terça-feira, 24 de agosto de 2021


 Mar de contradições


(( Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil")  


Quase uníssono, tem-se dito que acabamos esbarrando em uma dúvida incômoda. Se antes não sabíamos a quem recorrer para arrancar o país do poço profundo e lamacento em que se enfiou, num andar de culpas diversas acabamos incorporando um elenco de contradições. Na verdade, nada é tão ruim que não possa piorar, segundo a velha sabedoria irlandesa. Pois, na complicação política das coisas, fomos empurrados em outra vala: os fatos já não permitem mais serem interpretados racionalmente; desafiam até o lóbulo occipital.


O dia a dia que se vive desfez a ordem natural das coisas e dos fato. Veja-se o presidente, que, em contraste com a história do que faria um ocupante regular do cargo, ele próprio sai peregrinando conflitos que só servem para complicar sua vida e o atormentar. Com prodigiosa competência, garimpa os terrenos dos adversários, provoca-os, desafia e ameaça.


Para estimulá-lo, entre os simpatizantes há quem aprecia complicar. Foi o caso da pretendida paralisação dos caminhoneiros, em setembro, sob o pretexto de solidariedade da classe a Bolsonaro, quando se sabe que nada é mais contrário e prejudicial ao governo que uma greve nesse setor essencial. Em tempo, percebeu-se a incoerência, e o líder se retirou com a viola.


Depois, veio a estranha história de um contragolpe, antes do próprio golpe. Contrariando lição singela de física, seria como conceber a reação antes da ação… Nesse rosário de paradoxos, até os tanques foram para o asfalto, simpáticos ao presidente na campanha do voto impresso. Por isso, no próprio governo não falta quem sugira que aquelas máquinas não desfilem no Sete de Setembro. Tanques fora da hora e do lugar, tentando confundir civismo com o momento político. Temos de tudo neste país.


Igualmente de difícil compreensão é a impetuosidade de algumas vozes do Supremo Tribunal, de onde seria lícito e lógico esperar todos os esforços para contemporizar e pacificar ânimos, já tão exaltados na estrada em que vão se atropelando os três poderes. A corte silencia ante afrontas morais assacadas contra a honra de alguns ministros, mas prefere incursionar com vigor na linha tênue que separa direito de opinião e expressão. E nisso, mais gasolina onde há fogo.


Tudo tem corrido na contramão. É o que traça um quadro, se não desesperador, pelo menos tingido de sucessivos conflitos, que em má hora vão escapando do campo político, e começam a envolver outros setores da vida nacional. Se se permitir a comparação, ante o naufrágio que ameaça, a tripulação não se entende, troca insultos e culpas; e, mais que isso, parece que todos se esforçam para derrubar as velas, já pandas de temores e dos ventos de incertezas.


Pode ser que console a conclusão a que chegou o professor Laurindo Batista Fontes. Desanimado com as contradições que invadem a vida nacional, ele, que se diz simples filósofo das esquinas, lembra algo definitivo: o Brasil é para ser amado, não mais para ser compreendido. Há dias, desistiu de exercícios racionais, quando, na orla, pagou R$ 6,00 a gasolina em posto da Petrobras. Produto que a mesma estatal vende a R$ 2,40 em Assunção, no Paraguai…


Há 60 anos, uma decepção


Estamos em véspera do dia em que, 60 anos passados, o Brasil começava a se debater com uma das maiores crises de sua História. Naquela manhã, para espanto geral, o presidente Jânio da Silva Quadros renunciou. Eram apenas sete meses desde que assumira, na maré alta de uma campanha de moralização que, em poucas semanas, levou o Planalto a se tornar usina de inquéritos, demissões e sindicâncias. O presidente, de punhos crispados, logo depois empurraria o país para um clima de despolitização e desilusão; um porre de decepção. De repente, o homem da vassoura, que tinha chegado para varrer corrupção e maus costumes, também despertou raiva. Mas, quanto a isso, pouco se importava: em outra ocasião, como que antecipando-se aos fatos, dissera que o povo não gosta de amar; gosta de odiar.


Vinha escrevendo uma carreira política fulminante. Em 14 anos foi de vereador paulistano a presidente brasileiro. Não estávamos acostumados com retiradas na política. Antes dele, só Pedro I renunciara em 1831, Feijó em 1837 e Vargas em 45. Deodoro, em 1891, não conta: sua despedida foi o empurrão de Floriano…


Hoje estão removidas as dúvidas. O gesto de Jânio não foi, como se imaginou, a precipitação de uma noite de intensa intimidade com o uísque. Atribuindo, vagamente, a responsabilidade do gesto a “forças ocultas”, ele saia, com a intenção de logo voltar, carregado de poderes excepcionais; como saíram e voltaram Peron e Nasser, além de De Gaulle, que, fortalecido, salvou a França. Antes, Jânio queixara-se com Tancredo e Etelvino Lins: com essa gente do Congresso não dá pra governar.


Mas calculou mal. Numa sessão do Congresso que durou quatro minutospresidida por MourAndrade, a breve carta de renúncia foi lida, e anunciada a vacância do cargo. Dia em que não faltaria quórum, porque o deputado Carlos Lacerda prometera denunciar o convite para participar de um golpe. Começavam, naquela hora, novas e longas rupturas, caras dolorosas para a democracia.


Acabava, assim, o fenômeno Jânio Quadros, que há pouco se elegera com 47% dos votos; e se despedia derrotado. Nele a popularidade revelava, mais uma vez, ser o monstro que não perdoa: aplaude ou devora. Nem faz concessão a personalidades esquizotímicas, uma das marcas, em política, dos idealistas e déspotas.


Para os supersticiosos, que nunca faltam, aquele 1961era um ano aziago, de estranhas coincidências na América. Três presidentes, Jânio, Jange John Kennedy. Todos com J no nome, todos com 43 anos, e nenhum deles terminaria o mandato. Tempo de bruxas soltas.



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