terça-feira, 7 de abril de 2020


Tempo de mudanças


(( Artigo de Wilson Cid publicado hoje no “Jornal do Brasil” ))


Os surtos epidêmicos têm um capricho em comum: primam por deixar que as coisas não sejam as mesmas depois que saem de cena. Tem sido assim. Eles mudam os hábitos, alteram conceitos, fazem com que as relações humanas adotem novos modelos, e, no caso presente, até as redes sociais viram alternativa para se trabalhar sem ter de sair de casa. O coronavírus, que está de passagem, pode não ser a tragédia universal como os piores presságios, mas também provocará mudanças em campos diversos das atividades humanas, dentre as quais a política, que, aproveitando a ocasião, bem que podia retomar sua verdadeira função, tão original quanto relegada - o bem comum praticado sob o clima de liberdades essenciais.

Os cristãos - vê-se nestas horas - são os primeiros a conviver com as novidades ocasionais, chamados a relegar as antigas tradições da Semana Santa. Viram-se obrigados a substituir as encenações do Calvário, não mais a mera lembrança de fé, mas conferindo dolorosa atualidade a essa Paixão e Morte, que está nos velórios intermináveis, nas ruas vazias e nos hospitais mantidos por profissionais exaustos, modernos cirineus em via-crucis, sob permanente risco; eles e todos, que estamos divididos entre o temor da morte possível e a soledade que ficou dos que já tombaram.

A forma adequada de fazer com que a tragédia não passe sem que dela se extraiam lições é não esquecer a fragilidade dos homens e de suas lideranças, além de certo ceticismo sobre valores relativos e os bens materiais das conquistas de que a inteligência humana se orgulha. Para indagar onde os mísseis de longo alcance?, capazes de destruir em qualquer parte do planeta, mas impotentes ante um inimigo assassino, também invisível pelas lentes poderosas, as mesmas que são eficientes para rastear a grandeza do cosmo. E o que dizer dos lideres das grandes potências?, como Trump, que gosta de apregoar a grandeza de seu país sobre os demais, discursando com o dedo em riste; mas agora suaviza o tom da voz, porque multidões tombam aos seus pés. Neste transe, então, fortes e fracos, famosos e incógnitos ombreados num jogo de sorte e azar. Aprenda-se com a lição.

No Brasil, políticos vão dividir com economistas a responsabilidade do que terão de fazer depois do pesadelo, já sabendo que ficarão gravemente prejudicados os orçamentos que elaboraram para o exercício, porque chegou o vírus e impôs prioridades que ninguém esperava, exigiu olhares mais largos para a saúde, com a improvisação de hospitais, de material de socorro, além do reconhecimento do humilhante estado de calamidade pública. Cancelando programas e revirando dotações. Como podiam prever, de momento para outro, que tudo isso haveria de se chocar com a queda na arrecadação de impostos já na ordem de R$ 62 bi?

Os políticos. Uma hora de muitas tenções não foi capaz de impedir precipitações de alguns parlamentares, apressados em sugerir a prorrogação de seus mandatos, sob o pretexto de que, chegada a hora da campanha eleitoral, não haverá clima suficiente para desempenhá-la. Pois entre todas as soluções aventadas a mais inadequada é exatamente essa violação do tempo conferido pelo eleitor aos seus representantes. Nem um dia a mais. Tudo menos isso, porque não se pode aceitar uma tragédia contra a democracia tendo como desculpa a tragédia na saúde pública. O repúdio à fórmula sinistra, com suficiente tempo para ser arquivada, remonta meio século atrás, quando o deputado cearense Esmerino Arruda, sem remorso, propôs automática prorrogação, alegando que “somos representantes legítimos do povo e, portanto, ela é legítima”…

Afora a indecência do oportunismo, pode ser inevitável que cheguemos a um estágio em que a campanha a que serão chamados partidos e candidatos realmente sofra limitações e comprometa a correta manifestação do voto, situação em que se tornaria indispensável retocar a Constituição, porque as datas estão ali definidas. Os prazos são curtos e, se não cumpridos, podem acabar se atropelando. O tempo é que dirá.

A ministra Rosa Weber, presidindo o TSE, assegura que o calendário eleitoral será cumprido. Mas é preciso saber se o do Tribunal não conflita com o calendário do coronavírus, porque este não tem qualquer compromisso com eleição no Brasil.



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