sexta-feira, 8 de maio de 2015

QUEM FOI QUE DISSE ISSO?



Coisa que não falta nas páginas que os povos escrevem na sua interminável aventura de passar pela história – pelo contrário, tem até uma regular frequência – é a equivocada paternidade atribuída a frases de personalidades famosas, sem embargo de muitas terem contribuído para celebrar quem de fato não as proferiu. Não raro, os verdadeiros autores morreram incógnitos. Somam-se a isso, então, inumeráveis injustiças.

Na linha das invencionices, pode-se dizer logo, nem as Sagradas Escrituras escaparam. Onde foi que se leu na Bíblia, em que profeta, em que Livro, essa sinistra advertência sobre o fim dos tempos: “De mil passará a dois mil não chegará:” Foi preciso que o milênio dobrasse sua escalada no calendário para que tal castigo, afinal, não se confirmasse. Nem no Antigo nem no Novo Testamento houve quem elaborasse tal previsão. Mas as pessoas passaram séculos repetindo a terrível previsão.

Sem mergulhar tão longe no tempo, sem sair das montanhas de Minas, é possível lembrar casos que se celebram no folclore político. São casos pitorescos do disse-não-disse, ou, se realmente se disse, não pelas bocas em que acabaram conhecidos. Consta que Gustavo Capanema (1900-1985) foi se queixar com José Maria Alkimin (1901-1974), ambos ministros em diferentes ocasiões, pelo fato de ao habilidoso político de Bocaiúva se creditar a autoria de um conhecido dizer, na verdade de autoria do conterrâneo Capanema. É um singular exemplo de frase que alçou equivocada paternidade. “O que importa em política não é o fato, mas a versão do fato”. E Alkmiin, de inteligência rápida, se valeu da queixa para dizer que o sentido da frase estava então confirmado: o que prevalece não é o fato, mas a versão que dele se leva... Dono não é quem cria, mas quem os outros acham que foi o criador.

Ainda no cenário da vida pública no Estado, sem escapar da seara do folclórico raposismo, graças ao notável Nélson Rodrigues foi creditada a Otto Lara Resende uma soberba e cruel definição do jeito de ser de nossa gente: “Mineiro só é solidário no câncer”. Pois Otto morreu garantindo que jamais disse isso, o que, aliás, de pouco valeu, pois a versão da frase nunca dita já estava na boca do mundo, à revelia da vítima.

Persistindo em Minas, onde não são raros os equívocos de que estamos tratando, cabe lembrar que o ex-governador Magalhães Pinto é sempre citado nos casos de repentinas mudanças no cenário político, por ter dito, certa feita, que “a política é como a nuvem: olha-se para o céu é uma coisa; daqui a pouco olha-se de novo e já é totalmente diferente”. Mas, muito antes dele, quem assim falou, com as mesmas palavras, foi Raul Soares (1877-1924), também mineiro, ministro da Marinha no governo Epitácio Pessoa.

Voltaremos à seara dos políticos mineiros, depois de uma incursão além do oceano, onde se colhe fartura ainda maior dessas mal definidas paternidades entre célebres frasistas ou os que delas se aproveitaram. Já de imediato, vem o caso do popular verso tido como autoria de Fernando Pessoa, vate de superior talento. Pois o conhecido “navegar é preciso, viver não é preciso”, que ficou muito bem na biografia do poeta, citado nos momentos mais elevados da inspiração lusa, na verdade vem de muito antes. Podemos conhecer o verso em “Vidas Paralelas”, de Plutarco (106-48 aC ), ao citar Pompeu, que gritava para seus marinheiros desacorçoados e temerosos: “Navegar é preciso, viver não preciso”.

De onde teriam surgido; de que forma teriam propagado essas confusões?, que, como se disse, nem sempre praticadas involuntariamente. Ao acaso muito se deveu, é verdade. Mas à maldade também cabe um pouco. Aos descuidos dos cronistas alguma coisa se credita. Escorregões dos historiadores sempre houve. Nem sempre, portanto, é possível definir responsabilidades. As crônicas da Europa podem confirmar isso, se sobre elas se fizer uma pesquisa, superficial que seja.

