terça-feira, 29 de novembro de 2022

 


O lugar da faixa



(Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ) 

Não é que nestas horas de perigoso crepúsculo na política, tantas incertezas, ainda encontramos tempo e vagar para cuidar de coisas que ficam longe do essencial ?! Não falta quem esteja empenhado em deixar de lado questões emergenciais, para privilegiar o acessório. É o que se tem visto e ouvido na discussão sobre o destino da faixa presidencial, esse tiracolar de duvidoso bom gosto, embora represente, como símbolo - e só isso - a transmissão de poderes, que sai de um peito cansado para enfeitar o terno do sucessor. Pois, exatamente por se tratar de peça simbólica, de efêmera duração, tem tudo para não merecer atenções em demasia.

(Deixar de lado o mais importante, para dar atenção ao que pode ficar para depois, é antiga fraqueza, que vem dos tempos de Bizâncio, onde políticos e sábios debatiam a questão transcendente do sexo dos anjos, enquanto os inimigos invadiam a cidade).

Agora, uma nova discussão. Bolsonaro, ainda com a faixa, deve passá-la? Sente-se no direito de não fazê-lo, porque entende ser sucedido por alguém que tem na conta de usurpador, favorecido pela fraude. Nada o impede de pensar assim.

Mas, e daí? Um caminho que parece mais apropriado é, na hora derradeira, colocá-la sobre a gravata do vice-presidente, e deixar com ele o constrangimento inevitável. Mas o general Mourão, agora eleito senador, alega que esse imprevisto não tem parte em seu figurino. Melhor talvez – diz ele – é enrolar a faixa, dobrá-la direitinho, e mandar alguém do segundo escalão entregá-la a Lula. Faça ele o que melhor lhe aprouver.

Em muitos países, ela não mereceria tanta preocupação, mas por breve seriedade, exatamente por representar o momento da sucessão no poder político. Entre nós, em 1912, foi invenção do Marechal Hermes, que estimava ospenduricalhos sobre a farda, ostentando-os com imenso orgulho. Mas, desde então, a solenidade de passagem, com ou sem aquele acessório, não escapou de algumas experiências incômodas e episódios acidentados. Na transmissão de cargo, aqui mesmo no Rio, em 1965, Carlos Lacerda não suportaria a humilhação de passar o governo ao adversário Negrão de Lima. O vice, Rafael Magalhães, solidário, também escapou do ato; Negrão teve de encarar o desprestígio, e engolir seco.

Veio 85 e Figueiredo também se irritou. Não quis passar a faixa a José Sarney, e saiu pela porta do fundo.     

Não seria, portanto, prerrogativa de Bolsonaro e Lula engrossar a crônica de situações delicadas desse gênero. Hermes estava longe de inventar a tal faixa, e Prudente de Moraes, eleito em 1894, assumiu, sob azedume de Floriano Peixoto, que não era exatamente um exemplo de compostura. Sem as gentilezas de estilo do antecessor, o pobre Prudente teve de caminhar até o Itamaraty, a pé, de fraque e cartola. Neste Rio de 40 graus.

A história se repete. Talvez pronta para se repetir em janeiro.

Destino das CPIs

O país nunca teve suficientes razões para acreditar em comissões parlamentares de inquérito, criadas pelas casas do Congresso para apurar fatos e situações que, com suposta gravidade, corroem a democracia ou afetam a vida da sociedade. Como ondas, quase sempre chegam com estardalhaço, agitam, provocam discussões, mas geralmente acabam no ostracismo; e o que eventualmente poderiam apurar também vai para o esquecimento. Haja vista a sorte da mais recente delas, que sacudiu a política e a indústria farmacêutica, prometendo desvendar responsabilidades públicas e privadas frente à devastadora pandemia. Mexeu com tudo e com todos, excedeu-se na agressividade em alguns casos, mas, de concreto, nada apurou, ninguém formalmente denunciado. Encerrou suas atividades sob o descrédito de quem esperava claras indicações de responsabilidades na passagem da grande tragédia, que matou milhares entre nós e no mundo inteiro.

