O lugar da faixa
(Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" )
Não é que nestas horas de perigoso crepúsculo na política, tantas incertezas, ainda encontramos tempo e vagar para cuidar de coisas que ficam longe do essencial ?! Não falta quem esteja empenhado em deixar de lado questões emergenciais, para privilegiar o acessório. É o que se tem visto e ouvido na discussão sobre o destino da faixa presidencial, esse tiracolar de duvidoso bom gosto, embora represente, como símbolo - e só isso - a transmissão de poderes, que sai de um peito cansado para enfeitar o terno do sucessor. Pois, exatamente por se tratar de peça simbólica, de efêmera duração, tem tudo para não merecer atenções em demasia.
(Deixar de lado o mais importante, para dar atenção ao que pode ficar para depois, é antiga fraqueza, que vem dos tempos de Bizâncio, onde políticos e sábios debatiam a questão transcendente do sexo dos anjos, enquanto os inimigos invadiam a cidade).
Agora, uma nova discussão. Bolsonaro, ainda com a faixa, deve passá-la? Sente-se no direito de não fazê-lo, porque entende ser sucedido por alguém que tem na conta de usurpador, favorecido pela fraude. Nada o impede de pensar assim.
Mas, e daí? Um caminho que parece mais apropriado é, na hora derradeira, colocá-la sobre a gravata do vice-presidente, e deixar com ele o constrangimento inevitável. Mas o general Mourão, agora eleito senador, alega que esse imprevisto não tem parte em seu figurino. Melhor talvez – diz ele – é enrolar a faixa, dobrá-la direitinho, e mandar alguém do segundo escalão entregá-la a Lula. Faça ele o que melhor lhe aprouver.
Em muitos países, ela não mereceria tanta preocupação, mas por breve seriedade, exatamente por representar o momento da sucessão no poder político. Entre nós, em 1912, foi invenção do Marechal Hermes, que estimava ospenduricalhos sobre a farda, ostentando-os com imenso orgulho. Mas, desde então, a solenidade de passagem, com ou sem aquele acessório, não escapou de algumas experiências incômodas e episódios acidentados. Na transmissão de cargo, aqui mesmo no Rio, em 1965, Carlos Lacerda não suportaria a humilhação de passar o governo ao adversário Negrão de Lima. O vice, Rafael Magalhães, solidário, também escapou do ato; Negrão teve de encarar o desprestígio, e engolir seco.
Veio 85 e Figueiredo também se irritou. Não quis passar a faixa a José Sarney, e saiu pela porta do fundo.
Não seria, portanto, prerrogativa de Bolsonaro e Lula engrossar a crônica de situações delicadas desse gênero. Hermes estava longe de inventar a tal faixa, e Prudente de Moraes, eleito em 1894, assumiu, sob azedume de Floriano Peixoto, que não era exatamente um exemplo de compostura. Sem as gentilezas de estilo do antecessor, o pobre Prudente teve de caminhar até o Itamaraty, a pé, de fraque e cartola. Neste Rio de 40 graus.
A história se repete. Talvez pronta para se repetir em janeiro.
Destino das CPIs
O país nunca teve suficientes razões para acreditar em comissões parlamentares de inquérito, criadas pelas casas do Congresso para apurar fatos e situações que, com suposta gravidade, corroem a democracia ou afetam a vida da sociedade. Como ondas, quase sempre chegam com estardalhaço, agitam, provocam discussões, mas geralmente acabam no ostracismo; e o que eventualmente poderiam apurar também vai para o esquecimento. Haja vista a sorte da mais recente delas, que sacudiu a política e a indústria farmacêutica, prometendo desvendar responsabilidades públicas e privadas frente à devastadora pandemia. Mexeu com tudo e com todos, excedeu-se na agressividade em alguns casos, mas, de concreto, nada apurou, ninguém formalmente denunciado. Encerrou suas atividades sob o descrédito de quem esperava claras indicações de responsabilidades na passagem da grande tragédia, que matou milhares entre nós e no mundo inteiro.
A mais recente CPI foi proposta, na semana passada, por iniciativa do deputado Marcel Hatten (Novo-RS), que se preocupa com o ilegal e excessivo acúmulo de autoridade por parte de ministros que integram o Supremo Tribunal e o TSE. Para dar embasamento regimental à iniciativa, ganhou logo o apoio de 181 pares, igualmente preocupados com avanços do Judiciário sobre terrenos e atribuições dos outros poderes.
Elas costumam dispor de sessenta a noventa dias para chegar a conclusões, mas o deputado Hatten, se de tanto tempo dispusesse, também estaria fadado a enfrentar a tradição da improdutividade, porque o agravamento da crise que está vivendo o Brasil não conseguiria respirar por tanto tempo. Explodiria antes. É outro motivo para não esperar que essa comissão tivesse destino diferente das demais. Portanto, longe a esperança de fazer dela um analgésico para as nossas dores. Embora machuque muito a desordem que impera nas relações institucionais.
