sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

 

O assunto era saudade



( Ao amigo Thales Ramos, que durante sete anos foi aluno brilhante do professor Augusto Gotardelo, no Granbery)



Uma chuvinha manhosa e fria impediu que o professor e fiel colaborador Augusto Gotardelo deixasse a Redação do “Diário Mercantil”, depois de colocar sobre a mesa o texto do dia seguinte, sobre Finados. Fiquei devendo àquela chuva intermitente agradáveis momentos de conversa com o grande mestre da língua, que há pouco me presenteara com seu “Português para Pregadores”, em três volumes, obra lapidar no gênero. De fisionomia muito clara e saudável, gentil no falar e rigoroso em suas convicções religiosas, era presbiteriano de uma época em que os pregadores preocupavam-se mais com o púlpito e menos com a política. Décadas depois, procurando dar fim a velhos papéis, acabei achando algumas anotações resumidas sobre a conversa que tivemos naquela manhã. Salvei-as do destino de coisas esparsas que ficaram dos tempos de jornal. Devo explicar que, nas melhores entrevistas, se eu ouvisse coisas interessantes, anotava à parte, em minha pasta, o que me valeu de alguns colegas, entre eles Carlos Henrique e Pedro Paulo, o epíteto de namorado de papéis mofados. Não era sem razão.


Mas, falávamos sobre Finados, e o professou opinou que talvez fizesse sentido chamá-lo Dia da Saudade. Soaria melhor, para definir e exaltar um sentimento que está na alma de todos, até mesmo nos corações empedernidos. Sobre finados, o que temos é apenas um feriado para rápida passagem pelo cemitério; ideia de coisa passada, esquecimento. Saudade não; saudade é presença doída, sem ter dia certo para acontecer.


Pois a conversa acabou, a chuva nos despediu. Muitos anos depois, fui saber que o calendário brasileiro guarda o 30 de janeiro como Dia da Saudade, sem que alguém explique a razão disso.


Tomo agora, aqui, alguns papéis que persistiram daquele encontro matinal com Gotardelo. Não foram poucas as reflexões do visitante, à espera que a estiagem chegasse. Ele tinha uma espécie de alma saudosa, que guardava memórias várias; uma razão a mais para que o admirássemos. Outros rascunhos contemporâneos não sei onde foram parar. Certamente morreram, como veio morrendo o tempo; como também morreu o jornal. Anotei: das coisas sobreviventes numa daquelas folhas de redação amarelada, sobreviveu a citação, por ele lembrada, de Telêmaco, na Odisseia: “se aquilo que os mortais mais desejassem, e pudesse ser conseguido num abrir e fechar de olhos, a primeira coisa que eu pediria aos deuses seria a volta do meu pai”. A saudade bem dita no clássico de Homero.


Etimólogo, latinista cuidadoso, o professor dispunha de todas as razões para aguçar a curiosidade com essa palavra mágica, que, bem examinada, não tem correspondência adequada aqui e em outros idiomas. Buscando socorro, citava, em vão, por exemplo, o grande Joaquim Nabuco, para quem “entre todos os vocábulos, o mais comovente é saudade, pois traduz a lástima da ausência, a tristeza das separações, toda a escala da provação de entes ou objetos amados. Por fim, a palavra que se grava sobre os túmulos”. Para o jurista e parlamentar, sob o mesmo sentimento sofre o exilado distante da pátria, da infância, dos dias idos. Muito bonito, mas sem uma palavra, uma única capaz de ser sinônimo.


Não são exclusividade da língua lusa algumas estranhas e originais palavras, como nossa dificuldade com saudade, que apenas consegue apenas explicar suas dores e consequências. No máximo, e já não é pouco, a gente sabe como senti-la. Os russos, por exemplo, têm de dizer que o seu “pochemuchka” é, mais ou menos, uma pessoa que faz perguntas demais. Mas isso nada mais é que uma aproximativa, problema que se acentua também quando um judeu quer nos explicar o significado do seu “shlimazl”, que procura, sem perfeição, definir a pessoa permanentemente azarada. O nosso popular pé-frio...


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Sem sair do campo da etimologia, em tempos passados li no jornal O Tempo matéria assinada por Paulo Pires, que me levou de volta à ciência de Gotardelo. Citando pesquisa realizada pelos britânicos da Today Translation, o autor afirma que essa nossa palavra foi classificada como a sétima entre as traduções mais difíceis; nesse particular aparelhada com os dois exemplos acima citados. Pelo menos, foi a conclusão a que teriam chegado centenas – cerca de mil – pesquisadores. Como traduzir saudade? Mesmo entre nós a sinonímia é complicada.


Também aí, a estranheza do tribuno e jurista pernambucano Nabuco, que tão bem lidava com o idioma: ”Saudade já não lembra a ideia de soledade; guarda apenas seu efeito íntimo sobre o coração. É realmente estranho que tal efeito, logo o mais profundo, da solidão, só ficasse assinalado na linguagem de uma dentre as raças humanas”.


Talvez diante dessa singularidade, poetas e prosadores passam o tempo esbarrando em dificuldades para encontrar a definição mais adequada, o sinônimo menos imperfeito. Muito acabaram desistindo.


De volta a Gotardelo e às anotações que não rasguei e que o tempo não consumiu, ficou a lembrança de que muitos foram os escritores que incursionaram tentativas de definição de saudade. E vem logo a citação inevitável de Guimarães Rosa em seu “Ave Palavra”: “a saudade é um sonho insone, é o coração dando sombra. Ninho de ausências”.


Sem sair da pena do gênio mineiro, diria melhor ainda quando definiu a tristeza da garça, de volta do pântano, em fim de tarde sem a companhia do macho, que acabava de ser mortalmente abatido por um caçador: “o voo da garça sozinha não é a metade do das duas garças juntas: mas só o pairar da ausência, a espiral de uma alta saudade”.


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Essa palavra, com todos os seus mistérios, permite mais um, nem sempre citado. Ela é valorada, muitas vezes, com a inflexão aplicada por quem a pronuncia. Na voz e na entonação ganha maior ou menor intensidade. Em 1953, no filme Cangaceiros, de Lima Barreto, Vanja Orico foi o exemplo clássico de quem cantou, no mais fundo do agreste bárbaro, a dor da ausência, no poema simples de Zé do Norte: “Sodade, meu bem sodade; sodade do meu amor”. Para, logo depois, queixar-se de que o amado “nem uma carta deixou”. É quando a ausência consegue padecer unindo solidão e desesperança.


Solidão e desperança também fazem sentido quando vem à lembrança o sentir coletivo de um padecimento causado pela distância indesejada. Raramente se fala disso, embora se manifeste, a um só tempo, pelo coro das muitas vozes de um povo inteiro. Pois, quem cuidar dessa particularidade certamente haverá de se lembrar da famosa ópera de Giuseppe Verdi, imortalizando a saudade doída que os escravos hebreus guardavam da terra perdida, tão longe. A dor aí, como desejou o mestre italiano, voava em forma de pensamento nas asas douradas.


Mas a capacidade de voar nem sempre acontece. É quando a saudade prefere se fechar no coração de seu dono. Agripa Vasconcelos, em “Gongo-Soco”, explica isso: ela “trabalha melhor na solidão das noites, revolve as cinzas que estão na alma. Modo de sofrer bastante conhecido dos que vivem sós”. Verdade. Muitas vezes, nasce e morre sem que outros saiba de sua existência; domínio exclusivo de quem com ela padece no vazio de dias que custam a passar.



Wilson Cid


janeiro 2024

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