O
que esperar desse governo
Não
fossem essas horas bicudas que nós e o mundo inteiro estamos
vivendo, nem avultassem as prioridades brasileiras disputando
primazia, o presidente Jair Bolsonaro certamente homenagearia a data,
que marca os 56 anos do golpe militar que derrubou o governo João
Goulart. Em tempos mais tranquilos recordaria aquele 64, que, para
ele, salvou o Brasil, ainda que à custa do colapso das instituições
e dos direitos. Hoje restam poucas cabeças brancas que foram
protagonistas ou vítimas de uma temporada de nenhumas liberdades;
quase tudo mergulhado no esquecimento. Mas na sua historiografia
Bolsonaro já retirou aquele episódio da quarentena, e diagnostica
os que então sofreram como portadores de leve mal-estar; gripizinha
político-institucional sem maior importância.
Bem
distante daquele distante 31 de março, quando era apenas menino de
nove anos, o presidente não tem mesmo o que comemorar;
diferentemente, o que lhe sobram são pesados desafios, cuja extensão
e profundidade nem ele nem qualquer de nós tem como avaliar, se nos
basearmos em um mínimo de premonição. Não seria demais afirmar –
e o ministro Mandetta pode confirmar – que nunca estivemos, no
campo sanitário, afora 1918, diante de tantas dúvidas; tão
abrangentes, que estão a nos condenar a todos, como navegantes de um
mesmo barco sacolejado sob tempestade, segundo a metáfora baseada em
Marcos, que o Papa Francisco acaba de repetir, solitário, numa
caminhada pela praça deserta. Na verdade, tudo que se tem predito
baseia-se mais em esperança que propriamente na capacidade de conter
o mal.
O
primeiro trimestre do ano, portanto, vai se recolhendo, sem deixar ao
governo a garantia de melhores dias. E, se pretender atingi-los,
mister se faz que seus homens e mulheres adotem um mesmo discurso, um
idioma de unidade coerente. Sem essa torre de Babel que está
confundindo Brasília e todo o país fabril, onde o cume foi a
divergência pública e oficial entre o presidente e seu vice quanto
à conveniência do recolhimento social como forma de obstruir o
vírus. O palácio pratica línguas diversas, sem dispor de
pacificador eficiente nem poliglota político. (Já é antigo o velho
brocardo sugerindo que em casa onde todos gritam certamente ninguém
tem razão).
Já
agora nesta semana, sem delonga, o presidente e sua equipe têm de se
posicionar sobre uma gradual e cuidadosa liberação das forças de
trabalho, como forma de impedir solução de continuidade nas
engrenagens da produção. Bolsonaro gostaria da retomada da
normalidade, também desejada pelos pequenos e médios produtores,
que acenam com um país sinistro e mergulhado na fome e no
desemprego. Talvez possam voltar ao trabalho os mais jovens,
formadores da população menos vulnerável. Mas também aí reside
um conflito declarado com virologistas e epidemiologistas, que ainda
preferem apostar na desmobilização social como forma de frustrar o
contágio, já definido como o acessório principal da marcha
pandêmica.
Não
bastasse esse elenco de desafios, é preciso também pensar na
indispensável rearrumação das relações com o Congresso Nacional,
onde a acidentada convivência pode levar ao inconveniente de atrasar
ou mesmo inviabilizar a tramitação de reformas preferenciais.
Nota-se aqui um fenômeno interessante: no diálogo entre os poderes
Executivo e Legislativo Bolsonaro gosta de arremessar bolas
violentas, e o presidente da Câmara prefere não se desviar delas,
ao contrário dos políticos mais experientes. É um jogo em que
atacante e zagueiro têm perdido pontos preciosos. O quadro é
preocupante, porque pode acabar em fissuras profundas; mais ainda se
se mantiver o calendário eleitoral, porque nesse caso priorizam-se
outros interesses, e os agentes se dispersam em busca do abrigo das
urnas. Para apimentar tal cenário, assistimos aos desencontros do
Planalto com os governadores, uma peleja que nada tem a ver com os
princípios da Federação. Brigam por causa do coronavírus, como se
fossem politicamente imunes a ele.
Os
estragos sanitários e econômicos que ficarão no caminho, quando o
mal bater em retirada, não há como mensurá-los totalmente. Mas não
há quem duvide que serão um monte significativo. E se este primeiro
semestre se revelar sinistro roteiro para o ano todo, o melhor que o
governo pode desejar é que as coisas não piorem e não avancem além
de onde já chegaram. Seja como for, o primeiro passo para trabalhar
e impedir o pior é botar certa ordem dialogal em suas entranhas.
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