terça-feira, 31 de março de 2020



JF e suas epidemias


A paisagem vazia das ruas da cidade, só raramente quebrada pelos poucos que vão às compras indispensáveis, é o remédio adotado como forma de conter o avanço do coronavírus, sem que falte o protesto dos que, encorajados pelo presidente Bolsonaro, acham que melhor é enfrentar o mal invisível e não a certeza do desabastecimento e do desemprego, que são o castigo inevitável da economia recessiva. As pessoas têm sentido o isolamento. É como se estivéssemos num campo de concentração. Júlio Zanini, acostumado à agitação dos eventos sociais, telefona para dizer que fica deprimido quando vai à janela e depara com o deserto do asfalto e das calçadas. Para acentuar o ruim desse clima, cada autoridade sanitária tem sua própria previsão para o fim do exílio involuntário.

O aborrecimento talvez se faça menor se cada juiz-forano olhar para outros tempos, e ver que já tivemos tempos piores. O passado consola ou, pelo menos, ajuda a enfrentar o desafio do momento.

O ex-prefeito Procópio Filho contava os horrores da Gripe Espanhola no ano de 1918. Era estudante no Rio de Janeiro, e, quando viu caminhões e carroças carregados de cadáveres, correu para a gare, embarcou no trem Noturno para Juiz de Fora, mas a gripe viajou mais rápido. Já estava fazendo as primeiras vítimas, que no final do balanço sinistro eram 651 mortos. A Espanhola, que acabou com quase metade da população do mundo, foi-se daqui cumprindo a tradição das epidemias: terminou inesperadamente, da mesma forma como havia chegado. Escreveu Paulino de Oliveira que em sua rua, Paula Lima, os corpos ficavam nas janelas à espera do caminhão da prefeitura que os recolhesse.


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Temos velha intimidade com manifestações epidêmicas na crônica urbana de Juiz de Fora, cidade fácil presa para essas doenças, porque tinha a facilitá-las os esgotos a céu aberto, córregos imundos, poças de água deixadas pelas chuvas e os constantes vazamentos do Paraibuna. Tudo bem posto para o progresso de varíola, febres tifóide e palustre. Já dispúnhamos de um código de posturas, mas poucos o obedeciam.
A primeira epidemia, em 1855, durou quase meio ano. Nunca se soube exatamente quantos morreram, porque a grande maioria da população era formada de escravos da zona rural, e as estatísticas oficias não tinham maior apreço por eles.
Sucederam-se as epidemias de 1871, 1874 e 1885, esta agravada com a promiscuidade em que viviam os 900 italianos na Hospedaria dos Imigrantes, onde hoje está o quartal da Polícia Militar. As febres de sempre, poucos remédios e precários recursos sanitários. A tifóide chegou pesada, quando já estávamos no outro século: 1921.



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O pior ainda estava por vir. O terrível colera morbus desembarcou em 1899; e para mostrar que não chegou para brincadeira, foi logo matando uma das principais figuras da cidade, José Cândido Americano, agente do telégrafo, um jovem de apenas 23 anos. A chamada “febre de mau caráter” começou a devastação, e sem que muitos nem soubessem o que estava acontecendo, morreram 47. No dia 27 de maio o Diário de Minas estampava a manchete “Juiz de Fora vive terrível calamidade”, e pediu que o governo estadual socorresse a população. O governador Silviano Brandão mandou 15 contos, logo seguido de apelo por mais 30 contos. Os trens saíam lotados e muitas famílias corriam para a Colônia de São Pedro, onde a incidência era visivelmente menor, ao contrário dos lugares onde se morria mais facilmente - ruas Santa Rita e Marechal Deodoro.
Conta o historiador Jair Lessa: “Sinos das igrejas tocavam o dia inteiro, até que pararam, porque a morte não era mais novidade. Supôs-se que a culpa era dos sanitários que provocavam gases por baixo da terra”. Para outros a febre saía dos assoalhos, do que veio a lei proibindo casas com porões.
A Câmara serviu de hospital de emergência, obrigada, para tanto, a fazer a caiação das paredes, e foi além: alegando emergências, pediu aumento de 30% nos impostos e redução de 10% nos vencimentos dos servidores.
Como se disse, as epidemias chegam e vão embora sem maior cerimônia, e três meses depois, 6 de julho, uma banda de música passava pelas ruas centrais comemorando o fim a epidemia. A de 1889 foi assim; mas, se deixou estragos, também inspirou os médicos na criação da Sociedade de Medicina, que tinha como principal missão o combate às insalubridades, num esforço para despedir de vez esses males.