Mas a intenção não teve de esperar muito para esbarrar em outra dificuldade. O presidente da Câmara, Artur Lira, pretendeu impedir o encaminhamento, alegando anteriores pedidos de CPIs. Podia ter se valido de desculpa menos pueril, porque o que deseja o parlamentar gaúcho tem importância suficiente para merecer precedência. Mas Lira é representante de uma classe política que prefere não mexer e aborrecer os homens da Justiça, por motivos óbvios e fartamente conhecidos.
(São antigas as desconfianças de que os parlamentares não servem para apurar mazelas e defeitos, porque são eles os que mais frequentemente os praticam. Dizia Millôr, com ironia: “Nosso Congresso é eficiente: ele mesmo rouba, ele mesmo investiga, ele mesmo absolve”).
Em acréscimo, diga-se que, mergulhando num delicado terreno de conflitos, essa CPI, mesmo agravando as hostilidades e os ânimos, revelaria um pouco de coragem frente a uma flagrante agressão do Judiciário. Lira podia ter isso em mente. No caso presente, longe de negar a sucessão de abusos da toga, com tudo para ser claramente expostos à sociedade, a Câmara acalmaria possíveis ofendidos, considerando-se as limitações próprias desses inquéritos e sua estreita competência, que é restrita à apuração, ao encaminhamento de conclusões e pedir justiça. Nada além disso. Mas – e desta vez ? - se o alvo das graves suspeitas pesa sobre os tribunais?. O que esperar que os ministros façam contra si mesmos? Não haveriam de cortar na própria pele.
Dando e recebendo
Uma vitória eleitoral apertada, cercada de suspeitas cada dia mais exploradas pelos descontentes, é a medida adequada a exigir do novo governo arte e habilidades para contentar partidos e grupos que lhe deram apoio. Na verdade, tão escassa a diferença dos votos obtidos nas urnas, cada qual dos seguimentos bem sucedidos se sente no direito de reclamar fatia mais generosa do bolo que começa a assar. São muitos os comensais, e a forma do bolo tem suas limitações.
Observado o quadro político sob esse aspecto, nesta terça-feira, em Brasília, Lula passa à frente dos interlocutores e tenta, pessoalmente, com base em conversas e promessas, marcar os espaços que estarão abertos no primeiro dia de janeiro. Como detalhe importante, o desafio está no fato de que a distribuição dos cargos de primeiro e segundo escalões precisa antecipar garantias preliminares de o Executivo poder dispor de uma bancada favorável na Câmara; e, desde já, disposta a derrubar barreiras que ameaçam a PEC da transição. Observe-se que, se Lula tem muito a oferecer, da mesma forma tem muito a pedir.
(Não se sabe muito bem como anda a religiosidade dele, mas é certo desembarcou em Brasília disposto a cumprir um breviário franciscano, embora às avessas. Não é dando que se recebe; mas é recebendo que se dá… )
Se do PT não se pode tirar o mérito de ter sido o primeiro a assumir uma campanha dificílima, com seu candidato oposicionista carimbado com a denúncia de farta corrupção, não é menos verdade que o partido carrega a tradição de pouca disposição para repartir os despojos das guerras que vence. Viu-se na última vez em que Lula esteve na Presidência. Eram tantos os apetites e as cobranças, que ampliou desmedidamente o número de ministérios. Ainda assim, destinou apenas dois ao MDB, que o apoiara, e o PT abocanhou vinte.
Verdade inconteste. Hoje, como ontem, acalmar o apetite de aliancistas, recém-suados numa grande luta, e quando todos de sentem no direito de exigir muito, é algo difícil, porque se o presidente de um lado premia e abençoa, de outro produz queixas e cria ressentimentos.
Pelos fatos já conhecidos e os que estão se criando, projeta-se para 2023 quadro um pouco mais complicado. Não seria demasiado afirmar que poucos governos, como o que se aproxima, dependeram tanto de acordos e concessões, receituário único para enfrentar desafios da governabilidade. O governante, mais uma vez, nas mãos dos contemplados e dos relegados.
Assim sabendo, o PT sinaliza de encarar a indigesta permanência de um bom bolsonarista, Artur Lira, na presidência da Câmara, para confiar nele o destino de uma PEC fundamental. No rastro da dispepsia, passo seguinte, avançar rumo ao Centrão, onde os obstáculos podem ser menores, porque ali a arte da adesão é um rito, embora em algumas vezes o que espanta não é exatamente a adesão, mas a velocidade com que se adere…