Aposta no caos
(( Wilson Cid hoje no
”Jornal do Brasil” ))
Numa
hora de tantas inseguranças, confiscado ao brasileiro o direito de
imaginar o que está por acontecer logo ali; ou o que pode
surpreender, tanto nos rumos da política como nas relações entre
os poderes ou na batalha contra o vírus, vem à lembrança a dúvida
de um velho coronel dos redutos da Mata mineira nos dias de vida e
morte entre PSD e UDN dos anos 50. Dizia ele: ninguém sabe de nada,
e quem disser que sabe está mal informado. Importado para os nossos
dias, aquele sentimento de incerteza parece ganhar sinistra
atualidade. Ninguém sabe, com certeza, o que aguardam as
instituições num perigoso conflito de antigas divergências que
agora descambaram para ofensas pessoais. Já nem são preservados
tratamentos respeitos da liturgia que presidente, ministros,
deputados e juristas acharam por bem substituir por grosserias e
expressões de baixíssimo calão.
Nada
se altera com a promessa de que esta seria uma semana de esforços
concentrados na busca do diálogo entre os três poderes, como
proposta de se restabelecer um mínimo de convivência; porque mal
saiu o domingo e as tensões já estavam de volta, resultado de
depreciações com que o presidente volta a definir os adversários e
lideranças estaduais, ao mesmo tempo em que ele amplia a suspeita
de que o Judiciário guarda esquemas montados para perturbá-lo e
constranger familiares. Nesse clima de vigoroso conflito, a
pretendida pacificação, para a qual se empenhariam os presidentes
das casas legislativas, parece comprometida antes mesmo de nascer.
Paz
só pode ter resultados e ser alcançada em sua plenitude quando os
que digladiam depõem armas, multilateralmente, exatamente o oposto
do que se tem visto numa Brasília que acabou transformada em mil
trincheiras. Estamos diante de uma guerra declarada: o presidente
xinga, dispara e vocaliza denúncias, ministros ofendidos respondem,
tramitam inquéritos, pedem-se oitivas no palácio e o celular do
presidente vira instrumento de medição de forças. Na verdade, no
vendaval de desprestígio geral, todos estão perdendo; menos o vírus
mortal, que transita sob a tolerância dos poderes instituídos,
relegado a plano inferior. Quanto a isso, o governo porta-se como os
sábios de Bizâncio, que discutiam o sexo dos anjo enquanto o
inimigo invadia a cidade. O corona cavalga livre pelo Brasil, quando
os palácios podiam cuidar da prioridade maior. Tudo concorrendo para
que a harmonia entre os que governam pareça algo distante,
impossível de ser atingido. Com punhos cerrados, armas em riste e
sucessiva troca de retaliações a guerra continuará.
Não
é suspeitar demais nem apostar no catastrofismo admitir que os
gabinetes de Brasília, não satisfeitos com o corona devastador,
deixaram-se contaminar igualmente por outro vírus, o que propaga a
ruptura da democracia, abrindo-se portas e janelas ao advento de um
governo autoritário, sem maiores compromisso com as liberdades e com
as próprias instituições. Já não terá bastado a herança de 64,
com a diferença de que desta vez não é necessário esperar pela
chegada dos generais, porque eles já são numerosos e hóspedes do
poder; são de casa. Neste particular, se dúvida houvesse, os fatos
cuidaram de remover. Os conflitos intestinos restritos à direita
(não a esquerda, fora do painel, que vive de quarentena e
perplexidade), tornam difícil dissimular a responsabilidade desses
dirigentes com uma democracia cujas bases foram custosamente
reconstruídas há 35 anos.
Se
as exaltações prosperam entre direitistas civis e muitos militares
fardados ou não, parece estarmos assistindo ao empenho deles na
produção do caos, acirrar ânimos, criar tumultos que possam
explicar reações violentas; enfim, o arcabouço de um estado
policialesco.
É
sombrio constatar nesses dias confusos, de internáveis tensões, que
nos tomaram o direito de saber para onde caminhamos; mesma dúvida
que incomodava o velho coronel do interior de Minas. Dúvida que
agora prospera mais ainda, sobretudo porque o presidente da República
não se convence de que lhe pertence, por dever de ofício, dar o
primeiro passo rumo a uma convivência respeitosa no tripé dos
poderes; mesmo que se sinta no direito de denunciar esquemas de
perseguição à família. Porque a esta sobrepõem-se os interesses
de um país que reclama paz e ânimo para enfrentar os pesados
problemas que persistirão depois da epidemia.
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