terça-feira, 31 de maio de 2022

 

Federações empobrecidas



((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" )




Ao se esgotar, nesta terça-feira, o prazo para que se organizem e se registrem as federações partidárias, afora pouco prováveis iniciativas de última hora, fica demostrado que não foram elas o caminho adotado pela grande maioria das legendas: das 33 que temos registradas no Tribunal Superior Eleitoral, apenas sete se aventuram; e os menores participantes talvez ambicionando, num primeiro momento, passar por cima das exigências do desempenho mínimo. É a conclusão que se toma da análise de vários observadores. Então, entram em cena apenas três organizações federalizadas: PT, PCdoB e Verde; PSDB e Cidadania e, por fim, Psol e Rede.

Quis a maioria caminhar com as próprias sandálias, talvez por avaliar que a federação compromete a identidade de cada qual, ou, ainda, por entender perigoso o dispositivo que obriga tais acordos a vigerem, no mínimo, por quatro anos, o que pode inibir projetos para a eleição municipal que virá dentro de 24 meses. É sabido que os pleitos municipais diferem em questões pontuais dos cenários nacionais, como o que temos hoje. Têm a defini-los poderosos interesses localizados. Além de tudo, faz parte de nossas experiências que acordos e leis eleitorais primam pelas circunstâncias, pelo momentâneo. Com essa tradição, como honrar compromissos com validade de quatro anos? O próprio legislador não cuidou de deixar suficientemente claros e eficazes os instrumentos que permitam cobrar o cumprimento do prazo de validade dessa novidade. Portanto, não há quem seja capaz de apostar na sobrevivência das federações.

Diz-se, contudo, que elas têm o condão de estimular fusões em futuro próximo. O que seria bom, porque a fartura de partidos, longe de abrigar com nitidez as correntes do pensamento político, fragmentam a representação parlamentar, que, enfraquecida, torna-se presa fácil para as pressões em troca de favores. Se federados, encontrando razões para se juntarem em definitivo, podem prestar um bom serviço.

Polarização estimulada

Quatro meses na discussão de nomes para a Presidência da República; outros tantos meses restantes para a ida às urnas, assistiu-se, e ainda se assiste, a dois fenômenos capazes de se explicarem entre si, simultaneamente. O primeiro é a consolidação da polarização entre dois candidatos; o segundo fenômeno é a quase rendida capacidade de se viabilizar uma terceira via, que seja capaz de chegar atrelada a alguma chance de disputar na primeira linha.

A polarização socorre, em primeiro lugar, ao interesse dos dois que lideram as tendências dos votos, porque com ela se sentem bem no muito em que contrastam; e, de tal forma, que um abriga e alimenta as correntes descontentes do lado oposto. Na verdade, Lula e Bolsonaro necessitam um do outro, reciprocamente. Detalhe importante é que, em meio a essa reciprocidade entre inimigos, eles vêm contando com a simpatia e o estímulo latente de lideranças políticas e financeiras, que já acumularam experiências que lhes garantem convivência harmoniosa com ambos. Podem conviver facilmente com quem desse páreo se sair melhor. Os banqueiros, por exemplo, sinalizando que podem se dar bem com qualquer dos dois da dianteira, são suficientemente pragmáticos para dispensar a novidade de outra candidatura. Pelo certo pelo duvidoso, vota-se na repetição.

Desse cenário extrai-se a dificuldade para se construir a alternativa eleitoral; um nome com expressão suficiente para fustigar e tentar romper as trincheiras de Lula e Bolsonaro. Na última semana, ao despontar de injunções, a senadora Simone Tebet não teve de esperar muito tempo para perceber que nos mesmos partidos que a apoiam há correntes empenhadas em esvaziar seu projeto, pretextando argumentos que não escondem o namoro com acenos lulistas e bolsonaristas.

Na política sem desistir

Recuando sua pré-candidatura à Presidência da República, que, na verdade, foi uma defenestração patrocinada pelo PSDB, o ex-governador paulista João Dória diz que a decisão não significa retirar-se da política. O mesmo deverão dizer, em futuro próximo, todos os que não conseguirem viabilizar suas candidaturas. Se por nenhuma outra razão, pelo menos porque a experiência adquirida na primeira fase do embate não deixa de ser um patrimônio que se agrega ao currículo político dos atores. Demais, observa-se uma coisa interessante: do rescaldo dos projetos eleitorais mal sucedidos resta, sempre, a cinza das esperanças. Da próxima vez pode ser melhor, porque a política tem capacidade de gerar surpresas que até a Deus surpreendem.

