terça-feira, 31 de agosto de 2021

 


Wilson Cid
Seg, 30/08/2021 12:42



Festa do país dividido



(( Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" )) 



O que, ao final, teremos para celebrar no dia maior da nacionalidade, num Sete de Setembro que chega diferente dos anos anteriores?, repleto de dúvidas e ansiedades. Porque nunca se terá visto tanta especulação sobre o destino de acumulados conflitos que passaram a reger os três poderes nos últimos meses. Mas, sobretudo, porque intensificaram-se abordagens sobre a suspeita de golpe contra as instituições, aventura que, no mais recente dizer do presidente Bolsonaro, é ideia de idiotas, mesmo que tenham partido dele algumas insinuações quanto a esse risco.


Sem soldados e sem tanques nas avenidas, sob o pretexto de temores com a pandemia, a data cívica maior do país, dentro de uma semana, ficará condenada a transferir para a História o que restar desse clima de divergências que temos vivido. Sem dúvida, será um dia destinado a medir forças de bolsonaristas e de adversários do presidente, numerosos, tanto uns como outros. E já acumulados de uma pesada carga de desentendimentos, coisa facilmente observada nas redes sociais.


O que o Sete de Setembro terá para mostrar é, pois, um país dividido, rachado ao meio. E as manifestações púbicas que virão devem provar, em ruas e praças, o distanciamento de ideais e preferências políticas que vão se ampliando cada dia que passa. Resta a esperança de que os discursos, carreatas e passeatas não se deixem dominar por violência e atos depredatórios.


Contrariando o que desejaria o bom senso, nos dias que antecedem a festa da Independência dois fatores têm sido capazes de contribuir para as animosidades em vários segmentos. O Supremo Tribunal decidiu mostrar, por atos e palavras de alguns ministros, que tem braços largos e fortes, capazes até de cercear a praça pública a cidadãos que, supostamente, podem atentar contra a democracia. Atuando em questões que geralmente escapam de seus cuidados, a corte tem ajudado, e muito, na confrontação dos ânimos, sendo ou não procedentes os méritos das causas e dos autos.


Outro fator, entre os dois citados, para ilustrar as expectativas, vem de destacadas patentes do Exército, quando afirmam, repetidas vezes, que a força militar está coesa com o chefe supremo, o presidente da República, o que, para muitos, é mensagem mais ou menos cifrada. Recado aos diferentes. Quereriam dizer: não mexam com ele?. Mas o que desperta atenção não são, propriamente, as citações dos deveres de caserna, mas a insistência com que são apregoados, frente a um clima de tensões, calores e dúvidas.



Os ex para pacificar



Já se tem falado, mas nunca o suficiente, sobre a quem devia caber a coordenação de um diálogo, minimamente produtivo, entre os representantes maiores dos três poderes, como forma de quebrar essas tensões que têm permitido em suas relações. Na semana passada, depois que Michel Temer sugeriu ao ministro Alexandre de Morais, de STF, algo como “tirar o pé do acelerador” nas investidas contra o governo, surgiu, entre alguns deputados e cronistas, ideia de que o projeto pacificador teria destinação natural se fosse confiado aos ex-presidentes da República.


Claro, a boa vontade dos interessados em remover riscos de rupturas institucionais não permitiu que vissem a inviabilidade dessa ideia. Porque, em rigor, apenas Temer e José Sarney, pelo passado e pelo estilo próprio de conduzir questões políticas sensíveis, teriam como levar à mesa pessoas divergentes e de relações tão arestosas. Acresce o fato dum dos ex a ser convidado, Lula, é concorrente em potencial de Bolsonaro; por isso, com toda razão, sem a mínima intenção de facilitar a vida de quem deve ser adversário nas urnas.


Fernando Collor talvez pudesse ser bom conselheiro, porque em sua gestão padeceu ao menosprezar relações políticas, bem ao estilo de Bolsonaro. FHC e Dilma já iriam ao imaginado encontro carregando uma bagagem de críticas ao governo, o que não lhes recomendaria bom empenho como pacificadores.


Portanto, sem negar mérito dos proponentes no gesto de boa vontade, chamar os ex-presidentes para a tarefa serviria apenas mostrar que, de tão difícil, o entendimento da envergadura desejada precisa de um patrono que a gente ainda não consegue vislumbrar no quadro das lideranças nacionais. Talvez só baixando o espírito de Tancredo.



Que temos com o Talibã?


