terça-feira, 14 de junho de 2022


Deus nos livre !


((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil")) 



Entre os nossos temores - quantos serão hoje? - figura possível sinistro desdobramento da campanha que o governo vem promovendo junto aos supermercados, para que contenham os preços e limitem os lucros. O apelo é elogiável e oportuno, num momento em que a carestia avança; mas é preciso evitar que as boas intenções acabem desaguando nos interesses eleitoreiros e no indesejável tabelamento de preços. Deste Deus há de nos livrar. É experiência de triste memória do ano de 1986, quando surgiram os “fiscais do Sarney”, patriotas querendo fazer o bem, sem saber o mal que o governo e eles produziram.

Toda vez que se recorre ao tabelamento dos preços de gêneros minimamente necessários as consequências dolorosas são imediatas. Os produtos somem das prateleiras, impõem-se os ágios do oportunismo, que só os ricos podem absorver. O tabelamento imposto sempre foi cruel contra os pobres. É não é por falta de verificação e memória. No tempo dos “fiscais”, que denunciavam abusos, comerciantes eram presos e lojas fechadas, o que se via, com frequência, era o estímulo ao câmbio negro, inacessível ao bolso dos assalariados. Veio uma campanha feroz contra os pecuaristas, por causa da carne que sumiu dos açougues. Decretou-se a caça aos bois no pasto, uma espécie de santa cruzada, patrocinada pelos demônios da demagogia. Mas os bois já estavam bem escondidos, na engorda, esperando melhores preços.

Os efeitos da carestia, como a que se observa hoje, são corrigidos na própria engrenagem da economia e no comportamento do consumidor. Para tanto, bastam os excessos de produtos degradáveis, controle dos hábitos alimentares e a contenção da inflação. Fora disso, fracassam todos os remédios, incluída a violência contra produtores e distribuidores.

Esse assunto, que, como se disse, não é de hoje, já na década de 80 rendia aulas de um curso de introdução aos efeitos mercadológicos das crises, com o professor Wilson Beraldo, no Instituto Santo Tomás. Lembrava ele que conter preços com base em decreto já obtivera imenso fracasso na Roma Antiga. Os Éditos de Deocleciano adotaram o tabelamento, desapareceram sal, trigo e óleo, que eram essenciais. Mais recentemente, um ensaio do ministro Roberto Campos enumerou outros insucessos que a História guardou, como sábia advertência aos nossos dias e ao governo Bolsonaro.

Mudos e ausentes

Percebe-se, com facilidade, que a intenção de Lula e Bolsonaro em não participar de debates, no final da campanha – mais uma coincidência a conciliar seus interesses comuns - é evitar que forneçam munições aos contrários e eventuais armadilhas. Outra justificativa, que também aproxima os dois, é que ambos, aconselhados por assessores, passaram a confiar mais na potencialidade das redes sociais. Por que? Porque elas já puderam confirmar seu notável avanço, além de poderem divulgar, quando mal usadas, uma infinidade de boatos que confundem o eleitorado; e esse é um expediente velhaco que pode ser útil em determinadas circunstâncias.

Certamente essa ausência conspira contra os interesses das emissoras de TV, que ficam sem o confronto dos astros principais da campanha eleitoral. Provavelmente encontrarão uma forma de se vingar, retaliando.

Seja como for, se de fato ocorrer a dupla desistência, há dois pontos a considerar, e para eles as emissoras promotoras deviam direcionar suas atenções desde já. A primeira questão é que a ausência de dois privilegiados não importa na exclusão dos demais que concorrem ao mesmo cargo. Façam-se debates entre os demais candidatos, pelo menos entre os que avançarem acima de meia dúzia de pontos nas pesquisas. Porque são igualmente concorrentes, e têm o que dizer a uma sociedade que desejam liderar. Que ideias, que projetos trazem para a campanha? Como pretenderão situar-se no quadro político nacional, caso sejam realmente recusados pelas urnas?

