Imemorável 64
(( Wilson Cid, hoje, no ”Jornal do Brasil” )
A passagem do 31de março, 57 anos depois do golpe civil-militar que derrubou o presidente João Goulart, acabou não produzindo os eventos prometidos, tanto por grupos de direita como de esquerda, mas ficaram reduzidos a promoções modestas, longe de empolgação, até mesmo entre militares. Restou abreviada manifestação do ministro da Defesa, para quem o levante de 64 cumpriu a missão de salvar o Brasil. Disse-o em tão poucas palavras, que nem tempo houve para esperar aplausos e desaplausos de quem o ouviu.
Compreende-se o descaso com a data. Em clima de tensões e a sociedade visivelmente atordoada, aquele episódio civil-militar, que os direitistas sonham em ressuscitar, em nome de uma nova tentativa de impor a força sobre as instituições, é algo reservado ao arquivo das páginas da História. Sem razões para se pensar na sua reedição, porque as ditaduras sempre escorregam para o indesejável. Uma realidade que muitos preferem esquecer, sejam direitistas ou esquerdistas.
O esquecimento, agora comprovado, começa no desanimo dos próprios militares, pois duas gerações se passaram depois daquela em que saiu dos quartéis para derrubar o presidente que, bem ou mal, sem remissão de alguns equívocos, calçava-se na legitimidade do voto popular. Os generais de então, que vinham de uma tradição golpista, estão mortos; e a seus oficiais colaboradores talvez falte o ânimo guerreiro de outrora. Além de pesarem sobre todos as tormentas do passado, notadamente quando vêm à lembrança as ofensas aos direitos humanos.
Quanto aos chefes civis do movimento, que, com habilidade, permitiram que o ônus maior ficasse como carga sobre os ombros dos militares, também ele já se foram; e os que ainda resistem ao tempo, desprestigiados, viveram tempo suficiente para confirmar que as revoluções, e a de março não foi exceção, raramente escapam de seu destino antropofágico, autorizando que uns e outros se engulam. Não outra coisa haveria de acontecer como os três governadores da primeira hora, Carlos Lacerda, Magalhães Pinto e Adhemar de Barros. Defenestrados em tempo oportuno, vítimas de tratamento canibalesco, tão logo deixaram de ser úteis e por alimentares pretensões.
Isto visto, tanto civis como militares já não poderiam recorrer a um antigo pretexto, tão frequentemente levantado em 64. O comunismo iminente. Hoje, seria ridículo emprestar medos a semelhante risco. O muro de Berlim caiu, fundiram-se as Alemanhas, o russo Putin não se debruça sobre Karl Mark, e a China do velho Mao assumiu e gostou do capitalismo. De forma que, se ainda houver ideais revolucionários, são diferentes os que agora se espalham pelo mundo.
Naquele tempo, com igual frequência, apelava-se para a resistência a inaceitáveis perseguições religiosas, ainda hoje observadas, mas não com a crueldade que horrorizava piedosas de senhoras oriundas das bases da classe média, e foram às ruas debulhando as contas do rosário contra a infâmia. Agora, preocupadas com os valores da sociedade, elas não se omitem ante outros problemas, que não apenas os de ordem confessional. Até porque, as mulheres, ampliando suas representações nos destinos da nação, também conquistaram o direito de apurar a visão sobre o mal das ditaduras. Já não se ouve, da parte delas, qualquer sentimento saudosista em relação aos idos daquele março.
Não seria totalmente fora de sentido, ao concluir, que a modéstia das manifestações do dia 31 expôs uma classe média desinteressada em exumar 64, mesmo que tenha sido aquele ano o exemplo bem sucedido de mobilização popular. Porque, mais de meio século depois, é outra a ótica sobre os fatos; não que uma nova mentalidade dos brasileiros tenha removido preocupações políticas e sociológicas, mas por sentir, ou intuir, que experiências com os extremos não são suficientes para melhorar a vida das pessoas. Talvez o sinal mais recente da transmutação que o tempo provocou no âmago da vida nacional esteja na intenção de pré-candidatos à presidência da República de tentar içar suas bandeiras junto ao pensamento político e às preocupações da classe média. Discursos sem extremos, sem exageros. Eles podem estar pensando que, se a virtude, mais uma vez, faz morada no meio, por que não caminhar nessa direção?
Interessante é que vêm pontuando esse namoro, tanto lideranças da direita como da esquerda. Bolsonaro, Lula e Ciro Gomes, por exemplo. Há que se cuidar, contudo, que ideias do centro e as práticas do centrão são coisas bem diferentes; e diferentes devem continuar.
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