O artigo “O que esperar desse governo” está publicado hoje no “Jornal do Brasil”



O que esperar desse governo

Não fossem essas horas bicudas que nós e o mundo inteiro estamos vivendo, nem avultassem as prioridades brasileiras disputando primazia, o presidente Jair Bolsonaro certamente homenagearia a data, que marca os 56 anos do golpe militar que derrubou o governo João Goulart. Em tempos mais tranquilos recordaria aquele 64, que, para ele, salvou o Brasil, ainda que à custa do colapso das instituições e dos direitos. Hoje restam poucas cabeças brancas que foram protagonistas ou vítimas de uma temporada de nenhumas liberdades; quase tudo mergulhado no esquecimento. Mas na sua historiografia Bolsonaro já retirou aquele episódio da quarentena, e diagnostica os que então sofreram como portadores de leve mal-estar; gripizinha político-institucional sem maior importância.

Bem distante daquele distante 31 de março, quando era apenas menino de nove anos, o presidente não tem mesmo o que comemorar; diferentemente, o que lhe sobram são pesados desafios, cuja extensão e profundidade nem ele nem qualquer de nós tem como avaliar, se nos basearmos em um mínimo de premonição. Não seria demais afirmar – e o ministro Mandetta pode confirmar – que nunca estivemos, no campo sanitário, afora 1918, diante de tantas dúvidas; tão abrangentes, que estão a nos condenar a todos, como navegantes de um mesmo barco sacolejado sob tempestade, segundo a metáfora baseada em Marcos, que o Papa Francisco acaba de repetir, solitário, numa caminhada pela praça deserta. Na verdade, tudo que se tem predito baseia-se mais em esperança que propriamente na capacidade de conter o mal.

O primeiro trimestre do ano, portanto, vai se recolhendo, sem deixar ao governo a garantia de melhores dias. E, se pretender atingi-los, mister se faz que seus homens e mulheres adotem um mesmo discurso, um idioma de unidade coerente. Sem essa torre de Babel que está confundindo Brasília e todo o país fabril, onde o cume foi a divergência pública e oficial entre o presidente e seu vice quanto à conveniência do recolhimento social como forma de obstruir o vírus. O palácio pratica línguas diversas, sem dispor de pacificador eficiente nem poliglota político. (Já é antigo o velho brocardo sugerindo que em casa onde todos gritam certamente ninguém tem razão).

Já agora nesta semana, sem delonga, o presidente e sua equipe têm de se posicionar sobre uma gradual e cuidadosa liberação das forças de trabalho, como forma de impedir solução de continuidade nas engrenagens da produção. Bolsonaro gostaria da retomada da normalidade, também desejada pelos pequenos e médios produtores, que acenam com um país sinistro e mergulhado na fome e no desemprego. Talvez possam voltar ao trabalho os mais jovens, formadores da população menos vulnerável. Mas também aí reside um conflito declarado com virologistas e epidemiologistas, que ainda preferem apostar na desmobilização social como forma de frustrar o contágio, já definido como o acessório principal da marcha pandêmica.


Não bastasse esse elenco de desafios, é preciso também pensar na indispensável rearrumação das relações com o Congresso Nacional, onde a acidentada convivência pode levar ao inconveniente de atrasar ou mesmo inviabilizar a tramitação de reformas preferenciais. Nota-se aqui um fenômeno interessante: no diálogo entre os poderes Executivo e Legislativo Bolsonaro gosta de arremessar bolas violentas, e o presidente da Câmara prefere não se desviar delas, ao contrário dos políticos mais experientes. É um jogo em que atacante e zagueiro têm perdido pontos preciosos. O quadro é preocupante, porque pode acabar em fissuras profundas; mais ainda se se mantiver o calendário eleitoral, porque nesse caso priorizam-se outros interesses, e os agentes se dispersam em busca do abrigo das urnas. Para apimentar tal cenário, assistimos aos desencontros do Planalto com os governadores, uma peleja que nada tem a ver com os princípios da Federação. Brigam por causa do coronavírus, como se fossem politicamente imunes a ele.


