terça-feira, 22 de novembro de 2022

 




Palanque em dupla face



(( Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil")) 

Quem disse foi De Gaulle, à sombra da Quinta República francesa. Campanha eleitoral faz-se com poesia; governa-se com prosa. Quis dizer o velho general não ser conveniente achar que tudo que se fala e se ouve deva ser levado a sério, quando é tempo de disputa de eleitores e de votos. Lição cabível para quem está no outro lado do oceano, onde um presidente eleito vem sendo cobrado, tanto pelos que lhe deram o voto, como os que não o apoiaram; mesmo assim, todos querem antecipar prestação de contas. Quanto aos exigentes da hora, vale a ressalva, caso figurem entre eles os que optaram por Lula, não porque morriam de amores por ele, mas apenas porque odeiam Bolsonaro. Estes vingaram-se, foram gratificados na tarde de 30 de outubro, quando se fecharam as urnas. Regiamente pagos, nada a reclamar.

Fácil de compreender, porém difícil de aceitar. O discurso de campanha tem de ser, necessariamente, muito mais um exercício de sonhos e boas intenções. Excetuados os dialéticos, poucos serão os eleitores deste país que prefeririam ouvir de seus candidatos apenas lamúrias, desesperos e previsões funestas; porque agrada mais é algo como a ampla democratização da picanha, cerco aos milionários, casa para todos e a população miserável com a garantia de três refeições diárias. Bom mesmo é o aceno de alegres paraísos iminentes, ainda que fictícios.

De maneira que – é preciso compreender bem isso - a responsabilidade pelo destino das promessas de campanha tem mão dupla, tanto é de quem as faz, como de quem as aceita as subscrevno momento da urna. Tal como o voto, igualmente responsável, tanto de quem o pede, como quem o dá. Em rigor, o peso acaba sendo maior para os que acolheas generosas propostas, no dizer da lição gaullista.

(No particular, o escritor e professor Abgar Renault parecia ser mais condescendente com o palanque dos candidatos, pois admitia que só mesmo o impossível é digno de ser sonhado).

Aberto o jogo entre as coisas ditas e as impossíveis, o caso Lula não é diferente. Ele apregoou o que alguns milhões de brasileiros queriam ouvir, metade de um Brasil obediente à mensagem socialista distributivistaAgora, no balanço da fatalidade do impossível, poderia se lembrar do que disse, certa vez, Artur da Távola, que foi senador pelo Rio de Janeiro: a arte da política e de um presidente é fazer a união do possível com o necessário. Nada mais que isso.

Sua excelência, o impasse

No emaranhado dos problemas em que o Brasil mergulhou, de cabeça, desde os primeiros momentos do ano eleitoral, cada um deles com origens e complexidades próprias, as perguntas e as expectativas vão se afunilando, cada vez mais insistentes quanto aos estreitos caminhos que podemos seguir para resolvê-los. Mas todos esses problemas, quando escapam de seus campos específicos, acabam desaguando num destino comum; vão para o mesmo lugar, frente a uma questão que neste exato momento não tem resposta convincente. É o fantasma do impasse. Estamos em apuros diante dele, porque, se olhamos para todos os lados, não conseguimos divisar o caminho a seguir. Por isto, quando se indaga sobre a definitiva dificuldade do país, confessemos: é o impasse, que nos parece um túnel cheio de esquinas, impedindo identificar a desejada luz de saída.

O que não quer dizer que faltem ideias originais, algumas de bondade inocente, como deseja, por exemplo, Michel Temer, ao sugerir a Lula convidar Bolsonaro a ajudá-lo na custosa travessia dos tormentos. No fundo, o ex-presidente certamente tenta praticar uma penitência, pois foi invenção sua o acesso do doutor Alexandre ao Supremo Tribunal, onde ele conseguiu montar a notável usina dos óbices que temos enfrentado.

Entende-se bem o beco escuro em que o Brasil tem tateado nas últimas semanas. É que os atores da crise acabariam esbarrando num mar de incoerências ou, pior, chegariam a um ponto em que, para eles, tanto difícil avançar como retroceder, dado que as posições já assumidas não lhes permitem rever o que disseram e as atitudes tomadas, sem graves prejuízos para a coerência. Tome-se, como primeiro exemplo, o presidente Bolsonaro, que se veria constrangido a acatar os números do processo eleitoral, depois de combatê-los com vigor, mostrando-se vítima de fraude descarada. Desdizendo-se agora, não estaria em situação confortável. Qualquer que fosse o passo que desse.

Para o Tribunal Superior Eleitoral, que contra o presidente da República investe sem piedade e sem limites, resta imensa responsabilidade que tem de assumir perante a nação: entrar no novo ano sem deixar mínima dúvida quanto à garantia de lisura do pleito, confrontando suspeitas do Exército e de 50 milhões de cidadãos descontentes. Eis outro impasse plantado: insistindo ou não na lisura, o TSE e seus ministros saem desprestigiados, independentemente do rumo que tomarem.

Ora, se ninguém tem merecido o direito de respirar aliviado nestes dias, não haveria de escapar o Senado Federal. Agora, mais do que nunca, porque é o momento de definir como se portar com a chegada de uma bancada majoritária simpática ao bolsonarismo, comprometida com o ideal de conter o ativismo judicial, fenômeno diante do qual o Congresso tem feito concessões, assistindo à sobrevivência de uma classe política cada vez mais dócil à ditadura togada. O que seria adequado aos senadores, velhos ou novos: renovar e avançar ou manter o recolhimento? Mais um entre os vários impasses.

Questionado, não diferentemente, figura o prestígio das Forças Armadas. Colocadas diante das urnas, deixaram evidente dupla preocupação: não esconder grandes dúvidas quanto à fraude, mas sem reconhecer claramente esse pecado eleitoral, que seria a razão da vitória de Lula, algo que não apetece aos quartéis. Também elas já não têm como reconsiderar o que foi objeto de insinuações, para conviver razoavelmente com o novo governo. Considere-se que, ao sugerir futuros aperfeiçoamentos no sistema eleitoral, os militares concordam, consequentemente, que há defeitos que comprometem. Cabem explicações mais claras, muito além do que até agora explicaram, embora disso se possa desdobrar mais um estímulo à crise.

Seria injusto, por fim, se uma conta desse rosário de impasses não se debitasse aos grupos políticos da esquerda. Voltar às ruas para tentar blindar o mandato de Lula, que vive sob intenso bombardeio, ou esperar que a direita esgote os ânimos e o fôlego? O que seria menos perigoso no momento? Nem ela mesmo sabe.

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