terça-feira, 23 de agosto de 2022

 

Desafios da vizinhança



((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil") 

Pois a campanha corre, sem deixar sinais de se concentrar em temas que, de tão relevantes, não podiam passar ao largo, como se diz dos navios que ignoram a presença de melhores portos. O descaso dos discursos talvez possa ser debitado, mesmo que apenas em parte, à polarização entre dois candidatos à presidência da República, porque a polarização é filha primogênita e dileta da radicalização; e esta tem se satisfeito com a troca de críticas e desaforos pessoais. Na campanha o essencial acaba seguindo a rota daqueles navios. Passa ao largo.

A primeira ausência a se lamentar é que a disputa dos votos nega espaço à discussão de um verdadeiro projeto nacional. O único conhecido é de autoria de Ciro Gomes, já lançado há algum tempo. O que queremos para as gerações imediatas? Nossas vocações regionais, um modelo de sociedade preocupado com harmonia minimamente consolidada. O que os políticos dizem sobre isso?

Mas há outras questões de imediato, desafios que nos aguardam, e podem resultar em complicadores. Entre eles, valeria citar um; e quanto a este, mais uma vez a sugestão é mirar o mapa do Brasil e dos nossos vizinhos. Somos hoje uma ilha, grande ilha, mas cercada por um cinturão de governos socialistas e socializantes, realidade que seria imprudente desconhecer. Criou-se uma situação geopolítica que, queiramos ou não, impõe-se. Caso mais que evidente é a Venezuela, país que vive em clima de crise permanente e difusa. Nossa Roraima tornou-se a residência-refúgio de 32 mil venezuelanos. Não há como escapar dos compromissos humanitários dessa tragédia, pronta a se repetir com outras comunidades próximas, que caminham para enfrentar problemas semelhantes. Ideologicamente, os presidentes latinos são uma lástima: alguns conservadores quanto aos costumes, e déspotas, como convém à extrema direita.

Sobre o próximo governo, esse que vamos constituir em outubro, devem pesar equipamentos diplomáticos e econômicos para que o mundo não nos cobre além do que permitem nossas possibilidades e interesses. Autoriza e avulta tal preocupação, que devia tomar parte na pauta dos candidatos, é que, em breve, o Brasil pode se ver sob grandes pressões: de um lado, os governos socializantes, tão chegados, a reivindicar respaldos; e, em outra linha, o capitalismo mercantilista dos Estados Unidos e da Europa a nos exigir resistências e desabonos em relação a esses vizinhos, com alguns dos quais guardamos antiga e respeitosa fraternidade. Seria ver o Brasil entre ovos e cristais em salas e cozinhas que não são as nossas.

Um detalhe oportuno a se considerar é que a situação de proximidade com os Estados Unidos pode insinuar aliança em termos de defesa continental, e historicamente os militares seguem diretrizes de Washington.

Não se ouve candidatos tratando do assunto. Podem alegar inconveniência para o momento, mas eles, os partidos e suas alianças não teriam como negar a relevância. O que sentimos é sobre todos exercer um fascínio pelo clima da radicalização, que entre outros defeitos, arrasta o eleitor a se apaixonar por divergências e sentimentos menores.

Bom será se a futura exposição do Brasil a interesses ideológicos de vizinhos e de governos distantes não nos condenar a atuar nos conflitos que são menos nossos que dos outros.

Singularidades e esquisitices

Na contagem regressiva para o 2 de outubro, dia de eleição quase geral do país, só estão fora os vereadores e prefeitos. Tempo para que se registrem algumas particularidades, que convém analisar, a começar pelo fato de agora, como nunca antes, termos tantas pesquisas de opinião eleitoral, às vezes contraditórias em termos de resultados e discrepantes na diferença estatística entre os que lideram a intenção de votos dos entrevistados.

Outra surpresa do processo de escolha são as federações partidárias, já natimortas desde sua estreia. As federações, na verdade, são "gambiarras" do Legislativo, tentando compensar o fim das coligações proporcionais. Não colou. Dificilmente tal dispositivo chegará ao pleito municipal de 2024.