Luiz Inácio persistiu quatro vezes até chegar à Presidência, e acaba que aprendeu o caminho das pedras para voltar. Ciro Gomes é outro exemplo de persistência, embora nenhum deles possa se comparar a José Maria Eymael, veterano postulante, que vai entrar em cena pela sexta vez na corrida presidencial.

Depois de passar pelas experiências de fel e mel nessa arena, não se desiste facilmente. O poeta mexicano Amado Nervo dizia, há quase 100 anos, que é mais fácil encontrar uma mulher resignada a envelhecer do que um político a sair de cena, confirmando não ser aconselhável esperar que os navegantes da política desistam facilmente das longas viagens que alimentam sonhos. Porque não é a fome, nem mesmo o desejo, mas a sede de poder o demônio que toma conta do homem, ensinou Nietzsche, que via na política a melhor fonte de onde brota o poder. E, na aventura para conquistá-lo, segundo a imagem de Ulysses Guimarães, o homem público torna-se, a um só tempo, caçador de nuvens caçado por tempestades. O advogado mineiro Dario de Almeida Magalhães foi além: “o poder vicia e cria dependência escravizadora, como os tóxicos”.

Por tudo isso, entende-se que o destino de João Dória não o deixa peregrinar por outros caminhos, que não sejam os caminhos dos embates políticos.

Fumo no brasão

Entidades e autoridades sanitárias, que no passado lutaram contra o tabagismo, incomodavam-se com a presença de um ramo florido de fumo no brasão oficial da República, ao lado do ramo inofensivo de café. Não fica bem para a marca oficial da República, obrigatória em todas as repartições públicas, expor planta tão nociva à saúde. É provável que poucos deem conta disso hoje, Dia Mundial sem Tabaco, data sempre ignorada no Brasil.

Mas vale registrar que a remoção do fumo no brasão foi proposta, em maio de 2005, pelo senador Valmir Amaral (PMDB-DF), que pretendia substituí-lo pela cana-de-açúcar. Foi demovido dessa ideia pelo colega de partido, o goiano Maguito Vilela, alegando que da cana saem a cachaça e males muito mais maléficos que os cigarros... O assunto morreu aí, e o brasão continuou se orgulhando de coisa que faz mal.

terça-feira, 24 de maio de 2022

 

Viajantes separados


((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))


Nada mais expressivo que os atuais embates entre as pré-candidaturas à Presidência da República para expor feridas do divisionismo e do clima de intolerância que domina a vida dos partidos brasileiros. De tal forma, a virtude essencial da unidade tornou-se tão rara, que ficou exposta, como primeira evidência, a incapacidade de algumas das legendas de transmitir ao eleitorado pospostas e nomes próprios para tentar suceder a Bolsonaro; este, ao contrário, tem poucas dificuldades na acomodação de correntes internas dos grupos que o apoiam.

Estava prometido para esta terça-feira uma consulta do PSDB, do MDB e do Cidadania às respectivas bases para saber o que elas pensam do acerto de seus dirigentes, na semana passada, do qual resultou a indicação da senadora Simone Tebet para concorrer à Presidência. Supondo-se que a decisão superior fosse acatada, isso em pouco ou quase nada haveria de contribuir para dar melhores cores à fragilidade dos partidos diretamente envolvidos.

Eles caminham para a eleição deixando visíveis os sinais das dificuldades internas. O caso mais acintoso vem do PSDB, que passou a recusar o candidato apontado em pesquisa financiada com dinheiro público do fundo partidário. Desconheceu a indicação do ex-governador paulista João Dória, que acabou desistindo; saiu do páreo, mesmo que animado a arrastar a crise do tucanato para o campo da judicialização. Teria sido algo inédito num país que supunha já ter visto de tudo em singularidades políticas: um partido define o candidato, prepara-se para lançá-lo formalmente em convenção; e, depois, decide rotulá-lo como inviável. Previsão de um fracasso olímpico para os tucanos, porque a Justiça poderia até definir quem é o candidato, mas não teria como garantir a Dória o voto dos companheiros que pretendiam e conseguiram apeá-lo da candidatura.