Os estragos sanitários e econômicos que ficarão no caminho, quando o mal bater em retirada, não há como mensurá-los totalmente. Mas não há quem duvide que serão um monte significativo. E se este primeiro semestre se revelar sinistro roteiro para o ano todo, o melhor que o governo pode desejar é que as coisas não piorem e não avancem além de onde já chegaram. Seja como for, o primeiro passo para trabalhar e impedir o pior é botar certa ordem dialogal em suas entranhas.



terça-feira, 24 de março de 2020






Depois da tempestade


(( Wilson Cid hoje no ”Jornal do Brasil” ))

O que anima a esperança, eterna sobrevivente das horas de aflição, é que o coronavírus se despeça do mesmo jeito como as pestes que o antecederam; isto é, saindo sem maiores ruídos e com rastros menos trágicos que esses que estamos vendo hoje mundo afora. E já que aconteceu, que deixe lições e temas para a sociedade refletir, depois de mostrar que a economia, a produção e a vida das pessoas sempre foram valores insuficientes para barrar um vírus, mal invisível, viajante do espaço que a vista humana nem é capaz de alcançar. Enfermidades como esse novo matador mostram-se poderosas, solapam e matam; tanto faz os miseráveis de aldeias africanas ou os países mais arrogantemente poderosos. Tomara, pois, que, passada a tempestade, com ela aprendamos alguma coisa. Seria a única forma de darmos como vencida o visitante inóspito, que veio da China e desembarcou nos portos de todos os continentes.

É possível que o mundo melhore sobre as ruínas deixadas pelo sopro do grande malfeitor. Ainda agora, procurado rever antecedentes que justifiquem reflexão, deparo com Edwin Muller ao historiar o que se auriu da Peste Negra, que em 1348 matou metade da civilização então conhecida: Veio o depois dela: “Os escassos trabalhadores sobreviventes ficaram mais eficientes, remontam à época melhoramentos dos métodos agrícolas e industriais, operou-se uma renovação das Artes e das Ciências, surgiu novo espírito de investigação, um fantástico estímulo à busca do saber”. Em seguida, a Europa atingiria um dos pontos culminantes da História, com a Renascença. É assim. Quando passam as tormentas chegam as bonanças. Tomara que isso se repita.

O Brasil começa a avaliar questões mais profundas e decorrentes, sem estarem ausentes algumas correntes desejosas de tomar carona no corona e rever o calendário eleitoral, considerando que os pleitos de outubro poderiam não ocorrer, diante dos prazos estabelecidos pela legislação e as resoluções do TSE relativas a filiação partidária, além das mudanças de partido, prazos para a organização de convenções, a pré-campanha, os registros de candidaturas e demais providências eleitorais - tudo definitivamente comprometido em função da pandemia. Como também surge nos meios políticos a retomada da proposta de prorrogação dos atuais mandatos de vereadores e prefeitos. Outros defendem o remanejamento do calendário, de forma que o pleito se transfira para novembro.

Mesmo que para alguns isso tenha cheiro do oportunismo entrando pelas narinas da democracia, tudo certamente há de depender da extensão dos danos a serem causados pelo Covid-19, com base em prognósticos para a crise econômica; certamente assustadores, com repercussão na administração pública em todas as esferas de poder. O orçamento federal vai ser alterado, os recursos precisam ser realocados e as verbas para a saúde pública exigem maior robustez; além do que, a economia do país tem de socorrer empreendimentos que gerem empregos e rendas, graças ao agravamento do processo de recessão.

Ante tal conjuntura, a realização das eleições municipais mergulham na berlinda: por um lado, dificuldades na realização de campanha pelos candidatos; de outro lado surge o choque da realidade com que defrontarão os futuros prefeitos, condenados a administrar o caos pós-pandemia; e com parcos recursos.

