terça-feira, 28 de abril de 2020


Crises em escala

(( Wilson Cid hoje no “Jornal do Brasil” ))


É de se imaginar como anda a cabeça dos analistas políticos, convocados, desde o fim de semana, ao exercício da imprevisibilidade quanto ao epílogo do embate entre o presidente Bolsonaro e seu ex-ministro Sérgio Moro. Não se sabe em que barrancos haverá de esbarrar o conflito, a não ser a certeza de que ambos podem sair arranhados; até porque, não bastassem as tensões de véspera, entraram num bate-boca virtual, com abordagens nem sempre adequadas ao interesse do país. E acresce certa dúvida quanto às cartas comprometedoras que os combatentes teriam nas mangas, se o conflito verbal prosperar, com final imprevisível.

Tudo concorrendo para gerar insegurança nas análises sobre o que está por vir nas próximas semanas, sem que faltem pessimistas surfando ondas apocalíticas. Inseguros na formulação de previsões consistentes, alguns comentaristas admitem que o quadro tende a esperar desdobramentos, no Supremo Tribunal, onde o ministro Celso de Mello está debruçado sobre as denúncias de Moro contra o ex-chefe. São conhecias suas reservas quanto a certos comportamentos do Executivo, mas ninguém garante que o decano da mais alta corte de Justiça estaria disposto a pesar a mão e agravar os incêndios em curso. Não vai estimular em demasia o desencanto mútuo entre dois homens que assumiram graves responsabilidades ante a sociedade brasileira, e agora digladiam.

As tensões entraram nesta semana, sugerindo que é preciso cuidar logo da governabilidade, preocupação a prosperar, sem prejuízo das denúncias e das suspeitas que requerem apuração. Talvez tenham pensado nisso os presidentes do Senado e da Câmara, que optaram pelo silêncio ante o episódio, preferindo não entrar em cena, porque nos momentos agudos calar costuma ser mais prudente que qualquer eloquência. Por exemplo, e sem intenção de acolher ou recusar as culpas do presidente, propor o impeachment num momento como este, já com as febres e convulsões do coronavírus, é querer exigir demais da resistência do país a novos abalos, fragilizado por agressões anteriores. Nada mais imprudente que promover tempestade quando o mar já se mostra revolto. Os militares, quando debruçados sobre lições de tática e estratégia, sabem da inconveniência de deflagrar muitas batalhas a um só tempo. Uma de cada vez. O capitão não pode esquecer isso.

Permanece em aberto a crise política, que é a terceira, antecedida pelo vírus e pelas incertezas no campo da economia, estas parcialmente removidas ontem, com a confirmação e o robustecimento do ministro Paulo Guedes no cargo. Persiste o impasse, cujo epicentro está no presidente da República, desde a acusação de tentar conhecer investigações da Polícia Federal, talvez mais preocupado com a sorte de parentes e amigos, coisa que não dissimulou em seu recente pronunciamento à nação, quando até assumiu as dores da sogra e de um filho, este talvez injustamente acusado de um romance que não houve. Queixou-se de má vontade dos que têm o dever de protegê-lo. Seja como for, aos presidentes a História sempre recomenda manter a família distante dos negócios do poder. Maiores intimidades domésticas já haviam levado Vargas à tragédia.


Em relação a esse interesse que Bolsonaro manifestaria sobre os arquivos da PF é indispensável que estejam apuradas, pelo STF, as acusações formuladas pelo ex-ministro; e se o desejado acompanhamento das investigações teria mesmo o propósito de proteger antigos ou futuros aliados comprometidos. Com a ressalva de que não se pode negar a ele o direito de estranhar a conclusão a que chegaram polícia e justiça sobre o atentado que sofreu em setembro de 2018, atribuído apenas a um maluco, apesar das evidências da participação de outros implicados. Contudo, são coisas distintas: o projeto de interferir na polícia e o desejo de saber quem realmente desejou matá-lo no atentado em Juiz de Fora.