De duas situações praticamente irreversíveis o tucanato deve estar ciente, desde a madrugada de ontem, com Dória ausente, adotando aliança com o MDB. Primeiro é que parte para uma importante eleição sangrando com o organismo partidário parcialmente comprometido. Segundo é que, afogado nessas divergências domésticas, o PSDB pode estar caminhando para o futuro com um adeus melancólico.

(Mesmo consagrada pela bênção de três legendas expressivas, talvez fosse oportuno a senadora Simone Tebet desconfiar das reais intenções do apoio que recebe, mas adotando a prudência dos santos, que desconfiam, quando a esmola é grande. O MDB tem antecedentes: cristianizou os candidatos presidente Ulisses Guimarães e Orestes Quércia, que vivenciaram a infidelidade partidária de seus correligionários. Mas teve dois presidentes por acaso, os vices José Sarney e Michel Temer. Simone Tebet tem a seu favor, assegurado apenas o recurso financeiro de campanha através do fundo partidário, obrigado a destinar, no mínimo, 30% para candidaturas femininas. Não é de todo impossível que esteja sendo usada para rifar Dória em definitivo, objetivo já alcançado. E ser rifada depois. Porque muitos do MDB, que agora a apoiam, gostariam de estar livres para ficar com Bolsonaro no Sul e com Lula no Nordeste. Já o PSDB quer estar com Lula no Sudeste, Bolsonaro no Centro-Oeste e com Ciro Gomes no Nordeste. A senadora caminha em campos onde as minas, além das Gerais de Aécio Neves, podem estar enterradas).

Ainda sobrevoando fenômenos que geram as dificuldades dos partidos na convivência, é indispensável lembrar que os interesses regionalizados nunca foram tão expressivos e preponderantes como agora. Principalmente os tucanos e emedebistas sonham ratear o território nacional para os interesses ditados por bússolas experientes. Nisso não deixa de influir o Centrão, que não é partido, mas eficiente costureiro de retalhos. Essas bússolas atuam sobre os gabinetes do governo, sabem o lugar e a hora em que nasce o sol das verbas e dos favores. Não estamos tentando trazer novidades sobre o que todos sabem.

Nem socialistas e comunistas históricos, que vêm de uma tradição de unidade a qualquer custo, têm conseguido escapar dessa onda de desunião; e, se ficam com a candidatura de Lula, é por não dispõem de safra de autênticos para carregar suas convicções. Mas também quanto a isso há divergências. E o PT, mesmo sob os auspícios de favoritismo das pesquisas, continua enfrentando correntes divergentes, embora com a previsão de superá-las no momento do voto.

Homem e mulher

Um sociólogo, cujo nome não foi possível identificar, dado a raras legendas do debate em que participava na TV, propunha, entre outras questões que considera pertinentes com a sucessão presidencial, sejam os candidatos intimados a mostrar o que pensam e como pretenderiam lidar com a homoafetividade no campo da organização familiar. Talvez por considerar um tema que obteve visíveis progressos nos últimos anos, embora sem vencer questionamentos de natureza moral, ética e religiosa.

A intenção de quem propõe não parece suficiente para inflamar a campanha, muito menos para levar a Justiça a pedir ao eleitor, plebiscitariamente, que adote posição sobre a matéria, no momento de optar por um dos candidatos à Presidência, que no tablado de hoje, sem João Dória, são 12.

No fundo, o que se pretende do futuro presidente é que estimule a pretensão de reformar a definição da organização familiar, que não seja apenas obra da associação entre o homem e a mulher. Consolidar tal reforma na consciência coletiva é um passo no ideário da homoafetividade. Mas, de imediato, seria arriscado contar com o apoio ostensivo dos candidatos, principalmente dos dois que lideram pesquisas. Porque Bolsonaro e Lula carregam a experiência de três casamentos cada um… Acreditaram nas uniões como sugere a natureza.

terça-feira, 17 de maio de 2022


O turno ideal


((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil ")




O turno ideal 


Leio ilações de alguns especialistas, afirmando que a corrida presidencial dá sintomas de poder estar decidida já no primeiro turno, porque os principais candidatos teriam potencialidade política e base popular para tanto. Também estariam a desejar isso eleitores mais acomodados, que preferem não ter que repetir o voto, mas ver tudo resolvido em votação única.