À primeira vista, salvo sentimentos de ordem humanitária, a volta do Talibã ao poder no Afeganistão é assunto que passa ao largo na pauta das nossas preocupações. Já temos problemas demais para cuidar de país e gente tão distantes. Mas, bem pensado, não deve ser assim, num mundo em que as relações se estreitam ao sabor de interesses diplomáticos e, principalmente, econômicos.


O Afeganistão dispõe de algumas reservas minerais que, em futuro não tão distante, estarão disputando mercados internacionais com o Brasil, concorrência agravada pelos olhares que Rússia e China voltam para o solo afegão, prontas a ocupar ali o vácuo de interesses que ficou do recente e monumental fiasco das forças dos Estados Unidos, atropeladas em um país que dominavam há vinte anos. Criada a nova situação, podemos estar em véspera de perder, para russos e chineses, clientes potenciais em minerais, como cobre, ferro, manganês, bauxita e zinco. Pequim, por exemplo, voltada para o regime de Cabul, não hesitará em trocar o mercado brasileiro pelos afegãos, que já ganharam a promessa de compensação: não serão incomodados nos seus conceitos e preceitos religiosos e sociais.


Mas, com a nova realidade daquele país asiático, temos de atentar, sobretudo, para inevitável concorrência que vamos sofrer na venda de lítio, material que temos abundante em Minas, crescentemente estratégico na indústria eletrônica e farto em solo do Afeganistão; esse complicado país, um dos mais inquietos do mundo, mas assentado em cima de reservas que valem mais de US$ 2 trilhões.


terça-feira, 24 de agosto de 2021


 Mar de contradições


(( Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil")  


Quase uníssono, tem-se dito que acabamos esbarrando em uma dúvida incômoda. Se antes não sabíamos a quem recorrer para arrancar o país do poço profundo e lamacento em que se enfiou, num andar de culpas diversas acabamos incorporando um elenco de contradições. Na verdade, nada é tão ruim que não possa piorar, segundo a velha sabedoria irlandesa. Pois, na complicação política das coisas, fomos empurrados em outra vala: os fatos já não permitem mais serem interpretados racionalmente; desafiam até o lóbulo occipital.


O dia a dia que se vive desfez a ordem natural das coisas e dos fato. Veja-se o presidente, que, em contraste com a história do que faria um ocupante regular do cargo, ele próprio sai peregrinando conflitos que só servem para complicar sua vida e o atormentar. Com prodigiosa competência, garimpa os terrenos dos adversários, provoca-os, desafia e ameaça.


Para estimulá-lo, entre os simpatizantes há quem aprecia complicar. Foi o caso da pretendida paralisação dos caminhoneiros, em setembro, sob o pretexto de solidariedade da classe a Bolsonaro, quando se sabe que nada é mais contrário e prejudicial ao governo que uma greve nesse setor essencial. Em tempo, percebeu-se a incoerência, e o líder se retirou com a viola.


Depois, veio a estranha história de um contragolpe, antes do próprio golpe. Contrariando lição singela de física, seria como conceber a reação antes da ação… Nesse rosário de paradoxos, até os tanques foram para o asfalto, simpáticos ao presidente na campanha do voto impresso. Por isso, no próprio governo não falta quem sugira que aquelas máquinas não desfilem no Sete de Setembro. Tanques fora da hora e do lugar, tentando confundir civismo com o momento político. Temos de tudo neste país.


Igualmente de difícil compreensão é a impetuosidade de algumas vozes do Supremo Tribunal, de onde seria lícito e lógico esperar todos os esforços para contemporizar e pacificar ânimos, já tão exaltados na estrada em que vão se atropelando os três poderes. A corte silencia ante afrontas morais assacadas contra a honra de alguns ministros, mas prefere incursionar com vigor na linha tênue que separa direito de opinião e expressão. E nisso, mais gasolina onde há fogo.


Tudo tem corrido na contramão. É o que traça um quadro, se não desesperador, pelo menos tingido de sucessivos conflitos, que em má hora vão escapando do campo político, e começam a envolver outros setores da vida nacional. Se se permitir a comparação, ante o naufrágio que ameaça, a tripulação não se entende, troca insultos e culpas; e, mais que isso, parece que todos se esforçam para derrubar as velas, já pandas de temores e dos ventos de incertezas.


