Brasil sangra no ringue
(( Wilson Cid, hoje, no ”Jornal do Brasil” ))
A impressão que se tem é que o país acabou transformado num imenso ringue, onde todos digladiam; e sob a expectativa de que dificilmente saia dele um vencedor, no desejado momento em que alguma coisa fizer soar o gongo. Certo é que o Brasil inteiro sangra no vergonhoso pugilato em que estão se batendo, cada vez mais, os homens e mulheres dos três Poderes instituídos. Eis um tempo de perplexidades, que a gente sabe quando começou, como se agrava, e ninguém consegue prever sua duração. E nada mais falta para sentir que, sob o desamparo das lideranças, chegamos ao ponto em que a orfandade nacional é algo comovente. Estamos sós numa dolorosa via-crucis.
O tribunal maior da Justiça, onde em tempos normais a nação foi buscar abrigo para suas últimas esperanças, cedeu à tentação de medir forças e disputar espaços com o Legislativo e com os homens do Executivo, estes desconfiados dos reais propósitos dos juízes, prestimosos ao lançar holofotes sobre os tombos dos outros, mas sem ânimo nem coragem para encarar seus próprios tropeços. E nisso contribuem vigorosamente para o festival de retaliações a que hoje se assiste, ajudando a empurrar o Brasil para esse pântano de perplexidades em que vamos nos afogando; e afundando conosco as escassas esperanças que teimavam em sobreviver no nosso dia a dia. Graças às suas bênçãos, o brasileiro, já desacreditado das leis, também vê criminosos celebrando o prêmio da impunidade, na estanha coincidência de sete dos 11 ministros vestirem toga por obra e graça de quem hoje aliviam de acusações sobejamente demonstradas.
Já o nosso pobre Congresso, desacreditado em antigos desacertos, cada dia empenha-se mais em aprofundar a vala onde vão se apagando as últimas réstias do prestígio popular, que tinha obrigação de preservar. De tal maneira, que algumas figuras ilustres, de tão excepcionais, parecem hoje recolhidas, como que envergonhadas da multidão que as cerca. Nesse passo, vão todos padecendo nas galhofas, o que é coisa para entristecer.
(( Certa vez, disse Gustavo Capanema que nosso Congresso é formado de 10% de parlamentares qualificados, 10% de bandidos, 80% de gente normal. Seria ainda hoje essa a proporcionalidade? Convém duvidar.))
Num outro lado do ringue que se armou, longe de pontificar na obra da conciliação, para quebrar tensões e desarmar os espíritos, o presidente Bolonaro, ao contrário, participa do espetáculo sombrio, com punhos cerrados; e, com renovada insistência, vem pedindo aos torcedores que lhe mostrem o momento certo de aplicar o golpe de força que vai nocautear os adversários, talvez à revelia das regras do jogo democrático. Com tal disposição, chegou a chamar para o desforço um jovem senador, cuja compleição jamais denuncia qualidade de boxeador competitivo… A que ponto chegamos.
Não espanta, portanto, que, pouco empenhados na remoção de divergências para vencer uma tragédia sanitária que vem matando por atacado, prefiram todos se dedicar à caça aos culpados. E nisso se comprazem.
Mas o que fazer?
Amanhã, dia consagrado ao sacrifício de Tiradentes e à memória do conciliador Tancredo Neves; véspera da comemoração do Descobrimento, talvez valesse a pena que os homens e mulheres dos três Poderes refletissem sobre o que devem fazer – e com a devida urgência – para recolocar o país em salutar clima da paz, cada qual assumindo a cota de responsabilidade que lhe cabe nessa missão, que já tarda.
Bíblia e Estado Laico
Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal derrubou ato do governo do Amazonas que obrigava escolas e bibliotecas a terem exemplares da Bíblia disponíveis. A obrigatoriedade é, de fato, passível de discussão, mas não parece cabível que a decisão tenha se instruído com base na laicidade do estado. Porque essa obra, a mais monumental entre todas, com seus 46 livros do Velho Testamento e 27 do Novo, é a mais completa história da marcha das civilizações, independentemente da fé que tenham professado os povos antigos e modernos, e ainda professem os contemporâneos.
A Bíblia não guarda apenas a relação dos povos com um ou muitos deuses, e tem a particularidade de cuidar de duas religiões, o cristianismo e o judaísmo. Vai muito além. Em suas páginas estão gravadas as experiências das nações na organização das sociedades, na política, nas guerras, nas artes e nas formidáveis lutas que mataram ou fizeram ressuscitar os direitos das pessoas. Sem faltar a beleza de estilo dos Salmos e do Cântico dos Cânticos. Foram muitas aventuras e não poucas desventuras. Com ela, a Humanidade veio vencendo os tempos. No dizer do espanhol Donoso Cortez, suas páginas começam pelo idílio do Gêneses e terminam nas sombras fúnebres do Apocalipse. Como todos os homens.
Não só por causa de religiões a Bíblia deve ser conhecida, lida e estudada; mas da mesma forma como se leem os livros didáticos de História e dos conflitos humanos. Acompanhou a marcha das civilizações.
Parece insuficiente, portanto, tirá-la das estantes, sob o pretexto de estarmos num estado laico. O que, então, fazer com outras “agressões”, diante de incontáveis exemplos de fé que já se consolidaram? Devemos arranjar novos nomes para São Paulo, Santa Catarina e Espírito Santo? Ou devemos acabar com os feriados dos dias santos, religiosamente respeitados, inclusive por ateus? Só a Bíblia ofende a laicidade?
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