Bom que a previsão não se confirme; e há razões para tanto. Primeiro, cabe observar que, estando a disputa tensamente radicalizada, e se assim permanecer, é grande a possibilidade de a diferença de votos ser pequena; talvez insignificante. O que seria indesejável, porque o presidente eleito, qualquer que seja, teria nas mãos um governo frágil, susceptível de contestações; de maioria obscurecida, embora com a legitimidade aritmética garantida nas urnas. É fácil entender que os efeitos eleitorais cessam, mas as consequências políticas podem ter vida longa. Diferenças estreitas na votação são receita pronta para gerar dificuldades em pouco tempo. A se conhecer o presidente logo no primeiro turno, melhor então que vença com margem de votos suficiente para lhe conferir tranquilidade na governabilidade.

Outro aspecto, que convém não desprezar, é que no segundo turno, partidos e candidatos alijados no primeiro ganham novo espaço, pela via das composições e alianças; e com isso podem tomar parte na decisão final do processo eleitoral. Não cabe perder de vista que, se vivemos um presidencialismo de coalizão, ideal é que os acertos comecem a ser traçados ainda sob o calor do processo eleitoral.

A luta pela Presidência, quando se define em apenas um round, discrimina e exclui milhões dos brasileiros que deram voto minoritário no primeiro certame, e saíram frustrados. Não é justo que sejam banidos.

O baixo nível

Vinte semanas são muito pouco para que continuemos afirmando que estão distantes as eleições. Sobretudo porque, num país com tamanha dimensão, é preciso andar ligeiro para que a maioria da população votante conheça o que os candidatos dizem, sem que para isso sejam suficientes os recursos eletrônicos e suprir totalmente a ausência física de quem tem mensagem e proposta a apesentar; até porque este é um país, além de imenso, polvilhado de muitos rincões, distantes e isolados, mal servidos, não apenas de rádio e TV, mas também de aviões, estradas e rotas pluviais.

É um problema. Mas os últimos dias têm permitido lembrar que avança uma outra preocupação, desta vez mais aguda se se fizer uma comparação com eleições imediatamente anteriores. Trata-se do baixo nível das discussões mantidas por alguns dos candidatos à Presidência da República; discussões quanto mais ocas mais empenhadas em se esvaziar. Na medida em que a campanha se afunila no calendário, ocorre o indesejável: projetos para o futuro do país não conseguem brotar, na proporção inversa ao progresso das agressões verbais.

A cota maior de culpa nessa paisagem dolorosa cabe, principalmente, às militâncias radicalizadas dos dois candidatos que polarizam nas pesquisas. Armam-se, agridem, ofendem, embora incapazes de reclamar conteúdo nas plataformas, que já deviam estar - estas sim – empolgando as discussões.

Cenas filmadas das viagens de candidatos, que a internet cuida de mostrar com abundância, revelam até militantes com armas de fogo para defender ou agredir. É a nossa volta ao tempo das flechas e tacapes, dos sargentões e capatazes, numa esteira de selvageria, que os próprios concorrentes deviam estar empenhados em condenar. Contudo, parecem apenas dispostos a tolerar ou estimular.

Com isso, sob clima tão inseguro, o contato dos candidatos com os eleitores tem de se cercar de cuidados que chegam a depor contra os princípios de civilidade. E daí vão surgindo coisas singulares. Na semana passada, em Juiz de Fora, para poderem estar com o candidato Lula em ambiente fechado, os simpatizantes tiveram de se identificar com documento, foto e CPF… Tudo por causa dos temores da agressividade incontida que vai se alastrando na pré-campanha.

Chuchu e os apelidos

Políticos geralmente reagem aos apelidos com que são contemplados pelos adversários. Raros os que os toleram; mais raros ainda os que se dispõem a adotá-los. Quem não gosta de Geraldo Alckmin vê nele a substância sem graça do chuchu, cucurbitáceo sem gosto, aguado; mas ele passou por cima, adotou o desagrado e o elegeu para dizer que, com o companheiro molusco, acaba dando um bom cardápio eleitoral...