Não menos singular, até mesmo pitoresco neste ano eleitoral, é a volta de políticos condenados devido ao trabalho da Lava Jato. Essa operação não sobreviveu às intempéries do clima político que se respira em Brasília. E, agora, expoentes dela, juiz e o promotor paranaenses entraram para a política, disputando mandatos no Congresso Nacional. Sabem, com certeza, que o poder do mandato é inigualável.

Prosseguindo nos episódios que marcam o jogo eleitoral, vê-se o inusitado debate pré-eleitoral sobre a urna eletrônica, que acabou sendo atriz principal da cena política, considerada de conduta duvidosa na recepção dos votos. A urna eletrônica, antes pouco observada, passou a ser elevada à condição de assunto de relevância nacional. Enquanto isto, os problemas brasileiros tornam-se secundários no debate eleitoral.

Ainda que não seja o epílogo do enredo eleitoral, está o temor de alguns golpe de estado, ruptura democrática diante da possibilidade de resultado eleitoral diferente da reeleição do atual presidente. Isto surge a partir de teoria possivelmente conspiratória. Como consequência, alguns próceres nacionais, como também acadêmicos, artistas, empresários e outros lançam carta em defesa da democracia, que já chegou a mais de um milhão de signatários, em tempo recorde, devido à internet.

Enfim, são fatos que viram roteiro da singular cena eleitoral onde a democracia é visualizada de diferentes formas, dependendo da ótica dos atores envolvidos. Uns, em nome da normalidade democrática, defendem esse valor para o Brasil; mas, em relação a outros países com afinidades ideológicas, flexibilizam os postulados, defendem regimes fechados. Sem que faltem os defensores de total liberdade na economia, mas ditadura na política...

É como vai caminhando nossa política em passos trôpegos.

Cartilha do eleitor

Ao contrário de outros segmentos religiosos, que procuram deixar claras suas preferências por determinados candidatos, a Igreja Católica preferiu não citar nomes, mas opta por orientar os eleitores com sugestões genéricas, como escolher candidatos nunca envolvidos em corrupção, defensores da concepção natural e competentes para lidar com os recursos públicos. É o que se lê na cartilha que acaba de ser lançada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. O documento deixa de nomear os candidatos que são simpáticos aos princípios católicos, o que não impede que alguns de seus celebrantes, principalmente de tendência esquerdista, assumam certas candidaturas. É o que têm feito. Ainda assim, bem mais discretos que os pastores neopentecostais, que denunciam para os crentes os “diabólicos”, que não merecem o voto.

A cartilha também tomou cuidado de recomendar aos católicos que considerem a diferença entre bancada e frente parlamentar, esta com apoio da Igreja: “É uma instituição da Câmara dos Deputados, oficial, regulamentada e reconhecida”, e com ela a CNBB mantém relação de proximidade e diálogo. O documento, referindo-se à próxima eleição de deputados, deixa claro: não deseja uma “bancada” católica na próxima legislatura, tal como a dos ruralistas, “da bala” ou evangélica. Não se mistura.

Os prelados estão lamentando o desinteresse dos jovens pela vida pública. Para romper a indiferença cabe “compreender o verdadeiro significado e a nobreza da política”, começando por procurar diferenciá-la da politicagem, porque é desta que vem a corrupção.

Números que insinuam

Os quadros estatísticos elaborados pelo Tribunal Superior Eleitoral, com base no registro das candidaturas, trouxeram algumas informações importantes, que extrapolam do imediato interesse pelo pleito que se avizinha, mas permitem avaliações sobre a sociedade brasileira que vai se deixando influenciar por novos componentes. O primeiro dado a merecer reflexão é que, pela primeira vez, o eleitorado composto de negros e pardos revela-se superior à participação branca. Enquanto aquele é de 49,49%, os bancos representam 48,3%. Não se trata de uma diferença expressiva, mas é necessário considerar que os votantes negros e pardos sempre crescem dois pontos a cada eleição.

Outra ascensão observada na composição do colégio eleitoral brasileiro é creditada às mulheres, que representam hoje 52%. Subiram mais um pouco.

Evidente que os números insinuam, de imediato, a necessidade de políticas públicas atentas aos setores que mais crescem na população. Números que se recomendam, antes de tudo, aos partidos e candidatos que estão em campanha.

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