Ideais que se perderam
(( Wilson Cid, hoje, no ”Jornal do Brasil”)
A um exercício encomendado por certo professor de Organização Política, jovens alunos do interior de São Paulo foram pródigos em apresentar críticas e sugestões sobre como melhorar e salvar o Brasil, mas sem que se lembrassem de uma questão que parece pertinente à matéria. Trata-se dos ideais básicos da nacionalidade, perdidos no tempo, mas que cabe resgatar, começando por um objetivo que por ele é preciso lutar com bravura: a solene introdução da seriedade no trato da coisa pública, algo de que o Brasil da atualidade se vê empobrecido. Porque sem esse aditivo básico à ordem geral, dificilmente teremos como garantir e antecipar esse futuro melhor, com que gerações passadas já vinham sonhando, mas desanimadas em repetidas frustrações. Temos de instituir a seriedade das coisas e nas relações entre as pessoas. Só assim o país prospera, e seja compensado pelas desventuras por que vem passando. Em poucas palavras, construir um Brasil sinceramente idealista, sério nos poderes e na atuação de seus gestores.
Há coisas que, no oposto, fazem desacorçoar. Na semana passada, se faltasse embasamento a essa preocupação, ocorreu fato raro na organização política das sociedades modernas: o orçamento da União para 2021 foi aprovado no Congresso, quando o ano já estava enterrando o primeiro trimestre. E, mesmo decepado, veio com inovações e propostas parlamentares que, a se tomar o parecer de especialistas, haverá de ser castrado em cerca de R$ 7 bi. Longe de inovar nessa quadra, o novo orçamento público mantém a tradição de estabelecer o conflito entre o que é razoável e o impossível. Já é sabido, trata-se de um jogo de receita e despesa condenado a incontáveis contorcionismos diante das aperturas ministeriais. Em paralelo, o novo orçamento se presta, igualmente, a frustrar insurgentes adeptos da tomada do poder pelos militares, porque, além de ocuparem cadeiras e gabinetes seus e de civis, eles saem contemplados igualmente com especiais atenções na previsão de dotações.
A lei de meios avançou sobre o Congresso, sem que merecesse o ideal de discussões e estudos mais sérios sobre as prioridades que a realidade impõe. Passou sem o empenho de representações da sociedade, estas praticamente ausentes. Na contrapartida, não faltaram atenções para temas pitorescos, como a visita de um assessor presidencial, que surgiu na TV com o gesto de dois dedos juntos, o polegar e o indicador hirtos, na celebração do obsceno. Episódio banal, em que todos perdem, não apenas o assessor descuidado. Algo longe de merecer as atenções que teve.
Pois, nesse arsenal de singularidades, o presidente Bolsonaro, já sob o bombardeio dos adversários, surge visado, igualmente, por setores parlamentares que o apoiam, preocupados com os rumos das relações externas e com o quadro de profunda insegurança da política sanitária. Sem saber como dividir o ônus com os governadores, mal caminhando no caso das vacinas, o Planalto passou a sentir então que o fogaréu que vinha de fora, agora parte também da cozinha. (Vale registrar que, quando disparam pedras de mãos amigas e levantam a voz, os deputados e senadores situacionistas fazem lembrar o mineiro Mílton Campos, para quem falar mal do governo é coisa tão gostosa, que não deve ser privilégio da oposição..)
O fogo amigo pode persistir em algumas circunstâncias, como agora; contudo, ainda longe de assumir caráter de canibalismo, porque esse é um cenário mais adequado às vésperas da eleição. Não agora.
Ora, se o Brasil, carente de puros ideais, não é um país sério, coisa que De Gaulle nunca disse, embora a ele a ofensa sempre seja atribuída, pelo menos reconheçamos que Jobim não se equivocou ao dizer que o Brasil não é, de forma alguma, para principiantes. Não tem como ser compreendido apenas com superficiais incursões. Talvez nem “tão pobre de homens e de ideais”, como sentenciou Oswaldo Aranha, mas num tempo em que o chanceler de Vargas, no seu ideal de revolucionário de 30, não tinha como prever, para o século 21, os protagonistas dos governos, dos parlamentos e dos tribunais. Não acharia que pudesse ir tão longe a indigência que o preocupava.
Acaba que os conceitos de ideal e seriedade vulgarizaram-se, o que, em parte, ficamos devendo à robusta prática da demagogia eleitoral. Palavras esbanjadas em discursos de conteúdo esquálido, banindo o sentido original e deturpando aqueles sentimentos que, acoplados um ao outro, levam à contínua busca da perfeição. É preciso continuar trabalhando para recolocá-los no lugar de onde os homens maus os apearam. É a tarefa dos idealistas sobreviventes. Pois foi sempre o ideal que aperfeiçoou, modernizou, e, em suma, foi capaz de construir todas as civilizações.
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