terça-feira, 15 de novembro de 2022

 

República incompleta



(Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" )) 



Se nunca figurou entre nossos hábitos celebrar o advento da República, proclamada há 113 anos, menos agora, nestes dias tensos e inseguros que estamos vivendo. Continua a data apenas destinada a trazer à lembrança qualquer coisa, menos aquela manhã de 15 de novembro de 1889, quando a monarquia e a família imperial foram empurradas, às pressas, para a Europa. Entre outros povos, conhecem-se manifestações mais expressivas, quando se trata de reverenciar o regime republicano.

Talvez a indiferença se deva ao fato de ela caminhar durante todo esse tempo sem dar à História prova inequívoca de que valeu a pena, a começar por não aplicar, verdadeiramente, a proposta de uma República Federativa. Fosse diferente, o povo talvez se animasse a festejar esse rótulo, e as deformações e desigualdades podiam estar corrigidas, pelo menos nos aspectos essenciais. Não foi o que se viu nesse longo tempo. O estado não modernizou o necessário para se incorporar às melhores democracias. Perduraram muitos vícios do cartorialismo, as rendas mantiveram-se gritantemente concentradas, herança dos imperadores dos cafezais, dos engenhos e do ouro. Multidões negras, recém-libertas da escravidão, perambulando sem rumo e sem sorte, deixando a marca dos pés descalços nas loucas caminhadas ainda hoje fincada nas descendências. Salvar os excluídos ou injustiçados foi algo de que se descuidou a elite inovadora.

Pudera. Quando D Pedro partiu e Deodoro surgiu, o novo regime chegou sem que o povo soubesse. Na palavra de Aristides Lobo, assistiu àquilo bestificado. Os republicanos, ainda de madrugada, foram acordar o proclamador, que, resfriado e febril, saiu, contrariando a preocupação da mulher que o desejava literalmente na cama… Benjamin Constant levantou o braço e a espada dele, gritou Viva a República. Pronto, Brasil. Alea jacta est. Saía dali uma simbiose tropicalizada: o positivismo comtiniano, os fazendeiros desesperados, sem mãos para a lavoura; tudo isso somado ao descontentamento da classe militar, modestamente prestigiada após a Guerra do Paraguai.

( Foi o que levou Machado de Assis a pedir aos deuses que “afastem do Brasil o modelo republicano, porque esse dia – 15 de novembro de 1889 - seria o dia do nascimento da mais insolente aristocracia que o sol jamais alumiou” ).

As lideranças tiveram tempo mais que suficiente para corrigir o que ficou de errado, e melhorar o que veio imperfeito. A República, impulsionada pelo tempo, calejada nas experiências, para facilitar as correções chegou a dividir-se em fases distintas perante a História. A primeira, de 1889 à Revolução de 30; a segunda foi a Era Vargas; a terceira do Estado Novo, de 37 a 46; a quarta fase, do governo Dutra a 67. Depois, o período de ditadura militar até a Constituição de 1988. Sacolejado por fatos tão significantes, o regime podia estar melhor. Não é para qualquer uma, seja dito para reconhecer a capacidade da República brasileira de enfrentar solavancos: 19 rebeliões em quartéis, sete dissoluções do Congresso, quatro governos provisórios, duas renúncias de presidente, três impedidos de tomar posse, cinco foram depostos e dois sofreram impeachment.

Apesar de tudo isso, em 1993, num plebiscito, 66 % dos brasileiros lhe deram preferência, recusando a monarquia. Mas não a isentou dos pecados originais.

Diga-se, contudo, que sempre há tempo para melhorar o que pode ser melhorado. Esperança é a ordem do dia.

Direita é um fato

É preciso esperar que volte ao chão a poeira que a campanha dos candidatos levantou; que se esclareçam definitivamente as dúvidas quanto ao processo eleitoral, para que se chegue à pauta das questões remanescentes e importantes que os votos insinuaram. Por exemplo, o fenômeno da direita, que em Bolsonaro ganhou identidade, popularizou-se, absorveu metade do universo votante. Antes mesmo de terminar a disputa presidencial ela já havia ocupado ruas e praças. Mobilizou-se, o que, até então, era quase prerrogativa natural das forças da esquerda.

