatro anos para esses conluios.

Fato é que o projeto das difíceis associações, de momentâneo e circunstancial interesse eleitoral, continua esbarrando exatamente nos numerosos partidos, que agora a lei cuidou de jogar num balaio de conflitos inevitáveis. A Justiça acabou ampliando até 31 de maio a tolerância para que acertem os ponteiros. Pouco adiantará.

É de toda evidência o cenário que se traçou diante dos olhos: os grandes partidos (apenas três ou quatro ditam ordens no Congresso) querem atrair os pequenos, não por simpatia ou ideal de alinhamento, mas para transformá-los em serviçais caudatários das ambições maiores; e delas só estão se salvando com o escudo dos interesses regionais. Aos mais raquíticos restaria o sonho de atropelar a cláusula de barreira. Para tanto, nem faltam inocentes sempre esperançosos nas boas graças dos maiores. Os ricos pedem que os mais pobres venham ajudá-los…

( Certos partidos nanicos pretendem importar para a política de nossos dias as páginas de Os Miseráveis, de Victor Hugo, onde se lê a eterna expectativa de Valjean de receber um sinal de benemerência de Javert, o poderoso policial.))

Ainda sobre a inconveniência das demasias que se incorporaram ao pluripartidarismo, vêm concordando as lideranças que advogam o semipresidencialismo, a ser adotado até o final da década. Mas sabem que é impossível chegar lá sem que, antes, sejam capazes de promover a redução do número de legendas e o excesso herdado do bipartidarismo da ditadura. O que se viu em fins de 70, restaurada a liberdade, foram correntes políticas empreendendo corrida para sair da sombra e encontrar seu lugar ao sol; novas siglas fazendo o papel de umbrelas salvadoras. Mas esse tempo passou, é preciso corrigir os defeitos que ficaram, entre os quais a intragável sopa de letrinhas.

Prêmio ao crime

A indisposição do Congresso Nacional para ferir temas que considera excessivamente polêmicos ou complexos, capazes de perturbar o ano eleitoral, permite admitir que reformas essenciais ficarão mesmo para a próxima legislatura. Mas, também quanto a esta restam algumas dúvidas, porque deputados e senadores, tão logo assumam em fevereiro, já estarão preocupados com a eleição para as prefeituras em 2024. Um novo pretexto destinado a empurrar matérias que, sendo agora polêmicas, continuarão com a marca da inoportunidade política. Cabe prever que muitos parlamentares que vão se instalar começam sonhando com as prefeituras dos municípios onde fincam seus redutos eleitorais. Muitos não negam e confessam a ambição de suas candidaturas municipais. Estes certamente vão preferir estar distantes do parlamento, e nisso uma nova dificuldade para a tramitação de matérias que requerem dedicação presencial.

No fundo, o que certamente haverá de prevalecer entre os congressistas é que as grandes questões tornam-se desgastantes; invariavelmente, porque embaralham e confundem as atenções dos eleitores. Mas, num exercício de argumentação, cabe lembrar e indagar que, se o objetivo é prender o interesse da população, por que não ampliar as campanhas e tratar, não de complexidades, mas de temas que já ganharam a preferência da opinião pública? Para citar um entre vários que se ajustam nessa avaliação: o fim dos chamados “saidões”, coleção de regalias para milhares de criminosos que estão cumprindo pena, e são premiados com longas ausências, não raro aproveitadas para que sejam cometidos outros graves delitos. Há, na Câmara, projeto do deputado Neucimar Fraga (PSD-ES) e, no Senado, idêntica propositura de Ciro Nogueira (PP-PI) mandando a Justiça eliminar tal benefício. Setores vários da sociedade manifestam amplo apoio à iniciativa.

O cidadão apenado goza de liberdade de 35 dias, mais bem servido que o trabalhador, que tem 30 dias de férias... Uma excrescência que precisa ser corrigida, se não por outras razões, pelo menos que duas sejam levadas em conta: a primeira é que, antes da ilusória ressocialização, a pena é um castigo pelo crime que se comete. A razão seguinte a recomendar o fim dos “saidões” é que a liberalidade sempre enseja a reincidência.

Fundo guloso

Não havendo contratempo ou alteração da pauta, o Supremo Tribunal Federal pode decidir, amanhã à tarde, se é possível tolerar a volúpia com que os deputados mergulharam no Fundo Eleitoral, ampliando de R$ 2 bi para R$ 6 bi o dinheiro público que pretendem consumir em suas campanhas. As togas dessa corte, quando chamadas a interromper abusos praticados pelos agentes do poder econômico, financiadores de candidaturas comprometidas, não imaginaram, ou não quiseram imaginar, que, ao proibir o financiamento privado corruptor, estavam, como consequência, abrindo as portas por onde ingressou o apetite avassalador dos candidatos. Amanhã, desejável é que os ministros encontrem uma forma de conter o avanço, que escandaliza a sociedade brasileira. Aliás, para eles constitui oportunidade de repaginar seu prestígio na sociedade, que já esteve em nível bem melhor.

Mas, admitamos, não é fácil. Primeiro, porque o Tribunal tem dado demonstrações de simpatia e tolerância em relação a figuras exponenciais do Congresso Nacional, sem medir esforço e recursos jurídicos para isentá-las das graves acusações que pesam sobre elas. Ainda agora, para ampliar a coleção de espantos, encontrou argumento para liberar os senadores Jáder Barbalho e Renan Calheiros de acusações, suficientemente demonstradas, de terem ambos se beneficiado com comissão de 0,45% sobre concessões para obras empreitadas. Por estas e outras, ao STF tem sido atribuído empenho para reduzir a população carcerária, soltando, preferencialmente, os maus políticos…

Outro detalhe, que pode constranger os ministros na hora de condenar os excessos com o Fundo Eleitoral é que, se decidirem conter a gula dos parlamentares, estarão, ainda que indiretamente, endossando antecedente crítica de Bolsonaro, que já condenara o avanço despudorado. E, concordar com o presidente da República, ainda que de forma oblíqua, não é coisa do agrado do Supremo.

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