A mais recente CPI foi proposta, na semana passada, por iniciativa do deputado Marcel Hatten (Novo-RS), que se preocupa com o ilegal e excessivo acúmulo de autoridade por parte de ministros que integram o Supremo Tribunal e o TSE. Para dar embasamento regimental à iniciativa, ganhou logo o apoio de 181 pares, igualmente preocupados com avanços do Judiciário sobre terrenos e atribuições dos outros poderes.

Elas costumam dispor de sessenta a noventa dias para chegar a conclusões, mas o deputado Hatten, se de tanto tempo dispusesse, também estaria fadado a enfrentar a tradição da improdutividade, porque o agravamento da crise que está vivendo o Brasil não conseguiria respirar por tanto tempo. Explodiria antes. É outro motivo para não esperar que essa comissão tivesse destino diferente das demais. Portanto, longe a esperança de fazer dela um analgésico para as nossas dores. Embora machuque muito a desordem que impera nas relações institucionais.

Mas a intenção não teve de esperar muito para esbarrar em outra dificuldade. O presidente da Câmara, Artur Lira, pretendeu impedir o encaminhamento, alegando anteriores pedidos de CPIs. Podia ter se valido de desculpa menos pueril, porque o que deseja o parlamentar gaúcho tem importância suficiente para merecer precedência. Mas Lira é representante de uma classe política que prefere não mexer e aborrecer os homens da Justiça, por motivos óbvios e fartamente conhecidos.

(São antigas as desconfianças de que os parlamentares não servem para apurar mazelas e defeitos, porque são eles os que mais frequentemente os praticam. Dizia Millôr, com ironia: “Nosso Congresso é eficiente: ele mesmo rouba, ele mesmo investiga, ele mesmo absolve”).

Em acréscimo, diga-se que, mergulhando num delicado terreno de conflitos, essa CPI, mesmo agravando as hostilidades e os ânimos, revelaria um pouco de coragem frente a uma flagrante agressão do Judiciário. Lira podia ter isso em mente. No caso presente, longe de negar a sucessão de abusos da toga, com tudo para ser claramente expostos à sociedade, a Câmara acalmaria possíveis ofendidos, considerando-se as limitações próprias desses inquéritos e sua estreita competência, que é restrita à apuração, ao encaminhamento de conclusões e pedir justiça. Nada além disso. Mas – e desta vez ? - se o alvo das graves suspeitas pesa sobre os tribunais?. O que esperar que os ministros façam contra si mesmos? Não haveriam de cortar na própria pele.

Dando e recebendo

Uma vitória eleitoral apertada, cercada de suspeitas cada dia mais exploradas pelos descontentes, é a medida adequada a exigir do novo governo arte e habilidades para contentar partidos e grupos que lhe deram apoio. Na verdade, tão escassa a diferença dos votos obtidos nas urnas, cada qual dos seguimentos bem sucedidos se sente no direito de reclamar fatia mais generosa do bolo que começa a assar. São muitos os comensais, e a forma do bolo tem suas limitações.

Observado o quadro político sob esse aspecto, nesta terça-feira, em Brasília, Lula passa à frente dos interlocutores e tenta, pessoalmente, com base em conversas e promessas, marcar os espaços que estarão abertos no primeiro dia de janeiro. Como detalhe importante, o desafio está no fato de que a distribuição dos cargos de primeiro e segundo escalões precisa antecipar garantias preliminares de o Executivo poder dispor de uma bancada favorável na Câmara; e, desde já, disposta a derrubar barreiras que ameaçam a PEC da transição. Observe-se que, se Lula tem muito a oferecer, da mesma forma tem muito a pedir.