Diante desse quadro também surge a tese de coincidência das eleições no ano de 2022. Para muitos ela é propícia, motivada mais agora pela gravidade da situação econômica. Os defensores de eleições gerais, do vereador ao presidente da República, têm como forte argumento a necessidade de se limitarem os gastos em tempo de vacas magérrimas. Outra preocupação seria a escassez de recursos para a campanha, já que o fundo de financiamento eleitoral haverá de esvazia-se, graças ao estado de calamidade.

Tudo pode ganhar espaço no debate político; mas antecipar aquelas propostas, quando ainda respiramos clima de profundas incertezas, pode ser algo inoportuno, pois no imediato nem temos como avaliar os rastros que ficarão do grande mal que está de passagem.

A crise atual, como foram as congêneres passadas, haverá de ser como parteira de uma nova vida. Outras condutas são esperadas dos líderes, quando a tempestade sumir no horizonte. Que possamos encontrar saídas de melhor proveito para o país, sem oportunismos e sem pretender explorar politicamente os acidentes que o corona arrastou consigo.


terça-feira, 17 de março de 2020




O júri na berlinda


 (( Wilson Cid hoje no "Jornal do Brasil" ))


Diante de uma escala de prioridades que vai se estendendo, cada vez mais, na pauta da Câmara, torna-se difícil, quase impossível, prever quando os deputados poderão dedicar tempo e atenções à recente sugestão do presidente do STF para ampla reforma nos mecanismos do tribunal do júri, carente, como não se nega, de retoques que possam contribuir para aperfeiçoá-lo. Muitos projetos de reformas básicas que antecederam tal iniciativa, todos reclamando tramitação, fato somado à natural lerdeza do Congresso em ano eleitoral, associam-se para condenar a proposta do ministro José Antônio Dias Toffoli a sucessivos adiamentos. Nada, contudo, suficiente para negar importância à matéria, pois o velho tribunal julgador de crimes dolosos contra a vida não pode mais manter-se alheio às mudanças impostas pelo tempo.

Há argumentos vários que permitem imaginar longas discussões sobre o modelo consagrado pela Justiça, a começar pela incidência de 30% de prescrições, a limitação do número de testemunhas, a desburocratização de procedimentos, sentença de pronúncia, entre outros detalhes que não escaparam do texto de justificação levado ao presidente da Câmara. São detalhes que logo se alinham para previsão de longa morosidade, desta também vítimas as incontáveis proposituras que andam pelas comissões por três anos ou mais; idêntico tempo de espera do qual não deve escapar a contribuição encaminhada pela mais alta corte do país.

Perpetuado como inovação no texto da Constituição da Inglaterra em 1215, certamente que ao júri cabem revisões recomendadas pela própria experiência. No Brasil, já tendo entrado e saído das Constituições, com maior ou menor disciplinação, sempre teve quem o aplaudisse, como a mais acertada forma de dar à sociedade o direito de julgar delitos que a ofendem; como também coleciona críticos severos, sem que faltem entre estes os que lançam mão da ironia. Para Millôr Fernandes, por exemplo, “chama-se tribunal do júri a um grupo de pessoas que, por não terem prestígio para escapar dele, assume o poder de condenar qualquer réu”…

Há os que veem o declínio desse instituto, por considerá-lo superado para o Direito Comparado, como revelou, em estudo publicado no primeiro trimestre de 1971, o professor Hamilton de Moraes e Barros, da Universidade do então Estado da Guanabara. Ele recorre à própria ancianidade do Direito para elaborar suas reservas a esse sistema de julgamento. E indaga, no ensaio acima referido, quem poderia afirma que o tribunal do júri aplica bem a lei penal?  Seria capaz de aplicá-la tão bem quanto o juiz togado, este com maior independência?

O professor Moraes e Barros foi além. “Julgar é atividade intelectual que exige recolhimento e concentração. O júri é a negação disso. O espetáculo, a encenação, as solicitações múltiplas da atenção do jurado, o cansaço, longa duração dos julgamentos, tudo conspirando contra um bom julgamento, meditado, ponderado”. É a sorte de um criminoso diante do colegiado, não pela via da decisão monocrática, como observou.

