QUEM FOI QUE DISSE ISSO?
Coisa que
não falta nas páginas que os povos escrevem na sua interminável aventura de
passar pela história – pelo contrário, tem até uma regular frequência – é a
equivocada paternidade atribuída a frases de personalidades famosas, sem
embargo de muitas terem contribuído para celebrar quem de fato não as proferiu.
Não raro, os verdadeiros autores morreram incógnitos. Somam-se a isso, então,
inumeráveis injustiças.
Na linha das
invencionices, pode-se dizer logo, nem as Sagradas Escrituras escaparam. Onde
foi que se leu na Bíblia, em que profeta, em que Livro, essa sinistra
advertência sobre o fim dos tempos: “De mil passará a dois mil não chegará:”
Foi preciso que o milênio dobrasse sua escalada no calendário para que tal
castigo, afinal, não se confirmasse. Nem no Antigo nem no Novo Testamento houve
quem elaborasse tal previsão. Mas as pessoas passaram séculos repetindo a
terrível previsão.
Sem
mergulhar tão longe no tempo, sem sair das montanhas de Minas, é possível
lembrar casos que se celebram no folclore político. São casos pitorescos do
disse-não-disse, ou, se realmente se disse, não pelas bocas em que acabaram
conhecidos. Consta que Gustavo Capanema (1900-1985) foi se queixar com José
Maria Alkimin (1901-1974), ambos ministros em diferentes ocasiões, pelo fato de
ao habilidoso político de Bocaiúva se creditar a autoria de um conhecido dizer,
na verdade de autoria do conterrâneo Capanema. É um singular exemplo de frase
que alçou equivocada paternidade. “O que importa em política não é o fato, mas
a versão do fato”. E Alkmiin, de inteligência rápida, se valeu da queixa para
dizer que o sentido da frase estava então confirmado: o que prevalece não é o
fato, mas a versão que dele se leva... Dono não é quem cria, mas quem os outros
acham que foi o criador.
Ainda no
cenário da vida pública no Estado, sem escapar da seara do folclórico
raposismo, graças ao notável Nélson Rodrigues foi creditada a Otto Lara Resende
uma soberba e cruel definição do jeito de ser de nossa gente: “Mineiro só é
solidário no câncer”. Pois Otto morreu garantindo que jamais disse isso, o que,
aliás, de pouco valeu, pois a versão da frase nunca dita já estava na boca do
mundo, à revelia da vítima.
Persistindo
em Minas, onde não são raros os equívocos de que estamos tratando, cabe lembrar
que o ex-governador Magalhães Pinto é sempre citado nos casos de repentinas
mudanças no cenário político, por ter dito, certa feita, que “a política é como
a nuvem: olha-se para o céu é uma coisa; daqui a pouco olha-se de novo e já é
totalmente diferente”. Mas, muito antes dele, quem assim falou, com as mesmas
palavras, foi Raul Soares (1877-1924), também mineiro, ministro da Marinha no
governo Epitácio Pessoa.
Voltaremos à seara dos políticos mineiros, depois de uma incursão além do
oceano, onde se colhe fartura ainda maior dessas mal definidas paternidades
entre célebres frasistas ou os que delas se aproveitaram. Já de imediato, vem o
caso do popular verso tido como autoria de Fernando Pessoa, vate de superior
talento. Pois o conhecido “navegar é preciso, viver não é preciso”, que ficou
muito bem na biografia do poeta, citado nos momentos mais elevados da
inspiração lusa, na verdade vem de muito antes. Podemos conhecer o verso em
“Vidas Paralelas”, de Plutarco (106-48 aC ), ao citar Pompeu, que gritava para
seus marinheiros desacorçoados e temerosos: “Navegar é preciso, viver não
preciso”.
De onde
teriam surgido; de que forma teriam propagado essas confusões?, que, como se
disse, nem sempre praticadas involuntariamente. Ao acaso muito se deveu, é
verdade. Mas à maldade também cabe um pouco. Aos descuidos dos cronistas alguma
coisa se credita. Escorregões dos historiadores sempre houve. Nem sempre,
portanto, é possível definir responsabilidades. As crônicas da Europa podem
confirmar isso, se sobre elas se fizer uma pesquisa, superficial que seja.