(Não se sabe muito bem como anda a religiosidade dele, mas é certo desembarcou em Brasília disposto a cumprir um breviário franciscano, embora às avessas. Não é dando que se recebe; mas é recebendo que se dá… )

Se do PT não se pode tirar o mérito de ter sido o primeiro a assumir uma campanha dificílima, com seu candidato oposicionista carimbado com a denúncia de farta corrupção, não é menos verdade que o partido carrega a tradição de pouca disposição para repartir os despojos das guerras que vence. Viu-se na última vez em que Lula esteve na Presidência. Eram tantos os apetites e as cobranças, que ampliou desmedidamente o número de ministérios. Ainda assim, destinou apenas dois ao MDB, que o apoiara, e o PT abocanhou vinte.

Verdade inconteste. Hoje, como ontem, acalmar o apetite de aliancistas, recém-suados numa grande luta, e quando todos de sentem no direito de exigir muito, é algo difícil, porque se o presidente de um lado premia e abençoa, de outro produz queixas e cria ressentimentos.

Pelos fatos já conhecidos e os que estão se criando, projeta-se para 2023 quadro um pouco mais complicado. Não seria demasiado afirmar que poucos governos, como o que se aproxima, dependeram tanto de acordos e concessões, receituário único para enfrentar desafios da governabilidade. O governante, mais uma vez, nas mãos dos contemplados e dos relegados.

Assim sabendo, o PT sinaliza de encarar a indigesta permanência de um bom bolsonarista, Artur Lira, na presidência da Câmara, para confiar nele o destino de uma PEC fundamental. No rastro da dispepsia, passo seguinte, avançar rumo ao Centrão, onde os obstáculos podem ser menores, porque ali a arte da adesão é um rito, embora em algumas vezes o que espanta não é exatamente a adesão, mas a velocidade com que se adere…

terça-feira, 22 de novembro de 2022

 




Palanque em dupla face



(( Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil")) 

Quem disse foi De Gaulle, à sombra da Quinta República francesa. Campanha eleitoral faz-se com poesia; governa-se com prosa. Quis dizer o velho general não ser conveniente achar que tudo que se fala e se ouve deva ser levado a sério, quando é tempo de disputa de eleitores e de votos. Lição cabível para quem está no outro lado do oceano, onde um presidente eleito vem sendo cobrado, tanto pelos que lhe deram o voto, como os que não o apoiaram; mesmo assim, todos querem antecipar prestação de contas. Quanto aos exigentes da hora, vale a ressalva, caso figurem entre eles os que optaram por Lula, não porque morriam de amores por ele, mas apenas porque odeiam Bolsonaro. Estes vingaram-se, foram gratificados na tarde de 30 de outubro, quando se fecharam as urnas. Regiamente pagos, nada a reclamar.

Fácil de compreender, porém difícil de aceitar. O discurso de campanha tem de ser, necessariamente, muito mais um exercício de sonhos e boas intenções. Excetuados os dialéticos, poucos serão os eleitores deste país que prefeririam ouvir de seus candidatos apenas lamúrias, desesperos e previsões funestas; porque agrada mais é algo como a ampla democratização da picanha, cerco aos milionários, casa para todos e a população miserável com a garantia de três refeições diárias. Bom mesmo é o aceno de alegres paraísos iminentes, ainda que fictícios.

De maneira que – é preciso compreender bem isso - a responsabilidade pelo destino das promessas de campanha tem mão dupla, tanto é de quem as faz, como de quem as aceita as subscrevno momento da urna. Tal como o voto, igualmente responsável, tanto de quem o pede, como quem o dá. Em rigor, o peso acaba sendo maior para os que acolheas generosas propostas, no dizer da lição gaullista.

(No particular, o escritor e professor Abgar Renault parecia ser mais condescendente com o palanque dos candidatos, pois admitia que só mesmo o impossível é digno de ser sonhado).

Aberto o jogo entre as coisas ditas e as impossíveis, o caso Lula não é diferente. Ele apregoou o que alguns milhões de brasileiros queriam ouvir, metade de um Brasil obediente à mensagem socialista distributivistaAgora, no balanço da fatalidade do impossível, poderia se lembrar do que disse, certa vez, Artur da Távola, que foi senador pelo Rio de Janeiro: a arte da política e de um presidente é fazer a união do possível com o necessário. Nada mais que isso.

