terça-feira, 27 de abril de 2021

 


Fé na política


(( Wilson Cid, hoje, no “Jornal do Brasil” ))


Inspirados na experiência vivida pelo presidente Bolsonaro, que em 2018 havia alavancado sua candidatura sob as bênçãos dos evangélicos, com o cuidado de não renegar totalmente o catolicismo, percebe-se, agora, que outros possíveis postulantes ao cargo ensaiam incursões na mesma seara religiosa, que já vem revelando eficiência na produção de vigorosa bancada parlamentar. Nessa intenção, os candidatos certamente se valem da informação de que os neopentecostais situam-se atualmente em torno de 40 milhões, onde floresce um eleitorado seguidor das instruções emanadas dos pastores; exemplo de lealdade que talvez seja a versão moderna do antigo coronelismo dos padres e fazendeiros. Mandavam, votava-se.


Uma dificuldade que os candidatos assim interessados devam levar em conta é que a influência político-partidária dos púlpitos, mesmo que reconhecidamente expressiva, talvez não disponha mais da hegemonia de outrora. Fácil de compreender, porque dos conflitos entre pastores e “bispos” cada qual sai para fundar sua própria igreja; de forma que, hoje, contam-se centenas delas espalhadas por todos os estados. Umas menos, outras mais prósperas, verdade é que elas se ressentem da velha unidade, onde residia o indiscutível prestígio dos grandes pregadores dominicais. Ora, em matéria de crença não há força onde muito se divide, coisa que os candidatos, se relegarem, podem acabar se decepcionando.


Mas essa realidade parece não constituir maior preocupação, no momento atual, para quem se anima a iniciar a corrida rumo ao eleitorado. Para esses, o que se conta na primeira fase de seu projeto é um ataque frontal às bases bolsonaristas; e tomar a fonte do evangelismo, mesmo que este se mostre fragmentado.


Então. Se direita, centro e esquerda ( o mais recente vídeo do PT é uma obra gospel) chegam à conclusão de que devem aportar seus projetos em forças religiosas, aos líderes dessas forças os candidatos certamente terão de acenar com simpatias e favores a serem honrados, em caso de vitória nas urnas. Ora, generosas promessas sempre geram a expectativa de vícios e grandes distorções para a prática de uma política sadia, o que autoriza concluir que estaríamos em via de dar sinistra atualização à sábia advertência do jurista pernambucano Joaquim Nabuco (1894-1910): “Confundir política com religião é um passo firme para a intolerância”. Aliás, sinais do fenômeno de agressividade entre os que não se toleram já não se fazem esperar, bastando ver e ouvir certos programas televisivos de pastores. Na noite do último sábado, um deles pregava guerra santa contra a Igreja Católica, que insistiu em compará-la a uma prostituta.


Não é insistir demasiado com lideranças políticas, e, entre elas, principalmente os homens que aspiram à primeira magistratura, que todos temos dever de preservar o estado laico, que já vem padecendo certa inobservância por parte do presidente, quando ele promete propor, nos próximos dias, para o Supremo Tribunal Federal, mais um ”terrivelmente evangélico”, nesse seu singular modo de dizer.


Lessem, ainda que superficialmente, alguma coisa sobre a relação de confissões religiosas com a política, Bolsonaro e os pretendentes à sua cadeira perceberiam, com facilidade, que sempre se respeitou, entre elas, discrição e se manteve algum distanciamento. Na verdade, questões de fé nunca influenciaram, em excesso, mesmo quando Igreja e Estado conjugavam e harmonizavam interesses e poderes. No Império, o catolicismo e os cristãos da Maçonaria, que tinham acentuadas divergências, respeitavam espaços e limites. D Pedro I, entronizado na Ordem do Oriente como Guatimozin, mais preocupava os padres e bispos por causa de seu atletismo extraconjugal, do que propriamente por frequentar a loja não reconhecida pela Sé. Maçons e agnósticos formavam a maioria dos presidentes da Velha República, mas isso jamais permitiu que fossem invadidos os terrenos de fé alheia. Em eleições, diferenças ou preferências não estavam pautadas.

Juscelino, tão logo se elegeu, foi ao Vaticano, ajoelhou-se diante do Papa Pio XII, beijo-lhe a mão, manifestou-se católico, mas nem por isso agrediu a laicidade do Estado. Café Filho e Ernesto Geisel professavam o Protestantismo, e guardavam a fé para si. Outros, que vieram depois, eram daquele catolicismo não praticante; o mesmo que ser um pouco de coisa nenhuma. Não incomodavam nem eram incomodados.


Singular, entre todos, o presidente Bolsonaro revela uma cristologia mais ampla, servindo-se tanto das águas do batistério de Glicério, como das do rio Jordão, onde os evangélicos mergulharam sua cabeça.


Por fim, para que não se omita o risco mais grave a ser considerado, na ameaçadora confusão das coisas políticas com organizações religiosas, lembrem-se do perigo de o país descambar no fanatismo, de onde facilmente se transborda para o campo da intolerância.


Já temos problemas demais. Chega.






Nenhum comentário:

Postar um comentário