terça-feira, 1 de novembro de 2022

 


Escala de prioridades



((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil )) 

O presidente eleito não ignora os desafios poderosos que tem pela frente, começando por estabelecer certa ordem nas prioridades, da primeira das quais safou-se com astúcia: rápido no gatilho, não esperou que fosse concluída a apuração dos votos, e procurou esvaziar o clima de uma eleição praticamente empatada. Foi um longo discurso, preparado com a antecedência que pressentia possíveis dificuldades; mas também com o propósito de abafar reações dos contrários, estes sempre desconfiados da imparcialidade das urnas e dos tribunais. Lula quis logo dar a vitória como fato consumado, quando não sabia como reagiriam o adversário e o governo. Pregou a pacificação dos ânimos, sem excluir aliados, muitos dos quais não se contentarão com poucas compensações. Em suma, antecipou-se, para tentar eliminar os excessos dos descontentes e colocar os fatos a seu favor.

A oposição não tem rumos definidos, por hora duplamente ferida: porque não ganhou e porque perdeu por pouco. Como também não sabe se o presidente Bolsonaro vai se recolher ou se retoma a pregação contra um adversário que rotulou como universal patrono da corrupção. Com ele ou sem ele, o projeto oposicionista será arquitetado com algumas diferenças.

Quanto às prioridades, cumprida a primeira, que tentou eliminar veleidades dos contrariados, vem uma segunda, com direito a anteceder as demais. O presidente eleito precisa cuidar da saúde, que reclama algumas atenções. E ele certamente não desconhece isso. Embates inevitáveis vão colocar à prova sua resistência física, com quatro anos pela frente, e já carregando como herança problemas do passado recente.

Ainda no elenco de tarefas a serem cumpridas de imediato, também com intenção de reduzir os ânimos adversos, Lula faria bem se precipitasse a definição de um nome para o Ministério da Economia, começando a estabelecer relações com os meios produtivos, notadamente na área do agronegócio. Não é novidade afirmar que planos econômicos correm paralelamente com propostas políticas, quando o objetivo é pavimentar caminhos por onde o governo quer passar. Como se viu na história de todos os presidentes. E o destino não haverá de ser diferente para o próximo.

Refletindo mais nesse ponto, caberia lembrar que, de véspera, dilui-se a preocupação quanto à necessária sustentação da base parlamentar, mesmo que a vitória tenha chegado com suados votos em conta-gotas. Não importa, porque a aritmética eleitoral é diferente da aritmética política, esta mais duradoura, pragmática e eficaz no faturamento. E Lula, com experiência de dois mandatos anteriores, certamente não se assusta quanto às relações com a Câmara dos Deputados, onde encontra à disposição uma bancada pronta a servir ao novo governo, como serviria prontamente a Bolsonaro, se a ele a sorte favorecesse. Fácil prever, porque o Centrão é um plantonista que não se entusiasma com os governos que acabam, acha que defunto leva-se até à beira da cova; não entra nela em solidariedade aos finados. Viu-se. Na noite da vitória, antes mesmo do discurso de Lula, o deputado Arthur Lira já havia dado o recado: estamos aí.

Missão a ser programada, em seguida, é organizar a convivência com as Forças Armadas, declaradamente antipáticas em relação ao presidente eleito, não apenas por causa da campanha eleitoral que primou por ideias e projetos de conteúdo esquerdista, mas, por acréscimo, porque nos quatro anos do governo Bolsonaro milhares de militares assumiram cargos e funções civis, quase chegando a ganhar foro de partido corporativo. Como devolvê-los à farda e ao pijama?

Outra linha de convivência a reclamar cuidados refere-se ao Judiciário, onde o eleito deixou pendências e processos convenientemente sustados.

Por fim, é preciso lembrar que ele tem pela frente um Brasil um pouco diferente daquele que viu doze anos atrás. O que não mudou – pelo contrário, acentuou-se ainda mais - é que somos mesmo dois países dentro de um só Brasil. Um acaba em Minas e o outro começa na Bahia.