Sua excelência, o impasse

No emaranhado dos problemas em que o Brasil mergulhou, de cabeça, desde os primeiros momentos do ano eleitoral, cada um deles com origens e complexidades próprias, as perguntas e as expectativas vão se afunilando, cada vez mais insistentes quanto aos estreitos caminhos que podemos seguir para resolvê-los. Mas todos esses problemas, quando escapam de seus campos específicos, acabam desaguando num destino comum; vão para o mesmo lugar, frente a uma questão que neste exato momento não tem resposta convincente. É o fantasma do impasse. Estamos em apuros diante dele, porque, se olhamos para todos os lados, não conseguimos divisar o caminho a seguir. Por isto, quando se indaga sobre a definitiva dificuldade do país, confessemos: é o impasse, que nos parece um túnel cheio de esquinas, impedindo identificar a desejada luz de saída.

O que não quer dizer que faltem ideias originais, algumas de bondade inocente, como deseja, por exemplo, Michel Temer, ao sugerir a Lula convidar Bolsonaro a ajudá-lo na custosa travessia dos tormentos. No fundo, o ex-presidente certamente tenta praticar uma penitência, pois foi invenção sua o acesso do doutor Alexandre ao Supremo Tribunal, onde ele conseguiu montar a notável usina dos óbices que temos enfrentado.

Entende-se bem o beco escuro em que o Brasil tem tateado nas últimas semanas. É que os atores da crise acabariam esbarrando num mar de incoerências ou, pior, chegariam a um ponto em que, para eles, tanto difícil avançar como retroceder, dado que as posições já assumidas não lhes permitem rever o que disseram e as atitudes tomadas, sem graves prejuízos para a coerência. Tome-se, como primeiro exemplo, o presidente Bolsonaro, que se veria constrangido a acatar os números do processo eleitoral, depois de combatê-los com vigor, mostrando-se vítima de fraude descarada. Desdizendo-se agora, não estaria em situação confortável. Qualquer que fosse o passo que desse.

Para o Tribunal Superior Eleitoral, que contra o presidente da República investe sem piedade e sem limites, resta imensa responsabilidade que tem de assumir perante a nação: entrar no novo ano sem deixar mínima dúvida quanto à garantia de lisura do pleito, confrontando suspeitas do Exército e de 50 milhões de cidadãos descontentes. Eis outro impasse plantado: insistindo ou não na lisura, o TSE e seus ministros saem desprestigiados, independentemente do rumo que tomarem.

Ora, se ninguém tem merecido o direito de respirar aliviado nestes dias, não haveria de escapar o Senado Federal. Agora, mais do que nunca, porque é o momento de definir como se portar com a chegada de uma bancada majoritária simpática ao bolsonarismo, comprometida com o ideal de conter o ativismo judicial, fenômeno diante do qual o Congresso tem feito concessões, assistindo à sobrevivência de uma classe política cada vez mais dócil à ditadura togada. O que seria adequado aos senadores, velhos ou novos: renovar e avançar ou manter o recolhimento? Mais um entre os vários impasses.

Questionado, não diferentemente, figura o prestígio das Forças Armadas. Colocadas diante das urnas, deixaram evidente dupla preocupação: não esconder grandes dúvidas quanto à fraude, mas sem reconhecer claramente esse pecado eleitoral, que seria a razão da vitória de Lula, algo que não apetece aos quartéis. Também elas já não têm como reconsiderar o que foi objeto de insinuações, para conviver razoavelmente com o novo governo. Considere-se que, ao sugerir futuros aperfeiçoamentos no sistema eleitoral, os militares concordam, consequentemente, que há defeitos que comprometem. Cabem explicações mais claras, muito além do que até agora explicaram, embora disso se possa desdobrar mais um estímulo à crise.