Cariocas mais antigos estão lembrados do corvo, ave de maus presságios, que fazia lembrar a fisionomia e o temperamento udenista de Carlos Lacerda. Os inimigos aproveitavam-se disso. Mas também ele não passou recibo, apropriou-se do pássaro negro e o acolheu nos revides.

Nos tempos de Vargas, o intolerante DIP da propaganda oficial quis perseguir quem chamava o ditador de Velho, mas ele achou que “bota no retrato do Velho no lugar” era mais simpático que o hipocorístico Gegê familiar.

No balanço geral, contudo, os presidentes reagiam com mau humor aos apelidos. Prudente de Morais repudiava o seu “Biriba”, e Afonso Pena não gostava de ser tratado nos jornais como “Tico-Tico”. Campos Sales brigava na Praça XV, quando chamado de Campos “Selos”, por causa da facilidade com que aumentava os impostos, naquela época recolhidos em estampilhas. A Nilo Peçanha não podia mesmo ser agradável o “Mestiço”, evidente racismo, e Marechal Hermes aborrecia-se quando sabia ser tratado como “Seu Dudu”. Flagrante injustiça sofreu o mineiro Artur Bernardes, apelidado de “Seu Mé”, coisa que faz lembrar os pinguços, sabendo-se que ele nada bebia..

Nos idos de 64, o pior dos ditadores, Médici, era chamado de “Sô Milito”. Mas poucos ousavam tanto…

terça-feira, 10 de maio de 2022



Ideia fixa



((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil"))



Fatos, gestos e palavras vão se alinhando e conspirando para denunciar que o sonho da formação de grande bancada de deputados federais é tão ou mais importante como a eleição presidencial. Quase uma ideia fixa. O sempre bem sucedido êxito das pressões legislativas sobre o Executivo, conjuminado com a possibilidade de o Congresso empoderar-se mais, em eventual introdução do semipresidencialismo, pode dar aos deputados força suficiente para ditar as ordens, já na próxima década. Tanto que vão se desdobrando esforços para facilitar a caminhada dos candidatos na eleição proporcional; e os grandes partidos não conseguem esconder essa realidade.

As coisas avançam do campo das aparências, quando se vê parlamentar de partidos diversos empenhado em adiar adesões na majoritária, para definir logo sua participação nos fundos com que pretende financiar-se, deixando pré-candidatos à Presidência navegando na própria sorte. Outra conclusão não é diferente, quando se ouve Lula, mesmo com as pesquisas a seu favor, dizendo coisas descuidadas, como quem não faz questão de trocar a própria sorte pelo projeto de construção de uma gorda bancada de oposição no Congresso. Por isso e outros exemplos facilmente alinháveis, o que se sente é que se desviou para a próxima legislatura uma parcela considerável das expectativas políticas.

Ainda na linha desta observação, não estaria divagando quem achar que, mais uma vez, forças ocultas ou aparentes estão mexendo no tabuleiro político. Tudo para o fortalecimento do Congresso Nacional em detrimento da Presidência, através de um parlamentarismo arranjado e maquiado. Quem quer que se eleja para subir a rampa do Planalto tem de estar atento para possíveis ciladas. Coisa que devia merecer mais atenção dos candidatos.

Semipresidencialismo

Para não fugir do raciocínio anterior, a aventada adoção do semipresidencialismo a partir de 2030, hoje objeto de estudos por juristas e parlamentares, não tem como se tornar projeto de um texto final em junho, como se previra. O tema demanda maiores discussões, além de continuar, como em vezes anteriores, muito distante da participação da sociedade. Reclama maiores reflexões. Mas, da mesma forma como se estima dilatar os prazos, é preciso considerar que o tempo não pode ser esticado demais, porque o atual modelo de coalizão só sobreviveria para o presidente de 2026 e a quem a ele suceder. Alterar as regras do sistema traz muitas mudanças, que não se adotam do dia para a noite.

O país precisa estar consciente sobre o que pode representar esse passo, que pretende, substancialmente, alterar as relações entre os poderes Executivo e Legislativo, a este incorporando certos poderes daquele. Seria por aí?