De volta ao papel do presidente na evolução dos problemas e suas responsabilidades, principalmente no momento presente seu dever primeiro é pacificar os ânimos, desviar-se da tentação de abrir novas frentes de luta e discórdia, e desestimular suspeitas que possam gerar intranquilidade para a vida nacional, como as que até ontem de manhã elegiam Paulo Guedes como a ”bola da vez”, numa escala de outras perigosas mexidas no primeiro escalão. É da sua competência esvaziar a pauta de apreensões. Bastam as inquietações e os velórios do coronavírus; essa dolorosa tragédia que nem sabemos quando será possível conter. Uma batalha de cada vez, presidente.




terça-feira, 21 de abril de 2020




Removendo obstáculos


(( Wilson Cid hoje no ”Jornal do Brasil” ))


Talvez seja mais prudente não limitar a defenestração do ministro Mandetta à divergência que vinham robustecendo – ele o presidente – sobre o imperativo do confinamento social ante o progresso incontrolável do coronavírus. O desenlace pode comportar outras particularidades, ainda que o pano de fundo seja a conduta desencontrada do chefe com o assessor para a política sanitária; quase tudo concorrendo para influir nas fases seguintes da política partidária e da sucessão presidencial.

O presidente, que cada vez mais permite aprofundar a convicção geral de que começou a posicionar as peças para o projeto do segundo mandato, deve sentir-se frente à necessidade de desentocar eventuais obstáculos a tal pretensão. É o caso da inconveniência de outros protagonismos, que podem acabar gerando aspirações à cadeira que hoje ele ocupa. A experiência demonstra que frente a óbices dessa natureza melhor que sejam abortados ainda no nascedouro. Sendo assim, convém a Bolsonaro esvaziar sombras dentro do próprio governo. Quanto aos oposicionistas, principalmente em relação ao PT, haverá tempo para lhes dedicar tempo e vagar. Por hora, o presidente nem cuida de atacá-los, porque o alvo, no momento, são potencialidades emergentes nas forças do próprio governo. É o que todo dia vem se confirmando. Tancredo, cujo 35º ano de morte hoje transcorre, gostava de lembrar que o inimigo, muitas vezes, está na cozinha…

Quando o ministro Moro, combatendo a corrupção institucionalizada, foi eleito pelas pesquisas como detentor da confiança da opinião pública, logo deu-se um jeito de esvaziá-lo, com artifícios que cuidaram de não lhe causar fraturas graves, porque já havia se tornado verdadeiramente uma referência pronto para se tornar ídolo. Na formulação da química de 2022 o clã bolsonarista deve ter recordado o grande Lavoisier, que foi à guilhotina porque já então a república não precisava de ídolos.

Chegou a vez do ministro Mandetta. Nas duas semanas anteriores granjeara reconhecimentos, também confirmados por pesquisa, quando a opinião pública julgou que vinha praticando um programa eficiente na tentativa de conter o progresso do vírus. Outro incômodo para o gabinete político do presidente, desejoso de caminhar sem ter de esbarrar em novas lideranças. O mote foi tentar atribuir antecipadamente ao ministro, meses antes da chegada das urnas, a culpa pelo empobrecimento e o desemprego da população ativa que ele mandou ficar recolhida em casa. Num fato singular e inédito, a reclusão doméstica recomendada por especialistas de todo o mundo, francamente acatada por Mandetta, foi ostensivamente desautorizada em aparições públicas ao gosto do presidente.

Nada de obscuro na escala de prioridades do plano da reeleição, no qual o alvo aponta para o DEM, onde está o ex-ministro. Sem maior surpresa, pois, tendo se tornado o partido que mais contribuiu com o governo, é exatamente dali que pode surgir a sombra complicadora; a chance de ser alternativa para as forças de direita, onde hoje Bolsonaro pontifica soberano. Também concorre para alimentar essa suspeita, quase uma convicção, o esforço do Palácio para manter reservas em relação aos dois principais democratas que comandam o Congresso: senador Davi Alcolumbre e deputado Rodrigo Maia.