Seria injusto, por fim, se uma conta desse rosário de impasses não se debitasse aos grupos políticos da esquerda. Voltar às ruas para tentar blindar o mandato de Lula, que vive sob intenso bombardeio, ou esperar que a direita esgote os ânimos e o fôlego? O que seria menos perigoso no momento? Nem ela mesmo sabe.

terça-feira, 15 de novembro de 2022

 

República incompleta



(Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" )) 



Se nunca figurou entre nossos hábitos celebrar o advento da República, proclamada há 113 anos, menos agora, nestes dias tensos e inseguros que estamos vivendo. Continua a data apenas destinada a trazer à lembrança qualquer coisa, menos aquela manhã de 15 de novembro de 1889, quando a monarquia e a família imperial foram empurradas, às pressas, para a Europa. Entre outros povos, conhecem-se manifestações mais expressivas, quando se trata de reverenciar o regime republicano.

Talvez a indiferença se deva ao fato de ela caminhar durante todo esse tempo sem dar à História prova inequívoca de que valeu a pena, a começar por não aplicar, verdadeiramente, a proposta de uma República Federativa. Fosse diferente, o povo talvez se animasse a festejar esse rótulo, e as deformações e desigualdades podiam estar corrigidas, pelo menos nos aspectos essenciais. Não foi o que se viu nesse longo tempo. O estado não modernizou o necessário para se incorporar às melhores democracias. Perduraram muitos vícios do cartorialismo, as rendas mantiveram-se gritantemente concentradas, herança dos imperadores dos cafezais, dos engenhos e do ouro. Multidões negras, recém-libertas da escravidão, perambulando sem rumo e sem sorte, deixando a marca dos pés descalços nas loucas caminhadas ainda hoje fincada nas descendências. Salvar os excluídos ou injustiçados foi algo de que se descuidou a elite inovadora.

Pudera. Quando D Pedro partiu e Deodoro surgiu, o novo regime chegou sem que o povo soubesse. Na palavra de Aristides Lobo, assistiu àquilo bestificado. Os republicanos, ainda de madrugada, foram acordar o proclamador, que, resfriado e febril, saiu, contrariando a preocupação da mulher que o desejava literalmente na cama… Benjamin Constant levantou o braço e a espada dele, gritou Viva a República. Pronto, Brasil. Alea jacta est. Saía dali uma simbiose tropicalizada: o positivismo comtiniano, os fazendeiros desesperados, sem mãos para a lavoura; tudo isso somado ao descontentamento da classe militar, modestamente prestigiada após a Guerra do Paraguai.

( Foi o que levou Machado de Assis a pedir aos deuses que “afastem do Brasil o modelo republicano, porque esse dia – 15 de novembro de 1889 - seria o dia do nascimento da mais insolente aristocracia que o sol jamais alumiou” ).

As lideranças tiveram tempo mais que suficiente para corrigir o que ficou de errado, e melhorar o que veio imperfeito. A República, impulsionada pelo tempo, calejada nas experiências, para facilitar as correções chegou a dividir-se em fases distintas perante a História. A primeira, de 1889 à Revolução de 30; a segunda foi a Era Vargas; a terceira do Estado Novo, de 37 a 46; a quarta fase, do governo Dutra a 67. Depois, o período de ditadura militar até a Constituição de 1988. Sacolejado por fatos tão significantes, o regime podia estar melhor. Não é para qualquer uma, seja dito para reconhecer a capacidade da República brasileira de enfrentar solavancos: 19 rebeliões em quartéis, sete dissoluções do Congresso, quatro governos provisórios, duas renúncias de presidente, três impedidos de tomar posse, cinco foram depostos e dois sofreram impeachment.

Apesar de tudo isso, em 1993, num plebiscito, 66 % dos brasileiros lhe deram preferência, recusando a monarquia. Mas não a isentou dos pecados originais.

Diga-se, contudo, que sempre há tempo para melhorar o que pode ser melhorado. Esperança é a ordem do dia.