Há casos em
que alguém ou alguns se esforçam para corrigir o que erradamente vai passando
pelo tempo. Ainda recentemente a Société Voltaire, com sede na França,
garantiu, e disto afirma ter provas, que o grande sábio, patrono da
instituição, jamais disse “Não concordo com uma só palavra do que você diga,
mas vou defender seu direito de dizê-la até a minha morte”. Se ele não disse,
considere-se, contudo, que de tal afirmativa, em nome da liberdade de expressão
muitas vezes violada, Voltaire gostaria de ter sido o autor...
Manuel
Lobato, que assina crônica semanal no jornal “O Tempo”, de Belo Horizonte,
lembra que o poeta francês Henri de Régnier, morto em 1936, membro da Academia
de Letras Francesa, deixou em seu livro “Ele, as mulheres e o amor” o seguinte
verso: “O amor é eterno enquanto dura”. Disto muito tempo depois aproveitou-se
o consagrado Vinícius de Morais para reproduzi-lo em um soneto, sem que por isto
deva ser condenado, pois mesmo antes dele foram muitos os que importaram aquela
inspiração do poeta francês.
Volto a
Lobato para citar um comentário de sua autoria sobre plágios, que, se existem
na literatura, encontradiços com a mesma frequência na música. “Richard Strauss
incluiu longo trecho da Nona Sinfonia de Beethoven no seu poema sinfônico. A
música “Peixe Vivo” tem um trecho da ópera “Dinorah”, de Mayerbeer, Nessa linha
nem escaparia nossa conhecida “Cidade Maravilhosa”, de André Filho, que aproveitou
trecho da ópera La Bohème, de Puccini. Famosa dos carnavais passados, “Nega
Maluca”, de Fernando Lobo e Evando Rui, é, na segunda parte, uma cópia da
embolada “Vamos no Mato”, da dupla Jararaca e Ratinho.”
Nem
sempre se revela tarefa das mais fáceis afirmar que determinados versos e sons
estão sob paternidade suspeita. Pode ser que tanto seriam apropriações maldosas
como equívocos nas transcrições. Vale ter em mente a lição de Tom Jobim, para
quem música plagiada é a que tem, de uma outra, oito compassos consecutivos;
quando são de caráter diatônico, isso é, marcas melódicas na linha das escala.
E já que se
aventura no campo musical, onde são tratadas como plágio as mesmas confusões
que conhecemos nas frases de escritores e políticos, cabe registrar caso famoso
que ocorreu em Juiz de Fora. Em 1995, durante o Festival Internacional de
Música Colonial, no Centro Cultural Pró-Música, ocorreu um espanto geral dos
ouvintes quando a orquestra regida pelo maestro Sérgio Dias executou a “Matinas
de Nossa Senhora da Conceição”, do Padre José Maurício Nunes, que a compôs em
1821 ou 1822. Havia um trecho claramente aproveitado no Hino Nacional, composto
por Francisco Manuel da Silva (1795-1865), aluno do Padre Maurício e copista da
orquestra da Corte. Portanto, um aluno com tudo para ter em mãos o que criara
seu grande mestre Padre, autor de mais de 500 peças, tendo sido também o
primeiro a reger nas Américas o Requiem de Mozart. Portanto, até nosso Hino!
Antes
que passe a oportunidade, fique registrada uma das mais famosas mentiras,
repetida e jamais suficientemente desfeita na crônica da diplomacia brasileira.
Creditava-se a autoria ao presidente francês Charles De Gaulle (1890-1970), e
graças à comprovação da falsidade da autoria da frase foi possível evitar que
ela acabasse gerando constrangimento internacional. Na verdade, não foi De
Gaulle quem se referiu ao Brasil dizendo “N'est pas un pays serieux” (“não é um
país sério”), porque realmente quem disse isso foi o jurista Evandro Lins e
Silva (1912-2002), quando ministro do Exterior, por ocasião da chamada Guerra
da Lagosta, pitoresco episódio provocado por um empresário brasileiro pouco
sério, que descumpriu acordo assumido com a França relativamente à apanha de
lagosta na plataforma submarina do Nordeste. Para protestar, apareceu na região
o porta-aviões Clemenceau. Com essa presença ameaçadora as coisas logo se
acalmaram e os franceses saborearam o crustáceo de sua preferência. Mas a frase
debochada ficou sendo de seu presidente, até hoje citado por dizer o que de
fato nunca disse.
