Que reunião!
((
Wilson Cid hoje no “Jornal do Brasil” ))
Difícil
resistir à tentação de acrescentar algo a tudo que já se disse
sobre a famosa reunião ministerial de 22 de abril; até porque há
certos temas, particularmente na política, que quanto mais se mexe
mais se excita. Caberia, antes de tudo, lembrar o papel do ministro
Celso de Mello no episódio, para sugerir: já que decidiu por
liberar a gravação do encontro convocado pelo presidente, e sabendo
que as emissoras de televisão cuidariam de divulgá-la
repetidamente, podia ter determinado que as imagens levadas aos
telespectadores fossem antecedidas da advertência sobre programas
inconvenientes: “Esta gravação é imprópria para menores de 18
anos, por conter cenas inadequadas para bons costumes e para o bem da
democracia”. Mais severo quanto a regras de compostura, o ministro
dispensaria os palavrões que o presidente cuidou de enfatizar com
gestos shakespearianos. Tão farto foi o xingatório, que, viva
fosse, Dercy Gonçalves teria enrubecido mais que qualquer abadessa
da Idade Média.
Diferentemente,
na pauta de seus cuidados o doutor Mello preferiu censurar
referências desairosas proferidas sobre China e Paraguai. Isto sim,
seria dispensável, porque tudo que é censurado desperta
curiosidade, e as embaixadas e seus governos sabem muito bem como
obter inconfidências; muito mais em se tratando de indiscrições
palacianas. A propósito, o governo precisa abandonar a macaquice de
imitar o colega Trump em relação à China, impropriamente tratada
meramente como compradora de commodities e vendedora de utilidades.
Trata-se de um povo com imenso prestígio internacional, compõe-se
de quase bilhão e meio de pessoas, e se orgulha de uma cultura
milenar.
O
presidente não percebe, mas o palavrão guarda certo pudor quanto ao
tempo e ao espaço. Concede-se, dependendo da hora e do lugar, nunca
num ambiente oficial, por mais que ali os participantes desfrutem de
intimidade. Uma reunião em que se presume a discussão dos
interesses do país não pode admitir algo parecido com bate-papo de
botequim em tardes domingueiras. (É de se imaginar o
constrangimento de um dos convidados, o presidente do Banco Central,
Roberto Campos Neto, cujo avô participou de reuniões ministeriais
passadas em que palavrões seriam inconcebíveis; no máximo, a troca
de bilhetinhos em latim ou grego, e apenas entre os mais eruditos...)
Interessante
notar os tempos que mudam. Quem diria que um capitão pudesse dizer o
que disse, entre dois generais, sem ser chamado a penas
disciplinares; muito mais quando, numa enxurrada de expressões
vulgares, ele vai buscar excremento vacum para se referir aos
governadores de São Paulo e Rio de Janeiro. O presidente repele
máscara contra epidemia, mas, para evitar agressões verbais, podia
adotar uma folha de parreira, tal como Eva escondia seus recatos no
paraíso.
Os
juristas não são coincidentes quando avaliam a gravação.
Divergem, e há os que sentem insuficiência jurídica para
enquadrar o presidente e provar sua interferência nos negócios da
Polícia Federal, mesmo com indícios de empenho em imiscuir-se. Para
os mais cuidadosos, num eventual indiciamento as provas teriam de
contar com maior substância.
Mas
talvez isso já nem comporte maiores atenções, pelo fato de –
muito pior - a reunião não ter se processado em nível condizente
com as relações entre os poderes e seus agentes. Principalmente
neste momento de extrema gravidade, quando campeia o vírus, soberano
e fecundo, que só precisou de poucas semanas para matar 20 mil
brasileiros.
Caberia
lembrar que se a tragédia sanitária que vive o Brasil não
conseguiu habilitar-se para discussões na tal reunião, ao
contrário, não faltaram delírios façanhudos, como a ameaça de
prisão coletiva de governadores e prefeitos que hesitam em cumprir
regras emanadas do governo central. Já o ministro da Educação,
Weintraub, a desejar a transformação do Supremo Tribunal em cadeia
de luxo, não escondeu certa repulsa a Brasília, que lhe cheira
desagradável ao olfato.
Restou
uma utilidade na divulgação da matéria. Porque, com base no que
ali se viu e se ouviu, tornou-se um pouco mais compreensível esse
fenômeno desconcertante no governo Bolsonaro, o entra-e-sai de
ministros, com validade rapidamente vencida. Esgotam-se facilmente
para consumo, como iogurtes em supermercado.
O
momento nacional, agravado pela peste virótica e por perturbações
nas relações políticas, chegou a tal perplexidade, sob o império
da insegurança, que mesmo a oposição não se sente animada a tirar
proveito e entrar em cena; confusa, prefere esperar condições
mínimas para refletir e propor. Demais, os fatos têm se agravado ou
se desmentem com tamanha celeridade, que nem previsões se permitem;
ou falar em eleições, que, mesmo tardiamente, certamente chegarão
machucadas pelas radicalizações, como facilmente se sentiu na
diversificada reunião de ministros que muito ou pouco falavam; altos
falantes ou baixos calados.
O
que fez o Brasil para merecer tanto, é coisa que Deus faria generosa
caridade se nos explicasse.