terça-feira, 2 de junho de 2020


Aposta no caos


(( Wilson Cid hoje no ”Jornal do Brasil” ))


Numa hora de tantas inseguranças, confiscado ao brasileiro o direito de imaginar o que está por acontecer logo ali; ou o que pode surpreender, tanto nos rumos da política como nas relações entre os poderes ou na batalha contra o vírus, vem à lembrança a dúvida de um velho coronel dos redutos da Mata mineira nos dias de vida e morte entre PSD e UDN dos anos 50. Dizia ele: ninguém sabe de nada, e quem disser que sabe está mal informado. Importado para os nossos dias, aquele sentimento de incerteza parece ganhar sinistra atualidade. Ninguém sabe, com certeza, o que aguardam as instituições num perigoso conflito de antigas divergências que agora descambaram para ofensas pessoais. Já nem são preservados tratamentos respeitos da liturgia que presidente, ministros, deputados e juristas acharam por bem substituir por grosserias e expressões de baixíssimo calão.


Nada se altera com a promessa de que esta seria uma semana de esforços concentrados na busca do diálogo entre os três poderes, como proposta de se restabelecer um mínimo de convivência; porque mal saiu o domingo e as tensões já estavam de volta, resultado de depreciações com que o presidente volta a definir os adversários e lideranças estaduais, ao mesmo tempo em que ele amplia a suspeita de que o Judiciário guarda esquemas montados para perturbá-lo e constranger familiares. Nesse clima de vigoroso conflito, a pretendida pacificação, para a qual se empenhariam os presidentes das casas legislativas, parece comprometida antes mesmo de nascer.


Paz só pode ter resultados e ser alcançada em sua plenitude quando os que digladiam depõem armas, multilateralmente, exatamente o oposto do que se tem visto numa Brasília que acabou transformada em mil trincheiras. Estamos diante de uma guerra declarada: o presidente xinga, dispara e vocaliza denúncias, ministros ofendidos respondem, tramitam inquéritos, pedem-se oitivas no palácio e o celular do presidente vira instrumento de medição de forças. Na verdade, no vendaval de desprestígio geral, todos estão perdendo; menos o vírus mortal, que transita sob a tolerância dos poderes instituídos, relegado a plano inferior. Quanto a isso, o governo porta-se como os sábios de Bizâncio, que discutiam o sexo dos anjo enquanto o inimigo invadia a cidade. O corona cavalga livre pelo Brasil, quando os palácios podiam cuidar da prioridade maior. Tudo concorrendo para que a harmonia entre os que governam pareça algo distante, impossível de ser atingido. Com punhos cerrados, armas em riste e sucessiva troca de retaliações a guerra continuará.

Não é suspeitar demais nem apostar no catastrofismo admitir que os gabinetes de Brasília, não satisfeitos com o corona devastador, deixaram-se contaminar igualmente por outro vírus, o que propaga a ruptura da democracia, abrindo-se portas e janelas ao advento de um governo autoritário, sem maiores compromisso com as liberdades e com as próprias instituições. Já não terá bastado a herança de 64, com a diferença de que desta vez não é necessário esperar pela chegada dos generais, porque eles já são numerosos e hóspedes do poder; são de casa. Neste particular, se dúvida houvesse, os fatos cuidaram de remover. Os conflitos intestinos restritos à direita (não a esquerda, fora do painel, que vive de quarentena e perplexidade), tornam difícil dissimular a responsabilidade desses dirigentes com uma democracia cujas bases foram custosamente reconstruídas há 35 anos.

Se as exaltações prosperam entre direitistas civis e muitos militares fardados ou não, parece estarmos assistindo ao empenho deles na produção do caos, acirrar ânimos, criar tumultos que possam explicar reações violentas; enfim, o arcabouço de um estado policialesco.

É sombrio constatar nesses dias confusos, de internáveis tensões, que nos tomaram o direito de saber para onde caminhamos; mesma dúvida que incomodava o velho coronel do interior de Minas. Dúvida que agora prospera mais ainda, sobretudo porque o presidente da República não se convence de que lhe pertence, por dever de ofício, dar o primeiro passo rumo a uma convivência respeitosa no tripé dos poderes; mesmo que se sinta no direito de denunciar esquemas de perseguição à família. Porque a esta sobrepõem-se os interesses de um país que reclama paz e ânimo para enfrentar os pesados problemas que persistirão depois da epidemia.


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