Pode ser que console a conclusão a que chegou o professor Laurindo Batista Fontes. Desanimado com as contradições que invadem a vida nacional, ele, que se diz simples filósofo das esquinas, lembra algo definitivo: o Brasil é para ser amado, não mais para ser compreendido. Há dias, desistiu de exercícios racionais, quando, na orla, pagou R$ 6,00 a gasolina em posto da Petrobras. Produto que a mesma estatal vende a R$ 2,40 em Assunção, no Paraguai…


Há 60 anos, uma decepção


Estamos em véspera do dia em que, 60 anos passados, o Brasil começava a se debater com uma das maiores crises de sua História. Naquela manhã, para espanto geral, o presidente Jânio da Silva Quadros renunciou. Eram apenas sete meses desde que assumira, na maré alta de uma campanha de moralização que, em poucas semanas, levou o Planalto a se tornar usina de inquéritos, demissões e sindicâncias. O presidente, de punhos crispados, logo depois empurraria o país para um clima de despolitização e desilusão; um porre de decepção. De repente, o homem da vassoura, que tinha chegado para varrer corrupção e maus costumes, também despertou raiva. Mas, quanto a isso, pouco se importava: em outra ocasião, como que antecipando-se aos fatos, dissera que o povo não gosta de amar; gosta de odiar.


Vinha escrevendo uma carreira política fulminante. Em 14 anos foi de vereador paulistano a presidente brasileiro. Não estávamos acostumados com retiradas na política. Antes dele, só Pedro I renunciara em 1831, Feijó em 1837 e Vargas em 45. Deodoro, em 1891, não conta: sua despedida foi o empurrão de Floriano…


Hoje estão removidas as dúvidas. O gesto de Jânio não foi, como se imaginou, a precipitação de uma noite de intensa intimidade com o uísque. Atribuindo, vagamente, a responsabilidade do gesto a “forças ocultas”, ele saia, com a intenção de logo voltar, carregado de poderes excepcionais; como saíram e voltaram Peron e Nasser, além de De Gaulle, que, fortalecido, salvou a França. Antes, Jânio queixara-se com Tancredo e Etelvino Lins: com essa gente do Congresso não dá pra governar.


Mas calculou mal. Numa sessão do Congresso que durou quatro minutospresidida por MourAndrade, a breve carta de renúncia foi lida, e anunciada a vacância do cargo. Dia em que não faltaria quórum, porque o deputado Carlos Lacerda prometera denunciar o convite para participar de um golpe. Começavam, naquela hora, novas e longas rupturas, caras dolorosas para a democracia.


Acabava, assim, o fenômeno Jânio Quadros, que há pouco se elegera com 47% dos votos; e se despedia derrotado. Nele a popularidade revelava, mais uma vez, ser o monstro que não perdoa: aplaude ou devora. Nem faz concessão a personalidades esquizotímicas, uma das marcas, em política, dos idealistas e déspotas.


Para os supersticiosos, que nunca faltam, aquele 1961era um ano aziago, de estranhas coincidências na América. Três presidentes, Jânio, Jange John Kennedy. Todos com J no nome, todos com 43 anos, e nenhum deles terminaria o mandato. Tempo de bruxas soltas.



terça-feira, 17 de agosto de 2021

 


Exumação indesejável


((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))



É remota a possibilidade de a Câmara se redimir, nesta terça-feira, em segundo turno, e abandonar a infeliz decisão de ressuscitar as coligações partidárias em eleição proporcional, já a partir do próximo ano. Nessa triste exumação, cometida na semana passada, confirmou-se o temor de que, votando contra o “distritão”, teriam os deputados, como consolo e pagamento, a volta do antigo monstrengo proporcional, com a garantia de que tal concessão pode ser meio caminho andado para sua reeleição. Na verdade, como se antecipou há meses, neste espaço, a disputa municipal de 2018 haveria de ser, nada mais, que um laboratório para os deputados, que transformaram em cobaias milhares de candidatos a vereador, tirando-lhes, momentaneamente, a proporcionalidade. Em Brasília, logo sentiram que, mantida a inovação, poderiam se tornar vítimas da experiência. Confirmado o risco de o feitiço virar-se contra o feiticeiro, cuidaram de se salvar enquanto é tempo; e aproveitando os ventos do corporativismo, que sempre sopram favoráveis em situações dessa natureza.



Numa época em que as lideranças não titubeiam em derrubar progressos custosamente aplicados à legislação eleitoral, estando elas sempre resistentes aos que reclamam aperfeiçoamentos, a derradeira esperança vai se deslocar, agora, para o Senado. Compõem-no homens e mulheres que independem de coligações, pois se elegem pelo modelo majoritário. Têm mandato de oito anos, e, portanto, à vontade para se oporem ao mal que a outra casa legislativa acaba de arquitetar, consagrando a inautenticidade parlamentar.