O
jornalista Hélio Fernandes publicou em sua coluna uma dúvida, que certamente é
formulada por muitos: a frase pertence a quem a cria ou a quem a imortaliza?
Estava se referindo à conhecida “Restabeleça-se a moralidade ou nos
locupletemos todos”, imortalizada por Sérgio Porto e outros cronistas, mas
criada por Capistrano de Abreu (1853-1927).
Em campanha
eleitoral na década de 50, o Brigadeiro Eduardo Gomes, candidato à presidência
da República, fez o Brasil inteiro ouvir que “o preço da liberdade é a eterna
vigilância”, esquecendo-se de dizer que estava repetindo o que já havia dito
Aldus Huxley. E Getúlio Vargas, que viria a disputar com o mesmo Brigadeiro,
deixou de dizer ao seu eleitorado que o ”só o amor constrói” já havia saído da
boca de Schoppenhauer.
(um
parêntese em relação à candidatura do Brigadeiro Eduardo Gomes. Ele se tornou
vítima politicamente fatal de uma frase que lhe puseram na boca, e que ele
jamais pronunciou. Havia dito, sim, que não precisava dos votos de desocupados.
Mas Hugo Borghi, amigo de seu adversário, Getúlio, apregoou que dissera: ”Não
preciso dos votos de marmiteiros” o que correu o Brasil como fogo de morro
acima; (fogo de morro acima, para repetir verso do nosso grande Belmiro Braga).
E em Minas,
quando o governador Francelino Pereira, espantado com os rumos da política
nacional, indagou ”Que País é este”, estava navegando em águas de Voltaire,
quando o pensador francês disse a mesma coisa em seu personagem Cândido, que
visitava o Eldorado.
No tempo
em que novas ideias tentavam fincar pé num Brasil monárquico, sobretudo nos
idos de 1842, quando se assistia à epopéia de Teófilo Otoni, travavam batalhas
parlamentares os liberais, apelidados de saquaremas, conservadores, e os
luzias, liberais. Já então, há mais de 150 anos, entendiam muitos que, quem
quer que estivesse no Gabinete do Imperador, as mudanças seriam escassas, quase
inexistentes, porque a história ensina que grupos políticos, quando galgam o
poder, são quase irmãos gêmeos. Vem daquele tempo um ditado que perdurou: “Nada
mais parecido com um luzia que um saquarema no poder”. Nada é tal igual a um
conservador como um liberal no poder.
Muito tempo
depois, já agora nos dias que são nossos contemporâneos, e certo de que nada
mudou, o ministro Delfim Neto garantiu que “nada mais parecido com o governo do
que a oposição no governo”. Colega seu de Ministério, Roberto Campos veio atrás
garantindo que “a esquerda no Brasil é, tão somente, a direita fora do poder”.
Para
encerrar, um episódio literário de Juiz de Fora, que vamos buscar nos registros
de Haroldo de Carvalho Castro, grande intelectual mineiro, em sua
“Aproximativas”, publicada em julho de 1982, citando o poeta Rangel Coelho,
que, entrando num sebo, deparou com um livro de sua autoria, com dedicatória a
Floriano, amigo fraterno. Descreve Haroldo “Poetas e pensadores tomam
frequentemente como frontespício ou mote, conceitos, períodos ou meros
episódios na essência de suas inspirações. Rangel Coelho, literato de elevado
nível cultural, conhecendo o episódio de Bernard Shaw que encontrara entre
obras usadas um livro seu antigo com dedicatória ao amigo, comprando-o e
escreveu: A X, com meus cumprimentos renovados... O poeta juiz-forano
defronta-se com situação análoga e escreve a Floriano Lopes: “Com a insistência
do Rangel Coelho”.
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