terça-feira, 5 de maio de 2020



Toda manhã um pesadelo

(( Wilson Cid hoje no “Jornal do Brasil” ))


Neste Brasil dos nossos dias, não bastasse estar competindo com outros países na sinistra estatística de saber quem perde mais vidas para a Covid-19, ainda temos de assistir a outra tragédia matinal. É quando se desperta do sono com que fomos dormir na noite anterior, e, agora bem acordados, entrar no pesadelo do dia. Basta captar o noticiário matinal para que o brasileiro seja condenado a novo susto. E não há opção entre dois incômodos fatais: o vírus teimoso, que não se manca de já haver produzido consideráveis estragos, ou é o pandemônio político, que vem se associando ao mal virótico para infernizar a vida nacional. É espantoso como nossa gente ainda consegue reunir cacos de esperança para perseverar no dia seguinte.


A nunca desarmonia entre os agentes dos poderes, contundentemente divergentes, acabou impondo a perplexidade a um país que conseguiu inverter a ordem natural da química do sono. É só abrir os olhos para, acordando, logo mergulha na sensação do pesadelo. O que vai acontecer hoje? E, seja lá o que for, aonde iremos amanhã? Que nova crise vai enriquecer o elenco de incertezas que desaba sobre nós? O pesadelo é o nosso indigesto café da manhã. Antes o letargo tivesse dividido espaço com o sono, porque bastaria sair da cama para que as aflições de dissipassem. No Brasil do agora ninguém entende, porque ninguém se entende. Freud e sua Interpretação dos Sonhos teriam sucumbido a um estresse irreversível se vivessem para colocar o Brasil num imenso divã.


Interessante também é notar que os entreveros que nascem do choque de interesses e na disputa de prestígio já não se dão apenas entre homens e partidos. São as próprias instituições que conflagram, numa altercação que nem faz concessões aos bons modos, primeira coisa que se poderia cobrar de pessoas que são parte dos poderes constituídos. A novidade mais recente, que se tornou algo extremamente delicado, foi quando o presidente da República informou, publicamente, que quase mergulhamos num impasse institucional na noite anterior, embora é sabido que problema desse vulto deixa de ser apenas um risco; para situação de tamanha gravidade basta que seja anunciado. Não há meio termo em crise institucional, assim como não há mulher mais ou menos grávida… Sem risco de cometer equívoco ou pessimismo em excesso, é preciso afirmar que somos contemporâneos de um quadro psicopatológico massificado, porque pelos poderes falam e decidem os que apreciam tumultuar as águas de um já bastante tumultuado oceano. Haveria outro diagnóstico?

Vive-se aos solavancos, que, como se observou, prosperam com pesadelos que levantam com a população. São apreensões sem preconceitos e sem preferências, democraticamente distribuídas entre riscos e pobres, venham eles de onde vierem, pensem o que pensarem. De tal forma que, quando se avalia o perfil dos principais atores do painel político, a virulência de suas palavras e de seus gestos, chega-se a temer que esteja a rondar o Planalto o projeto fatídico que aposta no caos, onde o objeto não é defender e preservar as instituições, mas condená-las à quarentena, sem que se saiba quando seria possível repatriá-las ao abrigo da Constituição; o risco de serem humilhadas as instituições; conviventes e reclusas com as multidões que se escondem do tormento virótico.

Estas anotações talvez possam se justificar por obra de uma coincidência, pois hoje se comemora o Dia da Língua Portuguesa; e, por conseguinte, o momento para se refletir sobre o sagrado poder da palavra. Pois ela – a palavra - tem sido a arma a que lamentavelmente se recorre para a montagem do conflitos entre direita e esquerda; essa antítese que virou velharia e que nossos políticos não conseguem superar. Faz-se urgente retomar a essência das palavras; como, aliás, já defendia Castello, criador desta coluna, em abril de 1976, rebelando-se contra políticos que confundem o significado de oposição e contestação.

O sagrado exercício da palavra, o momento adequado em que é proferida, não pode ser relegado por homens que têm o dever de conduzir os destinos nacionais; a começa por quem cabe dar o exemplo - o presidente da República. Mas não há de ser mera preocupação semântica recomendada por assessores, mas fruto de temperamento mais cuidadoso a ser criado. Sem o diálogo produtivo serão vãs as esperanças de o país romper desafios.



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