O sistema que se pretende restabelecer tornou-se via preferencial para partidos nanicos e grupos políticos que vivem e sobrevivem de uma suspeita aritmética: confiscam votos dos candidatos mais prestigiados pelos eleitores, e, sem anuência de quem vota e de quem é votado, presenteiam os enjeitados pelas maiorias; e, graças a essa manobra, os beneficiados pela boleia do modelo proporcional vão tomando assento nas cadeiras dos parlamentos. É a forma de levar a política a praticar uma indecência equivalente a concubinatos adulterinos. As atuais casas legislativas estão repletas de centenas de vereadores e deputados que as urnas não quiseram. Um escândalo que começou a despertar atenção, quando o médico Enéas, nos seus arroubos televisivos, teve votação fantástica em São Paulo, arrastando consigo candidatos estranhíssimos, com menos de 500 votos.



Percebe-se que a distorção, prestes a se reinserir na prática eleitoral se o Senado não reagir, resulta de ação orquestrada por dirigentes de partidos. Eles comandam uma poderosa ditadura (a propósito, quando se fala em malfazejas ditaduras, é desejável que se inclua entre elas a ditadura dos presidentes de partidos, não menos nefasta). Eles decidem sozinhos e se impõem.



Geralmente, na tentativa de justificar as proporcionais, alegam que é preciso assegurar a diversidade das opiniões; e, mais, falam da necessidade de equidade nas votações, em nome da representação. Mas não confessam que aqueles ideais só se consagram com partidos consistentes e com o alcance de melhor educação política, aspirações para as quais raramente contribuem.





Polarização testada





A leitura menos apressada que se fez da votação do voto impresso, na Câmara dos Deputados, confirmou dados interessantes, que se prestam a imediatas reflexões. Uma delas, logo sugerida, é que a distribuição dos votos - 229 x 218 – serviu para deixar suficientemente clara a tendência de polarização que a política vai construindo para o processo eleitoral do próximo ano. O Congresso Nacional, particularmente a Câmara, serve como adequada caixa de ressonância dos caminhos ou desvios que a política brasileira vai trilhando.



Demonstrou-se então, mais uma vez, que estamos num país claramente dividido em relação a tendências políticas, o que constitui detalhe significativo para problematizar o projeto de terceira via na sucessão presidencial; projeto que, independentemente das atuais preferências, seria bem-vindo, nem que fosse apenas para romper a subordinação do eleitorado à restrição de ser contra ou a favor. Em nada prejudicaria a proposta alternativa.



Uma segunda dedução a avaliar, ainda com base na escassa diferença das posições reveladas no julgamento do voto auditável, é que, de certa forma, aqueles mesmos números desestimularam os promotores da campanha pelo impeachment de Bolsonaro. Ficou clara a escassa possibilidade de, para tal intento, serem atingidos 2//3 dos votos necessários; a menos que o presidente irrompa em desvarios fora de controle.




terça-feira, 10 de agosto de 2021




Como sair do atoleiro?



((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil ")) 

 


A grande questão do momento é como sair do atoleiro em que nos enfurnou essa crise política, que já vinha se galvanizando, dia a dia, e, agravada, aqueceu o termômetro com a decisão do Supremo Tribunal Federal de ficar de mal com o presidente Bolsonaro. O Judiciário, ao julgar-se ofendido na pessoa de dois de seus ministros, era a gota que faltava para entornar, de vez, a barafunda em que o país está mergulhado.


Revigorado o clima de intolerâncias, a pergunta que fica no ar é quem teria suficiente capacidade para nos salvar dos perigos deste agosto? O que se esperava, quase como um tênue fio de esperança, era que o Supremo interviesse num amplo exercício de ponderação; mas, agora, já não é razoável confiar-lhe esse papel. Podia ter se esforçado um pouco mais na tarefa do apaziguamento, e adiar a indisposição de conferenciar com o presidente. Restou, nesse curso, a suspeita de que também o tribunal aposta, em seu favor, nos resultados do impasse.



Para uma tarefa pacificadora restaria, então, ao Legislativo interceder. Mas este, coitado, cada vez mais corporativista, é acusado de pouco interesse nos destinos da nação. Na desejada harmonia, os parlamentares iriam à missão com voz rouca, diminuídos numa onda de desprestígio, a começar pela origem da CPI da Covid, que os senadores, agachados, criaram em obediência à ordem emanada de ministros togados.