Há casos em que alguém ou alguns se esforçam para corrigir o que erradamente vai passando pelo tempo. Ainda recentemente a Société Voltaire, com sede na França, garantiu, e disto afirma ter provas, que o grande sábio, patrono da instituição, jamais disse “Não concordo com uma só palavra do que você diga, mas vou defender seu direito de dizê-la até a minha morte”. Se ele não disse, considere-se, contudo, que de tal afirmativa, em nome da liberdade de expressão muitas vezes violada, Voltaire gostaria de ter sido o autor...

Manuel Lobato, que assina crônica semanal no jornal “O Tempo”, de Belo Horizonte, lembra que o poeta francês Henri de Régnier, morto em 1936, membro da Academia de Letras Francesa, deixou em seu livro “Ele, as mulheres e o amor” o seguinte verso: “O amor é eterno enquanto dura”. Disto muito tempo depois aproveitou-se o consagrado Vinícius de Morais para reproduzi-lo em um soneto, sem que por isto deva ser condenado, pois mesmo antes dele foram muitos os que importaram aquela inspiração do poeta francês.

Volto a Lobato para citar um comentário de sua autoria sobre plágios, que, se existem na literatura, encontradiços com a mesma frequência na música. “Richard Strauss incluiu longo trecho da Nona Sinfonia de Beethoven no seu poema sinfônico. A música “Peixe Vivo” tem um trecho da ópera “Dinorah”, de Mayerbeer, Nessa linha nem escaparia nossa conhecida “Cidade Maravilhosa”, de André Filho, que aproveitou trecho da ópera La Bohème, de Puccini. Famosa dos carnavais passados, “Nega Maluca”, de Fernando Lobo e Evando Rui, é, na segunda parte, uma cópia da embolada “Vamos no Mato”, da dupla Jararaca e Ratinho.”

Nem sempre se revela tarefa das mais fáceis afirmar que determinados versos e sons estão sob paternidade suspeita. Pode ser que tanto seriam apropriações maldosas como equívocos nas transcrições. Vale ter em mente a lição de Tom Jobim, para quem música plagiada é a que tem, de uma outra, oito compassos consecutivos; quando são de caráter diatônico, isso é, marcas melódicas na linha das escala.

E já que se aventura no campo musical, onde são tratadas como plágio as mesmas confusões que conhecemos nas frases de escritores e políticos, cabe registrar caso famoso que ocorreu em Juiz de Fora. Em 1995, durante o Festival Internacional de Música Colonial, no Centro Cultural Pró-Música, ocorreu um espanto geral dos ouvintes quando a orquestra regida pelo maestro Sérgio Dias executou a “Matinas de Nossa Senhora da Conceição”, do Padre José Maurício Nunes, que a compôs em 1821 ou 1822. Havia um trecho claramente aproveitado no Hino Nacional, composto por Francisco Manuel da Silva (1795-1865), aluno do Padre Maurício e copista da orquestra da Corte. Portanto, um aluno com tudo para ter em mãos o que criara seu grande mestre Padre, autor de mais de 500 peças, tendo sido também o primeiro a reger nas Américas o Requiem de Mozart. Portanto, até nosso Hino!

Antes que passe a oportunidade, fique registrada uma das mais famosas mentiras, repetida e jamais suficientemente desfeita na crônica da diplomacia brasileira. Creditava-se a autoria ao presidente francês Charles De Gaulle (1890-1970), e graças à comprovação da falsidade da autoria da frase foi possível evitar que ela acabasse gerando constrangimento internacional. Na verdade, não foi De Gaulle quem se referiu ao Brasil dizendo “N'est pas un pays serieux” (“não é um país sério”), porque realmente quem disse isso foi o jurista Evandro Lins e Silva (1912-2002), quando ministro do Exterior, por ocasião da chamada Guerra da Lagosta, pitoresco episódio provocado por um empresário brasileiro pouco sério, que descumpriu acordo assumido com a França relativamente à apanha de lagosta na plataforma submarina do Nordeste. Para protestar, apareceu na região o porta-aviões Clemenceau. Com essa presença ameaçadora as coisas logo se acalmaram e os franceses saborearam o crustáceo de sua preferência. Mas a frase debochada ficou sendo de seu presidente, até hoje citado por dizer o que de fato nunca disse.