Abaixo a reeleição

Uma das vantagens do começo de qualquer governo é que dispõe de tempo para tudo, nisso incluindo iniciativas amargosas, porque sobram dias e meses para que os incomodados esqueçam o amargor. Talvez baseado nessa constatação, o novo presidente possa iniciar articulações junto ao Congresso Nacional para pôr fim à instituição da reeleição, que não deu certo - pelo menos entre nós – porque acumulou mais problemas e deficiências que virtudes e benefícios para a sociedade. Com uma vantagem a mais para que se aproveite a oportunidade e se dê encaminhamento à proposta: Bolsonaro já não tem como postular o segundo mandato. E Lula, da mesma forma, aos 77 anos, não terá como pleitear a renovação do seu.

Portanto, a hora é essa.

Tudo a calhar, para eliminar qualquer devaneio continuísta, sem falar de algo que a experiência não deixa mentir: tomado pelo tédio, pela mesmície ou pelos vícios, o segundo mandato de Fernando Henrique, de Lula e Dilma sempre se revelou inferior ao primeiro.

A reeleição, devidamente substituída e compensada por uma gestão de cinco ou seis anos, seria solução ideal, como têm assegurado os estudiosos; e parece difícil deles discordar. Nossa experiência nesse campo inaugurou-se sob temores de corrupção deslavada, com a compra de votos de deputados que se simpatizassem com a causa. Denunciou-se, na feira compradora, que o voto chegou a valer 250 mil, desperdício de dinheiro, porque voto corrompido não pode valer tanto. Beneficiário, Fernando Henrique sempre diz nada ter a ver com aquela malandragem, embora tivesse tempo suficiente para denunciá-la e desautorizá-la.

Defeitos cristalizados ajudam a sepultar qualquer expectativa de bons resultados, porque a reeleição expõe um defeito medular, sem ser preciso citar outros: quem ganha quatro anos no poder já vai se consumindo em sonhos, canetadas e ideias para assegurar um novo mandato. O ano final sempre foi um rosário de composições e favores, para confirmar o que a História já sabia e advertia: a reeleição é estranha à tradição republicana, apenas rompida com Vargas na década de 30. Nem os militares de 64 ousaram tanto.

A pacificação

Indagava-se, na semana passada, sobre os ombros mais eficientes nos quais devêssemos lançar esperanças para a pacificação da política, arranhada e exausta de tantos embates da recente campanha eleitoral. O próprio Papa Francisco, que tem guerras internas e externas para preocupar o pontificado, diz estar rezando para o Brasil superar as desavenças. À caça à hipotética figura capaz de assumir tal tarefa soma-se a opinião de quem acha que para executá-la seria conveniente chamar, em primeiro lugar, os partidos. Sem estes, os esforços fracassariam. E não são poucos os que pensam assim.

Mas, nesse caso, a tarefa, mais ingente que se imagina, demandaria um longo tempo; talvez tão duradouro quanto o próximo mandato presidencial. A começar pelas duas legendas que disputaram até o último minuto – PL e PT – que têm planos próprios para suas pazes particulares, ou para continuarem desafiando os adversários. Não há como contar com eles, pelo menos para tratamento emergencial. Quanto aos demais, ou saíram derrotados ou encontram-se apensados em federações, que, nascidas há um ano, já deram sinais de que não sobreviverão. Muito menos com força e prestígio para atuar em qualquer projeto de harmonização.

Ainda flutua ao vento a pergunta sobre figura capaz de levantar a bandeira branca nesse chão político que recente campanha deixou ferido e fumegante. Não faltaria mesmo a ideia de a missão ser confiada ao Judiciário, que, muitas vezes, em sua longa história, foi convocado a aplicar panos quentes sobre as crises e abafar litígios. Pode ser, mas não desta vez, quando o país queda à força da ditadura togada. Como creditar aos tribunais esse delicado papel?, se o Supremo e o Eleitoral fomentaram, com invejável desenvoltura, os incêndios que pretendemos apagar. As condutas preferenciais sobre candidatos que referida ditadura praticou deixam claro que não seriam seus ministros portadores adequados para o encargo.

Daí concluir-se que, de tão carentes de emissários, o que resta para reaproximar lideranças divididas, é esperar que elas próprias, vitoriosas e derrotadas, sinalizem logo seus planos de vida ou sobrevida, sabendo que, prolongadamente beligerantes, também terão um preço a pagar.

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