Pela
Federação
(( Wilson Cid hoje no "Jornal do Brasil" ))
Já na pauta dos consensos que
o indesejável vírus que assola o mundo e prospera no Brasil haverá
de ensejar mudanças na organização político-social do país,
valerá lembrar, mesmo para mera reflexão, uma das heranças
preponderantes: o visível enfraquecimento de nossa Federação. Pois
essa epidemia tem mostrado, além do rastro de mortes e incalculáveis
prejuízos para a economia, que vão resultando comprometidas as
relações do pacto federativo, já acumulando distorções e
deficiências, antes mesmo que aqui desembarcasse o flagelo. Com o
corona estão se abalando as relações entre os poderes central e
estaduais, fato agravado pela adoção de medidas regionais,
dificultando um programa comum de saúde para a defesa da sociedade
ante o mal contagioso.
Evidência maior não se
poderia reclamar, quando se assistiu, em recente espetáculo
televisado, ao embate do presidente da República com alguns
governadores. Ficou claro que o Brasil passou a dar trânsito a
isoladas medidas para o enfrentamento da doença; como se fosse
possível a cada qual das unidades tratar com exclusividade de sua
própria enfermidade; como se o inimigo, mais feroz em São Paulo e
Rio de Janeiro, mas presente em qualquer outro estado, devesse ser
combatido apenas com panaceias próprias e isoladas; ou se cada um
deles tivesse soluções exclusivas.
Ora, se no resto do mundo
exausto e aflito o coronavírus passa incólume por qualquer
fronteira, internacionalizando-se sem dificuldades, por que isso
haveria de ser diferente entre os estados brasileiros? Impossível
ignorar, por exemplo, que São Paulo, da mesma como
surpreendentemente importou, pode facilmente exportar a epidemia para
os vizinhos. As unidades, sob parâmetros federativos, separam-se,
administrativamente autônomas, mas suas divisas estão longe de
serem barreiras eficientes para conter a transmissão do mal.
Idêntica limitação há que se observar em relação aos limites
dos municípios. Na verdade, somos apenas um imenso campo aberto em
todos os flancos, sem muros e sem trincheiras capazes de separar, na
adversidade sanitária, os corpos que compõem a instituição
federal. Mostram-no as estatísticas sinistras que o ministro
Mandetta atualiza diariamente, antes de fechar o expediente de más
notícias.
O Brasil tornou-se um
ambulatório de vítimas comuns. Por isso mesmo não pode continuar
sendo tratado como organismo estanque, onde que cada estado cuide de
seus próprios enterros, diria Quinca Berro D’Água, no romance de
Jorge Amado. Inaceitável que o presidente e os governadores não
sintam isso.
Frente a tal constatação,
mesmo sendo impossível prever a extensão final da tragédia,
involuntariamente ela adverte para a premência de se aprofundar o
espírito federativo; esse espírito de há muito reclamado em razão
de outras questões essenciais, entre as quais a discrepância das
riquezas de um país soberbamente desigual. E mostra-se agora, com
funesta experiência, que também no cenário das grandes doenças o
Brasil precisa ser visto e tratSem ado como uma Federação, não
simples costura de peças isoladas; não apenas o conjunto de
entidades confederadas, compartimentos de um mesmo mapa geográfico.
Para a preservação de tal
propósito, a primeira entre as premissas é que o governo central e
os estados primam pela harmonia, sem que tenham de capitular de sua
autonomia. Mas o primeiro passo de boa vontade há de ser dos
governadores, em particular os inamistosos e os que já não
conseguem dissimular o desejo de se cacifarem para eleições
futuras. Sem o fórceps do Supremo Tribunal, devem abandonar essa
perigosa separação, adotando, no caso presente, a mesma
responsabilidade federativa com que costumam ir a Brasília reclamar
verbas. Sem isso a unidade nacional sempre estará ofendida, com ou
sem vírus.
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