Tempo de mudanças
((
Artigo de Wilson Cid publicado hoje no “Jornal do Brasil” ))
Os
surtos epidêmicos têm um capricho em comum: primam por deixar que
as coisas não sejam as mesmas depois que saem de cena. Tem sido
assim. Eles mudam os hábitos, alteram conceitos, fazem com que as
relações humanas adotem novos modelos, e, no caso presente, até as
redes sociais viram alternativa para se trabalhar sem ter de sair de
casa. O coronavírus, que está de passagem, pode não ser a tragédia
universal como os piores presságios, mas também provocará mudanças
em campos diversos das atividades humanas, dentre as quais a
política, que, aproveitando a ocasião, bem que podia retomar sua
verdadeira função, tão original quanto relegada - o bem comum
praticado sob o clima de liberdades essenciais.
Os
cristãos - vê-se nestas horas - são os primeiros a conviver com as
novidades ocasionais, chamados a relegar as antigas tradições da
Semana Santa. Viram-se obrigados a substituir as encenações do
Calvário, não mais a mera lembrança de fé, mas conferindo
dolorosa atualidade a essa Paixão e Morte, que está nos velórios
intermináveis, nas ruas vazias e nos hospitais mantidos por
profissionais exaustos, modernos cirineus em via-crucis, sob
permanente risco; eles e todos, que estamos divididos entre o temor
da morte possível e a soledade que ficou dos que já tombaram.
A
forma adequada de fazer com que a tragédia não passe sem que dela
se extraiam lições é não esquecer a fragilidade dos homens e de
suas lideranças, além de certo ceticismo sobre valores relativos e
os bens materiais das conquistas de que a inteligência humana se
orgulha. Para indagar onde os mísseis de longo alcance?, capazes de
destruir em qualquer parte do planeta, mas impotentes ante um inimigo
assassino, também invisível pelas lentes poderosas, as mesmas que
são eficientes para rastear a grandeza do cosmo. E o que dizer dos
lideres das grandes potências?, como Trump, que gosta de apregoar a
grandeza de seu país sobre os demais, discursando com o dedo em
riste; mas agora suaviza o tom da voz, porque multidões tombam aos
seus pés. Neste transe, então, fortes e fracos, famosos e
incógnitos ombreados num jogo de sorte e azar. Aprenda-se com a
lição.
No
Brasil, políticos vão dividir com economistas a responsabilidade do
que terão de fazer depois do pesadelo, já sabendo que ficarão
gravemente prejudicados os orçamentos que elaboraram para o
exercício, porque chegou o vírus e impôs prioridades que ninguém
esperava, exigiu olhares mais largos para a saúde, com a
improvisação de hospitais, de material de socorro, além do
reconhecimento do humilhante estado de calamidade pública.
Cancelando programas e revirando dotações. Como podiam prever, de
momento para outro, que tudo isso haveria de se chocar com a queda na
arrecadação de impostos já na ordem de R$ 62 bi?
Os
políticos. Uma hora de muitas tenções não foi capaz de impedir
precipitações de alguns parlamentares, apressados em sugerir a
prorrogação de seus mandatos, sob o pretexto de que, chegada a hora
da campanha eleitoral, não haverá clima suficiente para
desempenhá-la. Pois entre todas as soluções aventadas a mais
inadequada é exatamente essa violação do tempo conferido pelo
eleitor aos seus representantes. Nem um dia a mais. Tudo menos isso,
porque não se pode aceitar uma tragédia contra a democracia tendo
como desculpa a tragédia na saúde pública. O repúdio à fórmula
sinistra, com suficiente tempo para ser arquivada, remonta meio
século atrás, quando o deputado cearense Esmerino Arruda, sem
remorso, propôs automática prorrogação, alegando que “somos
representantes legítimos do povo e, portanto, ela é legítima”…
Afora
a indecência do oportunismo, pode ser inevitável que cheguemos a um
estágio em que a campanha a que serão chamados partidos e
candidatos realmente sofra limitações e comprometa a correta
manifestação do voto, situação em que se tornaria indispensável
retocar a Constituição, porque as datas estão ali definidas. Os
prazos são curtos e, se não cumpridos, podem acabar se atropelando.
O tempo é que dirá.
A
ministra Rosa Weber, presidindo o TSE, assegura que o calendário
eleitoral será cumprido. Mas é preciso saber se o do Tribunal não
conflita com o calendário do coronavírus, porque este não tem
qualquer compromisso com eleição no Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário