Como sair do atoleiro?
(Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" )
A grande questão do momento é como sair do atoleiro em que nos enfurnou essa crise política, que já vinha se galvanizando, dia a dia, e, agravada, aqueceu o termômetro com a decisão do Supremo Tribunal Federal de ficar de mal com o presidente Bolsonaro. O Judiciário, ao julgar-se ofendido na pessoa de dois de seus ministros, era a gota que faltava para entornar, de vez, a barafunda em que o país está mergulhado.
Revigorado o clima de intolerâncias, a pergunta que fica no ar é quem teria suficiente capacidade para nos salvar dos perigos deste agosto? O que se esperava, quase como um tênue fio de esperança, era que o Supremo interviesse num amplo exercício de ponderação; mas, agora, já não é razoável confiar-lhe esse papel. Podia ter se esforçado um pouco mais na tarefa do apaziguamento, e adiar a indisposição de conferenciar com o presidente. Restou, nesse curso, a suspeita de que também o tribunal aposta, em seu favor, nos resultados do impasse.
Para uma tarefa pacificadora restaria, então, ao Legislativo interceder. Mas este, coitado, cada vez mais corporativista, é acusado de pouco interesse nos destinos da nação. Na desejada harmonia, os parlamentares iriam à missão com voz rouca, diminuídos numa onda de desprestígio, a começar pela origem da CPI da Covid, que os senadores, agachados, criaram em obediência à ordem emanada de ministros togados.
Tem-se a impressão, ao menos com base nos desdobramentos que a crise expôs no final da semana, que vai se ampliando, entre setores mais conservadores, certo desejo de confiar o próximo processo eleitoral à proteção e à ingerência militar, o que nada tem a ver com princípios básicos da democracia. O presidente insinua um projeto com esse viés, sem levar em conta que lances mais ousados contra a Constituição carecem de unanimidade nos quartéis. Mas é no bojo dessa aventura que vai tecendo um esquema que joga com vistas a uma situação, de tal forma tensa e incontrolável, que sua reeleição passe a ser caminho único. A se considerar como provável essa intenção, forçoso é reconhecer que Bolsonaro contabiliza pontos a seu favor, toda vez que a situação adquire contornos mais sombrios. Nessa linha de raciocínio, não seria absurdo considerar que o rompimento promovido pelo STF foi um ato que o presidente põe no seu bornal de campanha, para, no momento que julgar propício e adequado, acusar formalmente a Justiça de romper o diálogo entre os poderes. Faixa considerável da população acredita nisso e vai crucificar os ministros num daqueles desfiles de moto.
Mesmo que apenas temperada com ilações, a observação sobre o esquema arquitetado faz sentido, pois os indícios são mais que visíveis. Salvo melhor interpretação, o presidente da República está jogando exatamente num horizonte de rupturas, para delas emergir como vítima. Aposta no esgotamento das razões de entendimento, não tendo mais como debater com a Justiça. Igualmente enfraquecido nas relações com o Congresso, que o espreme com uma CPI hostil, e a cada momento ameaça desengavetar pedidos de impeachment. Isto posto, como se imagina estar no raciocínio dele, o remédio da governabilidade e de uma reeleição favorável seria apelar para explícita sustentação das Forças Armadas; mesmo com risco de convulsão, porque a desejada ingerência está longe de ganhar as graças da unanimidade.
Num emaranhado de incertezas e sob clima nebuloso, o Brasil vai vivendo uma das fases mais delicadas da política recente, tendo a agravá-la, além de seus efeitos altamente danosos, a dolorosa constatação de não lhe é dado um sinal de soluções imediatas. A enfermidade do país produz dores, mas falta alguém para mitigá-las. Isto é o pior. Estamos sem saída. A tarefa da conciliação, ou, se não tanto, a tolerância respeitosa entre os poderes, é carga pesada demais para esses homens que já nem sabem se a paz é realmente o que pode interessar a seus propósitos pessoais. Estamos de volta àquele Brasil que Oswaldo Aranha já definia como um país deserto de homens. Agora, carente de forças e de ideais.
O avanço do retrocesso
Não é preciso consumir grande esforço para se admitir que temos sido contemporâneos de uma fritada de maluquices, sem que para isso falte a volumosa contribuição de políticos destemperados, mas operosos, perigosíssimos.
A tentativa da Câmara de fazer tramitar, de afogadilho, sob a égide de escassos conhecimentos de causa, uma reforma eleitoral, atinge o pico das aberrações na proposta do chamado ”voto preferencial”, o que significa matar e enterrar o instituto do segundo turno, não obstante ser o mais seguro aperfeiçoamento introduzido no sistema vigente. A inovação quer turno único na escolha de presidente, governador e prefeito. Correndo numa escala olímpica de quatro ou cinco candidatos, vence quem tiver mais votos, mesmo que chegue ao pódio com números medíocres.
A receita é uma volta ao passado, quando, com apenas uma votação, alguém lograva eleger-se com miseráveis percentuais de sufrágios.
Num país em que partidos brotam por todos aos lados, muitos deles abrigando candidaturas vazias, o segundo turno é o obstáculo a aventureiros, que poderiam chegar ao poder com qualquer coisa em torno de 20% da preferência do eleitorado. Por exemplo, um demagogo, empurrado num sopro de prestígio passageiro, favorecido pela votação pulverizada entre muitos.
A deputada Renata Abreu, autora da ideia do “voto preferencial”, faria o favor de abandoná-la, e admitir que em qualquer reforma que se pretenda, o ponto a se preservar é o segundo turno em votação majoritária, pois tem o mérito de conferir maioria e legitimidade ao eleito. A política, ela bem sabe, é farta de mazelas dignas de ocupar as preocupações da parlamentar paulista.
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