Se possíveis concorrentes podem ser de copa e cozinha, é prudente cuidar logo de ilhá-los, porque em outubro, desde que o coronavírus não mande o contrário, as eleições municipais poderão prenunciar entre as correntes direitistas um cenário que não seja dos melhores para o presidente entrar na segunda fase de seus planos de continuar onde está.



terça-feira, 14 de abril de 2020




Pela Federação


((  Wilson Cid hoje no "Jornal do Brasil"  )) 



Já na pauta dos consensos que o indesejável vírus que assola o mundo e prospera no Brasil haverá de ensejar mudanças na organização político-social do país, valerá lembrar, mesmo para mera reflexão, uma das heranças preponderantes: o visível enfraquecimento de nossa Federação. Pois essa epidemia tem mostrado, além do rastro de mortes e incalculáveis prejuízos para a economia, que vão resultando comprometidas as relações do pacto federativo, já acumulando distorções e deficiências, antes mesmo que aqui desembarcasse o flagelo. Com o corona estão se abalando as relações entre os poderes central e estaduais, fato agravado pela adoção de medidas regionais, dificultando um programa comum de saúde para a defesa da sociedade ante o mal contagioso.

Evidência maior não se poderia reclamar, quando se assistiu, em recente espetáculo televisado, ao embate do presidente da República com alguns governadores. Ficou claro que o Brasil passou a dar trânsito a isoladas medidas para o enfrentamento da doença; como se fosse possível a cada qual das unidades tratar com exclusividade de sua própria enfermidade; como se o inimigo, mais feroz em São Paulo e Rio de Janeiro, mas presente em qualquer outro estado, devesse ser combatido apenas com panaceias próprias e isoladas; ou se cada um deles tivesse soluções exclusivas.

Ora, se no resto do mundo exausto e aflito o coronavírus passa incólume por qualquer fronteira, internacionalizando-se sem dificuldades, por que isso haveria de ser diferente entre os estados brasileiros? Impossível ignorar, por exemplo, que São Paulo, da mesma como surpreendentemente importou, pode facilmente exportar a epidemia para os vizinhos. As unidades, sob parâmetros federativos, separam-se, administrativamente autônomas, mas suas divisas estão longe de serem barreiras eficientes para conter a transmissão do mal. Idêntica limitação há que se observar em relação aos limites dos municípios. Na verdade, somos apenas um imenso campo aberto em todos os flancos, sem muros e sem trincheiras capazes de separar, na adversidade sanitária, os corpos que compõem a instituição federal. Mostram-no as estatísticas sinistras que o ministro Mandetta atualiza diariamente, antes de fechar o expediente de más notícias.

O Brasil tornou-se um ambulatório de vítimas comuns. Por isso mesmo não pode continuar sendo tratado como organismo estanque, onde que cada estado cuide de seus próprios enterros, diria Quinca Berro D’Água, no romance de Jorge Amado. Inaceitável que o presidente e os governadores não sintam isso.

Frente a tal constatação, mesmo sendo impossível prever a extensão final da tragédia, involuntariamente ela adverte para a premência de se aprofundar o espírito federativo; esse espírito de há muito reclamado em razão de outras questões essenciais, entre as quais a discrepância das riquezas de um país soberbamente desigual. E mostra-se agora, com funesta experiência, que também no cenário das grandes doenças o Brasil precisa ser visto e tratSem ado como uma Federação, não simples costura de peças isoladas; não apenas o conjunto de entidades confederadas, compartimentos de um mesmo mapa geográfico.

Para a preservação de tal propósito, a primeira entre as premissas é que o governo central e os estados primam pela harmonia, sem que tenham de capitular de sua autonomia. Mas o primeiro passo de boa vontade há de ser dos governadores, em particular os inamistosos e os que já não conseguem dissimular o desejo de se cacifarem para eleições futuras. Sem o fórceps do Supremo Tribunal, devem abandonar essa perigosa separação, adotando, no caso presente, a mesma responsabilidade federativa com que costumam ir a Brasília reclamar verbas. Sem isso a unidade nacional sempre estará ofendida, com ou sem vírus.



terça-feira, 7 de abril de 2020


Tempo de mudanças


(( Artigo de Wilson Cid publicado hoje no “Jornal do Brasil” ))


Os surtos epidêmicos têm um capricho em comum: primam por deixar que as coisas não sejam as mesmas depois que saem de cena. Tem sido assim. Eles mudam os hábitos, alteram conceitos, fazem com que as relações humanas adotem novos modelos, e, no caso presente, até as redes sociais viram alternativa para se trabalhar sem ter de sair de casa. O coronavírus, que está de passagem, pode não ser a tragédia universal como os piores presságios, mas também provocará mudanças em campos diversos das atividades humanas, dentre as quais a política, que, aproveitando a ocasião, bem que podia retomar sua verdadeira função, tão original quanto relegada - o bem comum praticado sob o clima de liberdades essenciais.