A rota ideal para a consolidação da democracia brasileira, não há negar, juntamente com o aperfeiçoamento das práticas políticas, sinaliza o parlamentarismo puro. Um modelo que, entre outras razões, também esbarra na tradição, no hábito do eleitor de votar não apenas no presidente mas em quem, por sua decisão, torna-se chefe, como demonstrado ficou no plebiscito de 1993, que devolveu a João Goulart os direitos de que havia sido destituído na emenda de um parlamentarismo emergencial. Assim, o Gabinete, solução ideal, permanece longe dos nossos caminhos.

O estudado semipresidencialismo, incapaz de evitar ou conter as crises institucionais, haverá de preocupar os juristas, que nele estão debruçados, sobre certos pontos que recomendam cuidados, caso venha mesmo a ser adotado. Seria o caso, por exemplo, de estabelecer parâmetros para que o parlamento não exceda nos seus poderes de pressão política. Se hoje ele faz do presidente refém das bancadas majoritárias; se manda e desmanda na Lei de Meios, o que faria, então, se tivesse força para escravizá-lo?

Outro detalhe, que não parece menos relevante, está no grave perigo de se pretender antecipar a vigência do semipresidencialismo ao sinal de qualquer crise política, mesmo quando tiver todas as evidências de ser pré-fabricada. Os próprios deputados e senadores terão habilidades para tanto; e abreviar a chegada do sistema reformado, quando isso lhes fizer bem. Há que se prever remédio para evitar a tentação dos golpes.

Fim da guerra

Consta que o presidente Bolsonaro, aproveitando a visita de autoridade turca, sugeriu que um grupo de países, entre os mais prestigiosos, assuma a missão de intermediar o fim da guerra no Leste europeu. Não ofereceu plano objetivo ou o caminho a seguir, mas poderia ter lembrado, por oportuno, o mesmo que o senador americano Franck Church propôs ao presidente Lyndon Johnson, quando os Estados Unidos procuravam um caminho decente  para sair da guerra do Vietnã, sem sofrer maiores humilhações. “Diga que nós ganhamos e caia fora depressa”, aconselhou o senador.

Os russos já causaram tamanho estrago na Ucrânia, que poderiam abandonar o teatro de guerra sem se sentirem humilhados, sem quebra do orgulho. Além disso, estariam fazendo cumprir o destino de todas as guerras: elas jamais escapam da paz, qualquer que seja o tempo que durem.

terça-feira, 3 de maio de 2022


Partidos em mar turbulento




((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil")) 



O que se tem esperado, nos círculos políticos, é que as federações partidárias, o mais recente penduricalho inventado na legislação eleitoral, poderão, de fato, salvar alguns partidos da degola ameaçada por desempenho pífio. Pouco mais que isso. Foi o remédio inventado em laboratório para costurar roupa remendada nas velhas e indesejáveis coligações, que antigamente se satisfaziam em rechear de votos candidaturas com votações medíocres. Os que se salvarem com esse arranjo conseguirão sobreviver por mais algum tempo. Mas os olhares atentos dos inventores, voltados para legendas esquálidas, descuidam de examinar receitas saneadoras para os problemas e desafios que ameaçam os grandes partidos, cada vez mais convulsionados, sacudidos por exaustão ou crises internas, uma das quais evidenciada agora, quando se pensa na eleição do presidente da República.

O PSDB, que já teve época de enorme influência, vive o singular drama de ter escolhido um candidato à Presidência em prévia incontestável, incensou o vitorioso, João Dória, para, logo depois, chegar à conclusão de que não reúne força suficiente para tornar-se competitivo. Sendo ou não artificial a avaliação, o quadro é bastante grave ao expor dificuldades internas na convivência entre as correntes mais influentes. E os caciques do tucanato, percebendo a extensão do problema, optam por uma saída à francesa; isto é, sair sem fazer barulho e sem maiores turbulências no oceano incerto do ex-governador de São Paulo. Que cada qual cuide do seu próprio enterro, porque o impossível não há, como na história de Quincas Berro D’Água, personagem da imaginação de Jorge Amado.