Direita é um fato

É preciso esperar que volte ao chão a poeira que a campanha dos candidatos levantou; que se esclareçam definitivamente as dúvidas quanto ao processo eleitoral, para que se chegue à pauta das questões remanescentes e importantes que os votos insinuaram. Por exemplo, o fenômeno da direita, que em Bolsonaro ganhou identidade, popularizou-se, absorveu metade do universo votante. Antes mesmo de terminar a disputa presidencial ela já havia ocupado ruas e praças. Mobilizou-se, o que, até então, era quase prerrogativa natural das forças da esquerda.

Tirante o mais importante, que foi o advento do novo governo e a retomada das linhas esquerdistas, a direita marcou seu espaço com identidade própria, chamou a si virtudes do patriotismo, vestiu-se de verde e amarelo. Seria erro subestimar isso, como se fosse mero acidente de percurso na disputa presidencial, porque, sob certos aspectos, ela vai além do presidente, talvez já acima dele, embora tenha sido sob os auspícios do atual governo que ascendeu, adotou bandeiras, slogans e palavras de ordem, além de propor algo esquecido há meio século: a volta intervencionista dos militares no campo das decisões políticas, o que a redemocratização reservara ao poder civil.

Sinais do fenômeno já havia. Relembrando junho de 2013, quando aconteceram movimentos difusos nas ruas, com muita presença de jovens, demonstrando insatisfação com os serviços públicos de transporte, moradia e saúde. Há quem considere que refletiam os mais pobres, das periferias urbanas. Para outros, contudo, ali surgia, com nitidez, a ação política da direita brasileira. Em seguida, vieram manifestações populares de apoio à operação Lava-Jato, desembocando nas grandes concentrações pedindo o impeachment da então presidente Dilma. Lembremo-nos que naquela época surgiram os manifestantes trajando verde e amarelo, com a camisa da seleção brasileira de futebol, entre outros símbolos nacionais, que se repetiram. 

Já em 2018, essa mobilização convergipara a campanha de Bolsonaro, que se elegeu presidente da República, logo assumiu a liderança da direita nacional. Num passo seguinte, cuidou de fortalecer os movimentos de rua que questionam o STF, a confiabilidade das urnas eletrônicas, e, paralelamente, o imperativo de uma pauta de costumes. Pelo que se vê de tão breve histórico, pode-se intuir que a direta continuará acionada em oposição à esquerda, mas também com apoio de seus representantes no Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e governos estaduais. Tudo em preparpara tentar a retomada do poder em 2026.

Ha, pois, independentemente de desejos em contrário, uma direita que desembarcou no espaço político brasileiro, carregando 58 milhões de votos; e é com esse cabedal que vai tentar colher os frutos dos desgastes do novo governo, que, como qualquer governo, terá desafios e peripécias a superar. Não escapa da velha batalha entre as ideias e os resultados.

(É sempre lembrado o desabafo de Aloísio Mercadante, que foi senador pelo PT: “Fomos cobrados de que nosso discurso na oposição não é o mesmo do governo. Por que não pode ser o mesmo? Porque a História nos cobra a necessidade de assumir a responsabilidade de governo”).

O Brasil de hoje, do pós-eleições, continua efervescente, com pessoas ocupando calçadas próximas aos quartéis do Exército, pedindo intervenção militar para impedir a posse do presidente eleito. Essas ocupações ocorrem em várias regiões, mas só questionam o resultado da eleição presidencial. Não querem mexer com governadores, senadores e deputados, porque aí os direitistas foram numerosos.

Mais importante, para que se evitem sustos próximos, é não deixar de reconhecer o fato de que a direita brasileira está ativa e demonstrou força política e eleitoral, o que dá folego para as futuras mobilizações de oposição a partir de 2013. Em apoio a essa constatação, considere-se a presença de um “partido militar”, que tem no comando os bolsonaristas. Sem generais do Exército, almirantes e brigadeiros a direita seria menor.

Com o protagonismo que tiraram das urnas, os direitistas não vão dispensar a oportunidade de cobrar e capitanear insatisfações. O que pode ser menos ou mais fácil, dependendo também de quem vai assumir o comando. Bolsonaro? Ou um dos militares que se saíram bem nas urnas?