Os cristãos - vê-se nestas horas - são os primeiros a conviver com as novidades ocasionais, chamados a relegar as antigas tradições da Semana Santa. Viram-se obrigados a substituir as encenações do Calvário, não mais a mera lembrança de fé, mas conferindo dolorosa atualidade a essa Paixão e Morte, que está nos velórios intermináveis, nas ruas vazias e nos hospitais mantidos por profissionais exaustos, modernos cirineus em via-crucis, sob permanente risco; eles e todos, que estamos divididos entre o temor da morte possível e a soledade que ficou dos que já tombaram.

A forma adequada de fazer com que a tragédia não passe sem que dela se extraiam lições é não esquecer a fragilidade dos homens e de suas lideranças, além de certo ceticismo sobre valores relativos e os bens materiais das conquistas de que a inteligência humana se orgulha. Para indagar onde os mísseis de longo alcance?, capazes de destruir em qualquer parte do planeta, mas impotentes ante um inimigo assassino, também invisível pelas lentes poderosas, as mesmas que são eficientes para rastear a grandeza do cosmo. E o que dizer dos lideres das grandes potências?, como Trump, que gosta de apregoar a grandeza de seu país sobre os demais, discursando com o dedo em riste; mas agora suaviza o tom da voz, porque multidões tombam aos seus pés. Neste transe, então, fortes e fracos, famosos e incógnitos ombreados num jogo de sorte e azar. Aprenda-se com a lição.

No Brasil, políticos vão dividir com economistas a responsabilidade do que terão de fazer depois do pesadelo, já sabendo que ficarão gravemente prejudicados os orçamentos que elaboraram para o exercício, porque chegou o vírus e impôs prioridades que ninguém esperava, exigiu olhares mais largos para a saúde, com a improvisação de hospitais, de material de socorro, além do reconhecimento do humilhante estado de calamidade pública. Cancelando programas e revirando dotações. Como podiam prever, de momento para outro, que tudo isso haveria de se chocar com a queda na arrecadação de impostos já na ordem de R$ 62 bi?

Os políticos. Uma hora de muitas tenções não foi capaz de impedir precipitações de alguns parlamentares, apressados em sugerir a prorrogação de seus mandatos, sob o pretexto de que, chegada a hora da campanha eleitoral, não haverá clima suficiente para desempenhá-la. Pois entre todas as soluções aventadas a mais inadequada é exatamente essa violação do tempo conferido pelo eleitor aos seus representantes. Nem um dia a mais. Tudo menos isso, porque não se pode aceitar uma tragédia contra a democracia tendo como desculpa a tragédia na saúde pública. O repúdio à fórmula sinistra, com suficiente tempo para ser arquivada, remonta meio século atrás, quando o deputado cearense Esmerino Arruda, sem remorso, propôs automática prorrogação, alegando que “somos representantes legítimos do povo e, portanto, ela é legítima”…

Afora a indecência do oportunismo, pode ser inevitável que cheguemos a um estágio em que a campanha a que serão chamados partidos e candidatos realmente sofra limitações e comprometa a correta manifestação do voto, situação em que se tornaria indispensável retocar a Constituição, porque as datas estão ali definidas. Os prazos são curtos e, se não cumpridos, podem acabar se atropelando. O tempo é que dirá.

A ministra Rosa Weber, presidindo o TSE, assegura que o calendário eleitoral será cumprido. Mas é preciso saber se o do Tribunal não conflita com o calendário do coronavírus, porque este não tem qualquer compromisso com eleição no Brasil.