Outro ponto - neste caso estando ou não ausentes os dois candidatos que polarizam - é a necessidade de revisão do formato tradicional dos debates. Primeiramente, é preciso encontrar forma de os candidatos não continuarem sendo escravos dos segundos do cronômetro, que, excessivamente controlados, rompem os raciocínios de quem está expondo determinada ideia, o que, antes de desrespeitar quem fala, desrespeita o telespectador. Mais um desvio a ser corrigido é o direcionamento de perguntas maliciosas, que não querem esclarecer determinada questão, mas agredir o adversário ou simplesmente facilitar o desempenho de um futuro aliado. Quando convém, as perguntas são bolas fáceis levantadas entre amigos no vôlei generoso. Se adversário, os saques são ciladas e constrangimentos.

Mas, no balanço geral, mesmo com senões, os debates televisivos têm utilidade. Não devem desaparecer.

A corda já puída

O projeto eleitoral que se desenvolve em Brasília, para tentar o segundo mandato do presidente Bolsonaro, parece estar dividido em etapas estratégicas. Sobre elas pouco se sabe, mas é inegável que, no presente momento, a prioridade da primeira fase é consolidar o Supremo Tribunal Federal no campo das disputas políticas, e vê-lo desgastado diante da opinião pública. Numa avaliação imediata isso parece somar pontos, até porque os demais candidatos não se sentem à vontade para defender togados. Os condutores dessa pré-campanha também devem se sentir estimulados, pelo fato de em nenhum outro tempo a mais alta corte de Justiça andou tão desprestigiada. Claro, então, que o Executivo quer o STF no cenário eleitoral bombardeado toda vez que incursionar em questões políticas, o que tem feito com frequência.

Não é de agora que têm prosperado as tensões entre os dois poderes. Visível a ruptura, sem que se possa dizer que as maiores culpas devam ser debitadas a um dos dois lados; porque os golpes de espadachim procedem de vários gabinetes da pequena esplanada que os separa.

A imagem frequente que se elabora para definir esse perigoso conflito é a corda cada vez mais esticada. O presidente e os ministros cuidam de esticá-la sempre que surge uma divergência; e não há quem se disponha a amenizar os efeitos dessa tensão. O presidente Bolsonaro deu o tom maior, na semana passada, ao anunciar que não se sente na obrigação de acatar decisões do Supremo, que, pouco antes, havia confirmado punição imposta a um parlamentar governista acusado de divulgar fake news. Pronto. À mão, novo ingrediente para temer o rompimento da corda já puída.

Estamos diante de uma guerra travada entre Executivo e Judiciário, que, chegando ao ponto a que chegou, torna escassos e manchados os poucos lenços brancos da paz. Nada menos desejável no quadrimestre que antecede a eleição, e com carradas razões para um impasse doloroso.

Desordem e retrocesso

Hoje, a impressão dominante é que o Brasil vive um jogo de cartas embaralhadas, sem que se saiba exatamente quem é o crupier que administra a roleta, onde apostadores falam sério ou estão blefando com falsos trunfos nas mangas. Seja como for, o país está diante de dúvidas e ansiedades, sem que faltem certos lances prosaicos. O brasileiro amanhece não sabendo se os fatos e as pessoas continuam nos lugares em que estavam na noite anterior.

Completa confusão, que autoriza pedir licença à memória dos positivistas, e reescrever a legenda da bandeira. Não mais ordem e progresso, mas desordem e retrocesso:

1) O Supremo, descendo ao papel de delegacia de polícia, exigindo prioridade do governo para localizar indigenista e jornalista perdidos no mundo amazônico.

2 ) O ministro Fachin quer que a polícia explique como enfrentar, condescendentemente, traficantes entrincheirados nas favelas.

3) O próprio é convidado a embarcar num tanque de guerra, para não desconfiar mais das operações policiais.

4 ) Secretários de Segurança dos Estados mandam para o lixo a interferência do Superior Tribunal de Justiça nas abordagens policiais preventivas, relegando o “racismo estrutural”.

5) Situação inédita: Ministério da Defesa e TSE em conflito aberto sobre limites de competência na avaliação da vulnerabilidade das urnas eleitorais.

6) No Congresso nada preocupa e motiva mais que as incursões nos Fundos que vão financiar as campanhas.

7) Bolsonaro, de olho no Supremo, onde vê canalhas, chama os desafetos para resolver no braço as divergências.

O que falta acontecer mais?


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