A breve distensão
((Wilson Cid, hoje , no "Jornal do Brasil" ))
Há os que ainda se confessam amargurados, porque queriam ver Bolsonaro, como capitão destemido, sair montado a cavalo para invadir o Supremo Tribunal; não menos apreciadores de façanhas, os que pensavam amanhecer o dia 8 com o Brasil mergulhado em estado de sítio, embora muitos não saibam exatamente o que isso significa. Na verdade, os seguidores alimentavam esperança de ver mesas viradas, certos de que ele tinha como aplicar remédios amargos, depois de levar multidões às ruas para ouvi-lo.
Pode ser que cada um, em medidas e proporções diversas, tenha lá suas razões de decepção, mas bem melhor, nos momentos graves, é dispensar incendiários e considerar que o país ardia febril por todos os poros. Escapava de intubação na UTI, mas muito doente. Recuo ou breve arrefecimento dos ânimos, seja como se queira definir, fato é que houve um toque de distensão.
O que não dispensa cuidados. Pelo que é dado deduzir, os impasses da crise não se recolheram totalmente. Ela apenas retocou o enredo, alterou alguns cenários e cores, porém o horizonte ainda se revela nublado. A vida nacional acomodou-se um pouco. O caldo da festa é pouco mais que isso.
E, sob o clima das expectativas então criadas, nota-se o comportamento adotado por figuras mais ponderadas da oposição, por saberem que seus projetos também passaram a conviver com desafios decorrentes de nova realidade criada no dia 8; realidade imperceptível aos falastrões de plantão, mas não aos mais sábios. Para estes, o problema imediato é substituir logo o discurso com que vinham identificando no presidente o golpismo iminente; aliás, uma suspeita procedente, porque Bolsonaro insinuava isso com frequência. A acusação ficou em suspenso. Não houve golpe.
Outro problema, não só para os opositores, mas para todos, é saber qual a capacidade de Bolsonaro suportar novas pressões. Tem um temperamento - e disso colecionam-se provas – que pode levá-lo a jogar no lixo aquelas boas intenções do dia seguinte à festa da Independência, reunidas em carta amistosa e de espírito desarmado. Para completar, ao telefone, tudo bem com o desafeto ministro Alexandre. Nada pessoal; por enquanto, como tem murmurado o pessimismo de certos gabinetes de Brasília. Seja como for, o pronunciamento à nação passou para o STF a bola da vez, no jogo da pacificação. E agora?
Ainda com tudo para pautar precauções de quem corre em raias contrárias ao presidente, é saber ou, pelo menos, calcular, até onde vão se estender as consequências da intervenção de Michel Temer, cuja convocação à cena da crise já estava prevista, neste espaço, semanas atrás; sem bola de cristal, porque só podia ser alguém como ele, um pacificador que tem capacidade de atirar para todos os lados sem ferir ninguém. E mais, para perturbar o mundo político, cabe descobrir se o súbito desembarque do ex-presidente no cenário pode servir para reaquecer ambições do MDB, que jaz sem musculatura, pedido pelo caminho.
Para se saber onde a crise vai ancorar, é preciso a poeira baixar, porque nas relações entre os homens que governam tudo pode acontecer, principalmente o impossível.
Código apressado
Não há como imaginar o contorcionismo do Congresso Nacional para aprovar, em três semanas, todo o essencial do texto-base que regula a lei eleitoral, em tempo de poderem viger, pelo menos, algumas das mudanças propostas. Avizinha-se vertiginosa e atropelada corrida contra o relógio, para que certos itens tenham tramitado, gerando sua validade já para as eleições de 2022. E, mais uma vez, questões importantes podem estar condenadas ao afogadilho, algumas meramente experimentais, carregadas de imperfeições, nascidas prontas para futuras alterações.
Contudo, alguns pontos, testados pelo tempo, podem ganhar aprovação dos plenários, com vistas ao próximo processo eleitoral; porque são sugestões que não implicam em maiores divergências quanto ao conteúdo. Figura, no caso, impedir que números de pesquisas sobre tendências sejam divulgados na véspera das urnas. É sabido que, em cima da hora, pode-se maquiar um quadro com o blush do agrado do freguês. Candidaturas de improvável êxito surgem, de momento para outro, influenciando votantes carregados de dúvidas, insuficientemente informados, ou, ainda, aparecem para conquistar pobres de espírito e de civismo, que não gostam de votar em quem acham que vai perder. Todos os brasileiros já viram isso.
Essa proposta de limitação na divulgação faz sentido.
Porém, em relação a instituições pesquisadoras, é delirante exigir, como se incluiu no texto-base, que apresentem percentuais de acerto nos trabalhos que realizaram nos cinco anos anterior. Eis um convite à burla e ao exercício de números arranjados.
Outra entre as peças aprovadas na semana passada, pronta e digna de imediato esquecimento, é o perdão aos partidos que descumprem cotas que contemplam mulheres e negros nas listas de candidatos. Não há por que livrar os que tiveram tempo suficiente para acatar essa e outras exigências relevantes da legislação. Nem teria sido por falta de candidatos em condições de preencher as vagas. Demais, num país onde sobram partidos, acabar com alguns deles, por descumprimento da lei e do código que os regem, não faria mal maior.
Privilégio com limites
Bem contados no calendário, são quase mil dias mergulhado em banho-maria, na Câmara, o projeto que estabelece regras menos generosas na aplicação do foro privilegiado. Mostram-se diferentes os deputados em relação aos senadores, porque estes votaram e aprovaram, por unanimidade, pela revisão do velho direito conferido a agentes públicos, largamente aplicado no Brasil. Aqui, imagina-se, cerca de 52 mil são capazes de se beneficiar de foro especial por prerrogativa de função.
A questão básica adotada pelo Senado, inspirado em parecer de Álvaro Dias, é que, não raro, os que delinquem, quando ocupam relevantes posições, lançam mão de artifícios para se agasalharem no benefício. Não menos raro, ainda, é quando se consegue confundir prerrogativa com privilégio. Para confirmar, os desvios são praticados, aos borbotões, pelos detentores de atividades executivas mais sensíveis a expedientes delituosos. Eles sabem das artimanhas que podem enrolar a Justiça. Para tanto, bastaria citar que, nas três últimas décadas, apenas 16 agentes políticos e servidores foram condenados; porém, fartas as absolvições, graças aos malabarismos permitidos pelo foro.
Está clara a instrução emanada do Senado Federal. O foro haverá de se prestar à defesa da intangibilidade do mandato ou para proteger o livre exercício de função. Nada mais que isso. Não como se deu, há anos, com deputado alcoolizado, preso durante tumulto em boate de segunda classe. Legítimo desaforado.
Definir melhor essa questão é anseio da sociedade, horrorizada com frequentes abusos, antigos e recentes.
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