Os detalhes críticos excitam dúvidas entre juristas, mas não tiveram espaço nas preocupações do presidente do Supremo, pois, para ele, entendido ficou que o tribunal constituído por cidadãos deve sobreviver, e a atribuição legislativa limita-se a tentar remover o que parece superado ou equivocado. Mas a iniciativa de Toffoli, ainda que disputando tempo e vagar entre tantas preocupações, tem de ser considerada, mesmo pelos que condenam o sistema em vigor e preferem vê-lo extinto. Ora, nada impede que seja aperfeiçoado o que já existe, porque nesse e em outros campos da Justiça o que se observa é o grave descompasso entre a velocidade da vida contemporânea e a marca das atenções jurisdicionais. Se o ministro se preocupa com isso, eis o suficiente para ser ouvido.

segunda-feira, 9 de março de 2020


(( Wilson Cid hoje no ”Jornal do Brasil” ))



O espaço feminino


O domingo merecia ter sido melhor aproveitado para ampliar discussões e estudos sobre a contribuição feminina nos destinos da sociedade brasileira. Afinal, transcorria o Dia Internacional da Mulher, e, pelo que se viu, foram escassas as iniciativas nesse campo. Em países vizinhos o calendário acabou ganhando maiores atenções. Se efetivamente essa parcela da população tem se organizado em permanentes lutas por seus direitos, e mesmo que tenham acontecido várias conquistas nas últimas décadas, não é menos verdade que ainda há muito a ser alcançado e um longo caminho a percorrer. Apenas para desenterrar um dado sugestivo: no Brasil, como dão conta pesquisas e análises de cientistas políticos, nada além de 16% das candidatas nas eleições que transcorreram em 2018 foram eleitas. Nos dois anos anteriores as urnas municipais haviam aprofundado a tendência machista do eleitorado, pois a elas atribuíram-se pálidos 11,8%. Um claro contraste com o fato de o gênero representar 52% dos habitantes do país. Seja visto que para isso o desinteresse delas também colaborou, e que reflete, paralelamente, sua modesta confiança na própria capacidade de influir e decidir. Eis a questão que salta aos olhos como a mais instigante.

Não há como ignorar que a democracia podia estar melhor no Brasil se elas estivessem mais representadas no cenário político; de forma a oferecer à sociedade o patrimônio de valores que constroem nos lares, no trabalho, na formação de gerações, em nome da desejável sociedade minimamente igualitária, justa e inclusiva; ou, pelo menos, em um universo menos desigual. Há quem negue maior relevo a isso, mas parece que a adoção de ações afirmativas de inserção e incentivo da mulher na política poderia contribuir para maior igualdade nos direitos comuns.

Há muito, por suas mãos, a fazer, como se lia ontem em uma publicação das Edições Paulinas: essa participação “traria mais discussões sobre os temas que hoje tanto afligem a população: combate à violência, acesso ao emprego, melhora no direito à saúde e a atendimentos especializados”.

É forçoso reconhecer que um dos temas atuais no estudo da ciência política é tornar mais elástica a participação feminina na política. Porque qualquer análise que se faça demonstra que está cristalizada sua sensível inferioridade nos destinos do país. É necessário, então, persistência nas cotas eleitorais que lhes são des1tinadas, que, como passo inicial na legislação, já são designados 30% de espaços para terem candidatura nos partidos, quaisquer que sejam seus programas ou propostas ideológicas. Preciso perseverar também, no mesmo percentual, os recursos de campanha que já lhes é reservado no fundo eleitoral, sem embargo dos eventuais desvios e camuflagens, como se constatou na última eleição. (A Justiça tem analisado vários processos das "laranjas" que figuraram nas chapas dos partidos, com a finalidade de captação de recursos pela via da fraude). Não podem se prestar a isso.


Sendo vítimas da malandragem de dirigentes partidários ou com eles coniventes, e mesmo diante da prática de desvios, é necessário considerar que se sobrepõe a tudo a garantia constitucional da presença da mulher na política. E constitui tarefa da Justiça manter-se vigilante para garantir esse direito. A política de cotas tem como fundamento a reserva de vagas para o gênero minoritário em termos de participação; mas, mesmo assim, os espaços na composição de chapas estão longe de assegurar melhores caminhos para a elevação dessa representação política na vida da sociedade brasileira.

