A cara do inimigo
A libertação do ex-presidente Lula foi o alvoroço da semana passada, como também o pioneiro instrumento para definir com clareza os papéis de oposicionistas e governistas nas duas eleições que se seguirão. A oposição devolve às ruas a bandeira lulista, depois de permanecer indefinida enquanto seu líder purgava condenação trancafiado em Curitiba. Parece ter ficado claro na veemência com que ele deixou a cela e investindo contra os adversários. É naturalmente o escalado para bater, sem resquício de tolerância, no governo Bolsonaro.
Mas o episódio sugere revelar que o presidente também saiu contemplado. Se até agora os ensaios de contestação e descontentamento vinham das próprias entranhas do poder, em clima de convulsão intestina, aqueles 6x1 do Supremo Tribunal fizeram o favor de dar a Bolsonaro um adversário visível e autêntico, o que lhe permitirá proveito da polarização, fenômeno talvez já formatado para o cenário eleitoral de 2020. Foram duas as portas que se abriam para os dois.
De novo assistiremos àquela radicalização do ano passado, quando o antilulismo converteu-se em gigantesco cabo eleitoral da direita. Nesse novo tabuleiro do xadrez os eleitores estarão em xeque-mate para optar entre ser contra ou a favor, um espectro que rouba parte da identidade do cidadão e de seu voto.
Tal ocorrendo, os municípios serão chamados a oferecer sua cota de sacrifício. Envolvidos pela polarização das lideranças nacionais, os problemas do cotidiano das populações do interior cairão para segundo plano. Um prefeito se elegerá mais pelas simpatias ou antipatias em relação a Bolsonaro e a Lula, o que bastará para relegar a plano inferior propostas locais sobre saúde, educação e transporte. Nas urnas de 2020, ardendo paixões cristalizadas entre o presidente e seu desafeto, uma política de arcos e flechas, ódios derramados e o país sob a égide da intolerância, ao munícipe pouco espaço restará para cuidar dos temas que interessam à terra em que vive.
Seja qual for o destino mediato ou imediato do ex-presidente, que já partiu para o ataque, um fato consequente irrecusável é que Bolsonaro conheceu a cara do adversário, depois de passar parte de sua gestão convivendo com esse ineditismo: a oposição, diferentemente do que vivenciara em outros tempos, não se encarregara de uma contestação natural de grupos contrários. Estranho que pareça, até essa providencial libertação de Lula, estão nas próprias trincheiras os criadores de problemas para o Planalto; involuntários empenhados no esforço de corroer as entranhas do poder, a começar pelo papel desgastante desempenhado por parentes ou amigos de consoada; não os que deviam trazer pedras na mão, mas os que aplicam tapinhas nas costas. Peculiar, quase bizarra, a realidade a que se assiste através dos meios de comunicação: ataques, denúncias e suspeitas quase sempre nascendo e prosperando entre antigos correligionários de partido e ex-colaboradores, para não se falar das incursões da prole.
Note-se, então, que foram duas as portas libertadoras, por onde os dois acabam de passar. O ressurgimento de Lula é, nesse sentido, quase uma bênção para o adversário que pretende destruir.
Bom que os litigantes, conhecidos por cultivarem incontinência verbal, não deem asas ao catastrofismo nem estimulem correligionários a manifestações predatórias; mas cuidem de discutir, criticar, denunciar, sem que facilitem desordens, impasses e destruições. Diferentemente do que se tem visto em países asiáticos, na França, no Chile, no Iraque, como também na metrópole Hong Kong. Não custa considerar as lições que vêm de longe. (Wilson Cid hoje no “Jornal do Brasil”)
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