O jornalista Hélio Fernandes publicou em sua coluna uma dúvida, que certamente é formulada por muitos: a frase pertence a quem a cria ou a quem a imortaliza? Estava se referindo à conhecida “Restabeleça-se a moralidade ou nos locupletemos todos”, imortalizada por Sérgio Porto e outros cronistas, mas criada por Capistrano de Abreu (1853-1927).

Em campanha eleitoral na década de 50, o Brigadeiro Eduardo Gomes, candidato à presidência da República, fez o Brasil inteiro ouvir que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”, esquecendo-se de dizer que estava repetindo o que já havia dito Aldus Huxley. E Getúlio Vargas, que viria a disputar com o mesmo Brigadeiro, deixou de dizer ao seu eleitorado que o ”só o amor constrói” já havia saído da boca de Schoppenhauer.

(um parêntese em relação à candidatura do Brigadeiro Eduardo Gomes. Ele se tornou vítima politicamente fatal de uma frase que lhe puseram na boca, e que ele jamais pronunciou. Havia dito, sim, que não precisava dos votos de desocupados. Mas Hugo Borghi, amigo de seu adversário, Getúlio, apregoou que dissera: ”Não preciso dos votos de marmiteiros” o que correu o Brasil como fogo de morro acima; (fogo de morro acima, para repetir verso do nosso grande Belmiro Braga).

E em Minas, quando o governador Francelino Pereira, espantado com os rumos da política nacional, indagou ”Que País é este”, estava navegando em águas de Voltaire, quando o pensador francês disse a mesma coisa em seu personagem Cândido, que visitava o Eldorado.

No tempo em que novas ideias tentavam fincar pé num Brasil monárquico, sobretudo nos idos de 1842, quando se assistia à epopéia de Teófilo Otoni, travavam batalhas parlamentares os liberais, apelidados de saquaremas, conservadores, e os luzias, liberais. Já então, há mais de 150 anos, entendiam muitos que, quem quer que estivesse no Gabinete do Imperador, as mudanças seriam escassas, quase inexistentes, porque a história ensina que grupos políticos, quando galgam o poder, são quase irmãos gêmeos. Vem daquele tempo um ditado que perdurou: “Nada mais parecido com um luzia que um saquarema no poder”. Nada é tal igual a um conservador como um liberal no poder.

Muito tempo depois, já agora nos dias que são nossos contemporâneos, e certo de que nada mudou, o ministro Delfim Neto garantiu que “nada mais parecido com o governo do que a oposição no governo”. Colega seu de Ministério, Roberto Campos veio atrás garantindo que “a esquerda no Brasil é, tão somente, a direita fora do poder”.

Para encerrar, um episódio literário de Juiz de Fora, que vamos buscar nos registros de Haroldo de Carvalho Castro, grande intelectual mineiro, em sua “Aproximativas”, publicada em julho de 1982, citando o poeta Rangel Coelho, que, entrando num sebo, deparou com um livro de sua autoria, com dedicatória a Floriano, amigo fraterno. Descreve Haroldo “Poetas e pensadores tomam frequentemente como frontespício ou mote, conceitos, períodos ou meros episódios na essência de suas inspirações. Rangel Coelho, literato de elevado nível cultural, conhecendo o episódio de Bernard Shaw que encontrara entre obras usadas um livro seu antigo com dedicatória ao amigo, comprando-o e escreveu: A X, com meus cumprimentos renovados... O poeta juiz-forano defronta-se com situação análoga e escreve a Floriano Lopes: “Com a insistência do Rangel Coelho”.



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