Tirante o mais importante, que foi o advento do novo governo e a retomada das linhas esquerdistas, a direita marcou seu espaço com identidade própria, chamou a si virtudes do patriotismo, vestiu-se de verde e amarelo. Seria erro subestimar isso, como se fosse mero acidente de percurso na disputa presidencial, porque, sob certos aspectos, ela vai além do presidente, talvez já acima dele, embora tenha sido sob os auspícios do atual governo que ascendeu, adotou bandeiras, slogans e palavras de ordem, além de propor algo esquecido há meio século: a volta intervencionista dos militares no campo das decisões políticas, o que a redemocratização reservara ao poder civil.

Sinais do fenômeno já havia. Relembrando junho de 2013, quando aconteceram movimentos difusos nas ruas, com muita presença de jovens, demonstrando insatisfação com os serviços públicos de transporte, moradia e saúde. Há quem considere que refletiam os mais pobres, das periferias urbanas. Para outros, contudo, ali surgia, com nitidez, a ação política da direita brasileira. Em seguida, vieram manifestações populares de apoio à operação Lava-Jato, desembocando nas grandes concentrações pedindo o impeachment da então presidente Dilma. Lembremo-nos que naquela época surgiram os manifestantes trajando verde e amarelo, com a camisa da seleção brasileira de futebol, entre outros símbolos nacionais, que se repetiram. 

Já em 2018, essa mobilização convergipara a campanha de Bolsonaro, que se elegeu presidente da República, logo assumiu a liderança da direita nacional. Num passo seguinte, cuidou de fortalecer os movimentos de rua que questionam o STF, a confiabilidade das urnas eletrônicas, e, paralelamente, o imperativo de uma pauta de costumes. Pelo que se vê de tão breve histórico, pode-se intuir que a direta continuará acionada em oposição à esquerda, mas também com apoio de seus representantes no Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e governos estaduais. Tudo em preparpara tentar a retomada do poder em 2026.

Ha, pois, independentemente de desejos em contrário, uma direita que desembarcou no espaço político brasileiro, carregando 58 milhões de votos; e é com esse cabedal que vai tentar colher os frutos dos desgastes do novo governo, que, como qualquer governo, terá desafios e peripécias a superar. Não escapa da velha batalha entre as ideias e os resultados.

(É sempre lembrado o desabafo de Aloísio Mercadante, que foi senador pelo PT: “Fomos cobrados de que nosso discurso na oposição não é o mesmo do governo. Por que não pode ser o mesmo? Porque a História nos cobra a necessidade de assumir a responsabilidade de governo”).

O Brasil de hoje, do pós-eleições, continua efervescente, com pessoas ocupando calçadas próximas aos quartéis do Exército, pedindo intervenção militar para impedir a posse do presidente eleito. Essas ocupações ocorrem em várias regiões, mas só questionam o resultado da eleição presidencial. Não querem mexer com governadores, senadores e deputados, porque aí os direitistas foram numerosos.

Mais importante, para que se evitem sustos próximos, é não deixar de reconhecer o fato de que a direita brasileira está ativa e demonstrou força política e eleitoral, o que dá folego para as futuras mobilizações de oposição a partir de 2013. Em apoio a essa constatação, considere-se a presença de um “partido militar”, que tem no comando os bolsonaristas. Sem generais do Exército, almirantes e brigadeiros a direita seria menor.

Com o protagonismo que tiraram das urnas, os direitistas não vão dispensar a oportunidade de cobrar e capitanear insatisfações. O que pode ser menos ou mais fácil, dependendo também de quem vai assumir o comando. Bolsonaro? Ou um dos militares que se saíram bem nas urnas?

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