Tem-se a impressão, ao menos com base nos desdobramentos que a crise expôs no final da semana, que vai se ampliando, entre setores mais conservadores, certo desejo de confiar o próximo processo eleitoral à proteção e à ingerência militar, o que nada tem a ver com princípios básicos da democracia. O presidente insinua um projeto com esse viés, sem levar em conta que lances mais ousados contra a Constituição carecem de unanimidade nos quartéis. Mas é no bojo dessa aventura que vai tecendo um esquema que joga com vistas a uma situação, de tal forma tensa e incontrolável, que sua reeleição passe a ser caminho único. A se considerar como provável essa intenção, forçoso é reconhecer que Bolsonaro contabiliza pontos a seu favor, toda vez que a situação adquire contornos mais sombrios. Nessa linha de raciocínio, não seria absurdo considerar que o rompimento promovido pelo STF foi um ato que o presidente põe no seu bornal de campanha, para, no momento que julgar propício e adequado, acusar formalmente a Justiça de romper o diálogo entre os poderes. Faixa considerável da população acredita nisso e vai crucificar os ministros num daqueles desfiles de moto.


Mesmo que apenas temperada com ilações, a observação sobre o esquema arquitetado faz sentido, pois os indícios são mais que visíveis. Salvo melhor interpretação, o presidente da República está jogando exatamente num horizonte de rupturas, para delas emergir como vítima. Aposta no esgotamento das razões de entendimento, não tendo mais como debater com a Justiça. Igualmente enfraquecido nas relações com o Congresso, que o espreme com uma CPI hostil, e a cada momento ameaça desengavetar pedidos de impeachment. Isto posto, como se imagina estar no raciocínio dele, o remédio da governabilidade e de uma reeleição favorável seria apelar para explícita sustentação das Forças Armadas; mesmo com risco de convulsão, porque a desejada ingerência está longe de ganhar as graças da unanimidade.


Num emaranhado de incertezas e sob clima nebuloso, o Brasil vai vivendo uma das fases mais delicadas da política recente, tendo a agravá-la, além de seus efeitos altamente danosos, a dolorosa constatação de não lhe é dado um sinal de soluções imediatas. A enfermidade do país produz dores, mas falta alguém para mitigá-las. Isto é o pior. Estamos sem saída. A tarefa da conciliação, ou, se não tanto, a tolerância respeitosa entre os poderes, é carga pesada demais para esses homens que já nem sabem se a paz é realmente o que pode interessar a seus propósitos pessoais. Estamos de volta àquele Brasil que Oswaldo Aranha já definia como um país deserto de homens. Agora, carente de forças e de ideais.



O avanço do retrocesso


Não é preciso consumir grande esforço para se admitir que temos sido contemporâneos de uma fritada de maluquices, sem que para isso falte a volumosa contribuição de políticos destemperados, mas operosos, perigosíssimos.


A tentativa da Câmara de fazer tramitar, de afogadilho, sob a égide de escassos conhecimentos de causa, uma reforma eleitoral, atinge o pico das aberrações na proposta do chamado ”voto preferencial”, o que significa matar e enterrar o instituto do segundo turno, não obstante ser o mais seguro aperfeiçoamento introduzido no sistema vigente. A inovação quer turno único na escolha de presidente, governador e prefeito. Correndo numa escala olímpica de quatro ou cinco candidatos, vence quem tiver mais votos, mesmo que chegue ao pódio com números medíocres.


A receita é uma volta ao passado, quando, com apenas uma votação, alguém lograva eleger-se com miseráveis percentuais de sufrágios.


Num país em que partidos brotam por todos aos lados, muitos deles abrigando candidaturas vazias, o segundo turno é o obstáculo a aventureiros, que poderiam chegar ao poder com qualquer coisa em torno de 20% da preferência do eleitorado. Por exemplo, um demagogo, empurrado num sopro de prestígio passageiro, favorecido pela votação pulverizada entre muitos.


A deputada Renata Abreu, autora da ideia do “voto preferencial”, faria o favor de abandoná-la, e admitir que em qualquer reforma que se pretenda, o ponto a se preservar é o segundo turno em votação majoritária, pois tem o mérito de conferir maioria e legitimidade ao eleito. A política, ela bem sabe, é farta de mazelas dignas de ocupar as preocupações da parlamentar paulista.