Outro grande partido, que não passa ao largo de turbulências é o MDB. Este, mais que qualquer outro, podia se servir de uma estrutura longamente consolidada no interior do país, dono de poderosa capilaridade, tudo em contraste com o esforço de alguns de seus dirigentes, empenhados em removê-lo da próxima disputa presidencial, destinada a ser das mais importantes da história republicana. Velhos atores do caciquismo interno vêm se esforçando para desconsiderar os deveres da tradição, mas preferem correr para os braços do favoritismo do candidato Lula. Esperam fazer da eleição algo como a Pasárgada, de Manoel Bandeira, onde melhor não é ser o rei, mas amigo do rei. Tudo para confirmar que, com o tempo, o MDB aprendeu e gostou da arte do contorcionismo político, o que levou Almeida Reis a defini-lo como partido que se parece com gás, fluido, infinitamente compressível, cujo volume é do recipiente  que o contém...

O fato de estar com seu pré-candidato na liderança das pesquisas não poupa o PT de ter problemas existenciais, que podem não comprometê-lo fatalmente, mas preocupam. O partido enfrenta divergências intestinas, separa-se em grupos, afora o risco de não ter como enfrentar um segundo revés na campanha presidencial. É um jogo duro. O petismo tornou-se umbilicalmente dependente do lulismo, não admitiu construir bandeira e líder alternativos; de forma que, se o líder fracassar, o partido afunda com ele. Foi assim com o PTB de Vargas e com o PC de Prestes. A História tem mania de se repetir.

A eleição, ainda distante, nestes primeiros ensaios já serviu para mostrar que a organização partidária brasileira tornou-se um prédio cheio de rachaduras nas paredes e tetos fragmentados, a recomendar reformas urgentes e profundas, antes que desabe de vez.

O país sem projeto



O principal defeito da campanha presidencial, pelo menos no que se refere à primeira fase, é a ausência de maiores preocupações em torno de um projeto nacional. O Brasil não tem um projeto exposto à discussão; e suas lideranças, empenhadíssimas em galgar o poder, não dão importância ao vácuo que criaram frente ao eleitorado, que em outubro vai assumir a responsabilidade de optar pelo candidato que lhe parecer mais adequado. O PDT pede ressalva, alegando que Ciro Gomes estudou o país suficientemente para mostrar planos consistentes. Tem projeto.

Ao quadro de carências não se pode atribuir o viés da novidade, porque em disputas anteriores ocorreu o mesmo. O Brasil sem visões a longo. Mas agora, com mazelas evidentes, permite-se debitar o mal às tensões pré-fabricadas e à polarização raivosa entre dois candidatos momentaneamente preferenciais. Esses fatos se juntaram e estão se fundindo perigosamente, o que condena o eleitor a se prender ao espetáculo marginal de xingatório, no qual não faltam ofensas pessoais entre os candidatos e seguidores igualmente destemperados.

Frente ao festival de ultrajes são raros e pálidos os sinais do que se pensa para o Brasil mudar ou melhorar. Os candidatos ainda não se sentem animados a entrar no assunto, o que pode condenar a campanha eleitoral à indigência. É uma pena.

Com mais cinco meses para o término da corrida presidencial, estando o clima como hoje está, a cada dia avolumam-se inseguranças. Para tanto empenham-se as delicadas incursões de militares e ministros do Supremo Tribunal, também eles despreocupados com o projeto nacional, mas atraídos pelas questões das cozinhas da política.

Pelo tanto que já vivemos e passamos, merecíamos coisa melhor.

Cautela de jacaré


Diz-se que o momento brasileiro é acescente, isto é, tem tudo para azedar.

E, como se tem falado muito, nos últimos dias, de agravamento das tensões, com militares tomando parte no enredo dos conflitos entre Bolsonaro, Supremo Tribunal e Câmara dos Deputados, ouvem-se também vozes de pacificadores com panos quentes. São os que temem o pior que pode acontecer, se os atores esticarem demais a corda. Os precavidos recomendam muita cautela. Fazem lembra uma conversa, nas vésperas da ditadura, entre Vitorino Freire (1908-1977) e Chagas Freitas (1914 -1991). Sentenciava o velho senador maranhense:

- Há um cheiro de enxore no ar. É preciso proceder como o jacaré, que, em rio de piranhas, nada de costas, barriga para cima.