Continente em conflitos
Não seria novidade afirmar que a primeira responsabilidade do Brasil perante a política de relações na América Latina é desempenhar um papel mais saliente na Organização dos Estados Americanos. Tal sua importância, paralelamente à complexidade de muitos desafios que aportam, já havia assustado o presidente Itamar Franco, que ali representou o país durante alguns meses. Muitos endossam tal observação, para completar afirmando que a velha OEA talvez não tenha prosperado muito graças, em parte, à presença discreta dos últimos governos brasileiros. Provavelmente seria superestimar nossa capacidade de liderança continental, o que não invalida os que reclamam maior empenho na entidade, só ocasionalmente lembrada que tem sede em Washington.
A preocupação faz sentido, ainda que longe de ser inédita, porque nos onze meses desde que foi instalado, o atual governo não revelou disposição de focar maiores interesses diplomáticos junto a Organização, onde certamente há muito o que fazer. Avulta intensa e robusta pauta, no momento que está a merecer maiores atenções, porque, além dos conflitos intestinos que sacudem vários países, cabe aprofundar avaliações sobre detalhe de singular gravidade: os tumultos que nestas semanas têm sido registrados na América do Sul revelam certa sincronia orquestrada, como se as manifestações de rua fizessem parte de um único modelo internacional a ser desenvolvido independentemente das causas e dos objetivos que os inspiraram. Direita ou esquerda? Não importa, porque há primordial intenção de destruir, numa onda avassaladora, que nem poupa e preserva o sentimento religioso da nação, como se vê na depredação de igrejas no Chile.
Os acontecimentos geradores da violência que há meses se desenrola naquele país, como também na Bolívia, Venezuela e Argentina, recomendam, pelo menos sugerem, no âmbito das responsabilidades da Organização dos Estados Americanos, que sejam examinados como um produto de mesma origem, coordenados, nem sempre sob pretextos muito claros; ou – quem sabe? - tenham a motivá-los uma geração única acionada a distância; ou à distância de 6.400 quilômetros…
Pode ser que tal suspeita soe fantasiosa ou dependa de dados concretos capazes de justificar maiores preocupações. Mas cabe considerar que o cenário a que no momento se assiste nas vizinhanças acaba sendo um perfeito instrumento a povoar as tentações de regimes sempre prontos a se valerem de medidas excepcionais, em nome da ordem pública e da normalidade administrativa. Cabe identificar e separar as intenções, garantindo-se plenamente o direito de manifestação, que nas liberdades individuais e coletivas é o trigo saudável; o joio está na arquitetura dos tumultos que não pretendem soluções, mas apenas balançar as instituições.
O Brasil, a considerar o que externam as autoridades, não leva em conta que os problemas podem acabar precipitados para os nossos lados. Ou talvez, sem ignorá-los, o governo Bolsonaro prefira esvaziar as ameaças, fazendo de conta que elas não existem, embora vozes há que desejam ver o país na geografia tumultuária. Talvez. Mas essa tranquilidade, se de fato existe, não justifica fazer ouvidos moucos, porque os incêndios vizinhos sabem exportar labaredas, afora o inarredável compromisso brasileiro com a paz continental. Não há palco mais apropriado que a Organização dos Estados Americanos para expor tais preocupações, que vêm se revelando cada dia mais procedentes.
(Wilson Cid hoje, terça-feira, no "Jornal do Brasil')
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