Toda
manhã um pesadelo
((
Wilson Cid hoje no “Jornal do Brasil” ))
Neste
Brasil dos nossos dias, não bastasse estar competindo com outros
países na sinistra estatística de saber quem perde mais vidas para
a Covid-19, ainda temos de assistir a outra tragédia matinal. É
quando se desperta do sono com que fomos dormir na noite anterior, e,
agora bem acordados, entrar no pesadelo do dia. Basta captar o
noticiário matinal para que o brasileiro seja condenado a novo
susto. E não há opção entre dois incômodos fatais: o vírus
teimoso, que não se manca de já haver produzido consideráveis
estragos, ou é o pandemônio político, que vem se associando ao mal
virótico para infernizar a vida nacional. É espantoso como nossa
gente ainda consegue reunir cacos de esperança para perseverar no
dia seguinte.
A
nunca desarmonia entre os agentes dos poderes, contundentemente
divergentes, acabou impondo a perplexidade a um país que conseguiu
inverter a ordem natural da química do sono. É só abrir os olhos
para, acordando, logo mergulha na sensação do pesadelo. O que vai
acontecer hoje? E, seja lá o que for, aonde iremos amanhã? Que nova
crise vai enriquecer o elenco de incertezas que desaba sobre nós? O
pesadelo é o nosso indigesto café da manhã. Antes o letargo
tivesse dividido espaço com o sono, porque bastaria sair da cama
para que as aflições de dissipassem. No Brasil do agora ninguém
entende, porque ninguém se entende. Freud e sua Interpretação dos
Sonhos teriam sucumbido a um estresse irreversível se vivessem para
colocar o Brasil num imenso divã.
Interessante
também é notar que os entreveros que nascem do choque de interesses
e na disputa de prestígio já não se dão apenas entre homens e
partidos. São as próprias instituições que conflagram, numa
altercação que nem faz concessões aos bons modos, primeira coisa
que se poderia cobrar de pessoas que são parte dos poderes
constituídos. A novidade mais recente, que se tornou algo
extremamente delicado, foi quando o presidente da República
informou, publicamente, que quase mergulhamos num impasse
institucional na noite anterior, embora é sabido que problema desse
vulto deixa de ser apenas um risco; para situação de tamanha
gravidade basta que seja anunciado. Não há meio termo em crise
institucional, assim como não há mulher mais ou menos grávida…
Sem risco de cometer equívoco ou pessimismo em excesso, é preciso
afirmar que somos contemporâneos de um quadro psicopatológico
massificado, porque pelos poderes falam e decidem os que apreciam
tumultuar as águas de um já bastante tumultuado oceano. Haveria
outro diagnóstico?
Vive-se
aos solavancos, que, como se observou, prosperam com pesadelos que
levantam com a população. São apreensões sem preconceitos e sem
preferências, democraticamente distribuídas entre riscos e pobres,
venham eles de onde vierem, pensem o que pensarem. De tal forma que,
quando se avalia o perfil dos principais atores do painel político,
a virulência de suas palavras e de seus gestos, chega-se a temer que
esteja a rondar o Planalto o projeto fatídico que aposta no caos,
onde o objeto não é defender e preservar as instituições, mas
condená-las à quarentena, sem que se saiba quando seria possível
repatriá-las ao abrigo da Constituição; o risco de serem
humilhadas as instituições; conviventes e reclusas com as multidões
que se escondem do tormento virótico.
Estas
anotações talvez possam se justificar por obra de uma coincidência,
pois hoje se comemora o Dia da Língua Portuguesa; e, por
conseguinte, o momento para se refletir sobre o sagrado poder da
palavra. Pois ela – a palavra - tem sido a arma a que
lamentavelmente se recorre para a montagem do conflitos entre direita
e esquerda; essa antítese que virou velharia e que nossos políticos
não conseguem superar. Faz-se urgente retomar a essência das
palavras; como, aliás, já defendia Castello, criador desta coluna,
em abril de 1976, rebelando-se contra políticos que confundem o
significado de oposição e contestação.
O
sagrado exercício da palavra, o momento adequado em que é
proferida, não pode ser relegado por homens que têm o dever de
conduzir os destinos nacionais; a começa por quem cabe dar o exemplo
- o presidente da República. Mas não há de ser mera preocupação
semântica recomendada por assessores, mas fruto de temperamento mais
cuidadoso a ser criado. Sem o diálogo produtivo serão vãs as
esperanças de o país romper desafios.
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