Monumento à impunidade
(( Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))
A Câmara dos Deputados fechou a semana passada erigindo monumento ao pecado da impunidade, como se mais isso fosse preciso, num país onde mais de 60% de todos os crimes acontecem sem que os culpados prestem contas à Justiça. Vivemos sob o império da impunidade, e o Congresso, com mais essa iniciativa, trabalha para consolidá-la. Desta vez, sob o rótulo de minirreforma eleitoral, os parlamentares decidiram anistiar seus partidos ( o que indiretamente também os anistia) de dívidas resultantes de flagrantes descumprimentos da lei; e, generosos, foram mais longe, abrindo as comportas para que continuem infringindo, já agora com a garantia de que legendas faltosas não terão cassada sua participação nos próximos fundos eleitorais; nem poderão ser cobradas ou penalizadas nos segundos semestres dos anos em que tiverem candidatos a cargos eletivos. Ora, além do prêmio aos faltosos, a reforminha safada estimula o mal, debocha da seriedade.
É o quarto indulto que nos últimos anos se aplica em favor das organizações políticas; o que, vale dizer, claro convite a que continuem atropelando dispositivos legais, quando isso lhes parecer interessante.
Há outros detalhes que espantam. Um deles estabelece que gastos ilícitos praticados durante a campanha não custarão a perda do mandato, mas a pena substituída por suaves multas, que começam em 10 mil reais, aplicáveis de acordo com o humor de juiz de primeira instância. E, se por descuido da Justiça e o escândalo for ao pódio, não der para escondê-lo, a inelegibilidade vai ser encurtada, não mais os oito anos já definidos. A Ficha Limpa foi para as calendas.
Pois, no momento em que tanto precisamos de um modelo de compostura, vem esse retrocesso, para mostrar que, na má política, andar em caminhos certos é coisa destinada a ingênuos ou incompetentes.
Essas inovações têm prazo definido, com validade já em 2024, se o Senado aprová-las antes de 6 de outubro, para que se cumpra a antecedência mínima de um ano. Princípio da anualidade. Seja como for, vale a esperança de que os senadores, não podendo fazer mais e melhor, pelo menos corrijam a infâmia da flexibilização das cotas para mulheres e negros.
Inteligência ideal
Discussão que vem se intensificando mundo afora, agora com a promessa de ganhar espaço na pauta do Senado brasileiro, a Inteligência Artificial é um desses temas sem prazo certo para terminar; talvez nunca termine, dadas as complexidades que o envolvem. Entre nós, já são conhecidas reflexões isoladas, obtidas, na maioria das vezes, de tertúlias intelectuais e científicas, que, de fato, são o campo onde o assunto pode prosperar adequadamente. Mas, sem entrar no campo político, estaremos longe de alinhavar pauta em objetividades, tarefa que ficam devendo os parlamentares. Também não somos os únicos a alimentar preocupações, porque na maioria dos países civilizados é questão que vem preocupando, na igual medida em que avultam temores quanto à incapacidade de os homens extraírem o máximo possível da tecnologia, sem permitir que ela lhes roube ou restrinja as rédeas do destino.
O progresso tecnológico avança de tal forma em nossos dias, que o mundo está sendo impelido a tirar de centenários arquivos a reflexão do teórico Giambatista Vico, que já previa o risco do retorno da civilização à barbárie, brutalizada pela ciência, se sobre esta perde o controle. Ou, se não formos tão longe, atentarmos para Jacques Ellul, mestre em Sociologia de Bordéus, que dizia algo parecido: a técnica é fenômeno que pode se tornar perigoso para o homem: “temos de compreendê-la, mas compreendê-la racionalmente”
Tomara que o Congresso e os setores da sociedade organizada convocados a se manifestar consigam muitas luzes para remover novas e antigas dúvidas. Há questões essenciais, e a primeira delas é consolidar a garantia da privacidade das pessoas, já sob muitos aspectos invadida, para que não fique rebaixada a números e códigos; e que a artificialidade tenha limites sobre o raciocínio e a vontade individuais. A fabulosa e inimaginável capacidade de armazenar memórias não subestime os sentimentos. A tecnologia é para fazer o que for melhor para o bem e para o progresso, não substituir a personalidade ou subjugá-la. Fácil imaginar a responsabilidade das casas legislativas, ante tamanho desafio.
Um pouco de adesão
O escasso entusiasmo que cercou, há dias, a posse de ministros egressos do PP e do Republicanos, em solenidade reservada e modesta, juntou-se ao temor de setores do governo, preocupados com o fato de os dois partidos, mesmo gratos por ganharem os ministérios dos Esportes e Portos e Aeroportos, não terem como dar suficiente garantia de que vão seguir o governo em todos os desafios parlamentares, votando de olhos fechados, incondicionais. O próprio líder governista, José Guimarães (PT-CE) parece satisfeito se as matérias em tramitação alcançarem 80% das duas bancadas. Já seria muito bom. No fim de semana piscou outro sinal amarelo, quando o próprio presidente do PP, Ciro Nogueira, definiu o governo Lula como incompetente e historicamente desatualizado. Apoia, mas ataca.
Há novos detalhes capazes de justificar apreensão quanto a um apoio incondicional. O primeiro é o delicado projeto de apertar o cerco na tributação dos mais ricos, ideia que não vem obtendo simpatia do presidente Arthur Lira, por considerar a pretendida incursão sobre os endinheirados algo desgastante e, ao mesmo tempo, insuficiente para engordar o Erário, na medida sonhada pela Fazenda. E mais preocupante: é um claro aceno à exportação de dinheiro para países onde as políticas tributárias são menos ambiciosas.
Outra questão, que bem avaliada pode acabar dificultando expectativas do Executivo, é a tentativa de captação de dinheiro dos cassinos on-line, o que teria tudo para alimentar os anseios do governo atolado na previsão de um déficit de banhas prósperas. Nada de anormal, nem mesmo na busca da contribuição desse setor, que, tributado, pode render aos sofres algo em torno de R$ 18 bilhões. Mas vai nisso uma dificuldade política já calculada. Os cassinos on-line, aos serem tributados, automaticamente escapam da ilegalidade a que hoje se acham condenados. É o que espanta e aterroriza a bancada evangélica, por entender que se dará um passo seguro rumo à legalização de todos os jogos, virtuais ou não. Os deputados que emprestam lealdade às seitas, mais que aos partidos, não aceitam isso. Eis um desafio para a base parlamentar, onde o PP e os Republicanos figuram entre os mais recentemente contemplados na Esplanada.
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