O que fazer? Talvez sejam muitas as respostas dos observadores a tal indagação; mas, com toda certeza, o remédio de melhor eficácia possamos tirar das entranhas da própria política, que precisa valorar-se, torna-se mais atraente à parcela feminina da nação. Se um dia isso for possível talvez as casas legislativas deixem de ser os fechados “clubes do bolinha” que temos hoje.




terça-feira, 3 de março de 2020



(( Wilson Cid hoje no "Jornal do Brasil")) 


Charada à direita


Compreender a intimidade de alguns problemas políticos da atualidade brasileira não está entre as questões mais simples. Diga-se, de passagem, que nada há de novo em tal afirmação, porque já a antecedia a percepção de inúmeros analistas. Na verdade são questões que se revelam sinuosas, favorecendo dúbias interpretações e não poucas incertezas, principalmente quando ocorre de o jogo do poder apresentar-se em forma de charada. É o que se observa, por exemplo, a partir da constatação do desejo cada vez mais latente do presidente Bolsonaro de governar sem maiores restrições e, se possível, acima de incômodos dos contrários. Então, sob a forma de enigma, tomemos o raciocínio imediato sobre a realidade da composição do Congresso Nacional, onde é conservadora a maioria absoluta dos seus membros. A Câmara dos Deputados e o Senado, as duas casas que o compõem, são dirigidos pelo DEM (ex-PFL), originalmente a ARENA (partido de direita no regime militar). Fácil concluir, portanto, sem embargo de restrições nas relações com o presidente, que se julga manietado, o que está em questão é que a luta pelo poder ocorre dentro do campo conservador; apenas dentro dos limites de seus interesses. Sim, porque sem ter conseguido superar totalmente o golpe que sofreu com as urnas de 2018, a esquerda ainda permanece fora do campo onde se trava o jogo imediato. Suas lideranças pouco têm conseguido além de pretexto para o discurso na disputa cultural de militantes de formação direitista. Conclusão inevitável é que quem está sob ataque, agora, é o baixo clero do Legislativo, que foi o espaço do deputado Jair Bolsonaro nos sete mandatos que exerceu antes de tornar realidade o projeto presidencial. Caindo no Executivo, as trincheiras mudaram de posição.

Diante de tal peculiaridade, os rumos da batalha intestina que travam os seguimentos direitistas ainda não autorizam previsões consistentes sobre o que está por acontecer.

As lideranças militares apoiam o projeto Bolsonaro desde a última campanha eleitoral. Sejam membros das forças armadas ou das forças de segurança públicas estaduais, elas nunca deixaram dúvidas quanto à sua dedicação. Mas seriam elas, sob a bandeira dessa lealdade, suficientemente fortes e prestigiosas para empresas mais arrojadas ou um avanço sobre as instituições, mesmo ao sabor do pretexto da governabilidade? Outra fortaleza da direita são as elites econômicas do país. Diferentemente do comportamento que tiveram em 64, estariam dispostas a dar seu aval a qualquer aventura golpista?

O presidente deve saber que uma contestação mais vigorosa sobre a autonomia do Legislativo sempre comporta algum risco, mesmo quando se contar, nesse particular, com a simpatia simplista da parcela da opinião pública que vê inutilidade nos mandatos parlamentares. Na década de 60 o presidente Jânio Quadros escorregou e caiu, quando pretendeu levar o povo às ruas para bradar contra o “clube de ociosos”, como gostava de definir o Congresso. O foco do movimento em curso também embute uma reprimenda contra o Congresso Nacional, a partir dos presidentes Rodrigo Maia (Câmara) e Davi Alcolumbre (Senado).

Se nesse quadro faltasse uma curiosidade, bastaria lembrar que muitos parlamentares bolsonaristas apoiam um anunciado ato político contra o poder Legislativo, do qual são parte e para o qual foram eleitos recentemente...

São reflexões que surgem a partir da iniciativa do presidente da República de incentivar as manifestações de rua, em todo o Brasil, marcadas para domingo, 15 de março; o que acontecerá se a marcha do coronavírus não desaconselhar aglomerações desse tipo, perfeitas condutoras de contágio.

O tempo quaresmal recém-começado não consegue dissimular as dificuldades institucionais em curso. Oxalá passem com a Páscoa, e melhores dias surjam no cenário político.