“Rua das horizontais”
( Notas breves para a história da prostituição em Juiz de Fora )
Wilson Cid
“De
gôndolas, em sonhos belos,
desfilam
nobres casais:
os
rapazes de Martelos
e
as moças da Henrique Vaz”
(Parabuneidas)
Aquelas velhas estradas que os pioneiros
abriam, caminho das aventuras e da ânsia de descobrir riquezas e caçar
escravos, jamais escaparam de um destino comum: os bandeirantes passavam e
deixavam para trás as roças recém-plantadas, um posto de pousada e poucas
mulheres que se dispunham a ficar para servir com o corpo a viajantes ávidos,
que depois de longas jornadas traziam grandes apetites de comida e amor. Sempre
foi assim, e nada faria com que o Caminho Novo de Garcia tivesse diferente sorte.
Pelo que sei, os primeiros cronistas que
por aqui passaram preferiram ignorar esse detalhe da incipiente ocupação do
vale do Paraibuna. Nada registraram, como se não tivessem visto ou
experimentado mulheres que se dedicassem ao ofício do sexo. Haviam contudo,
pelo menos na Rocinha da Negra, na divisa das províncias, onde eram frequentes
as baldeações e as paradas de Tiradentes, que desde 1783 dava combate aos
assaltantes da estrada, o bando de Joaquim “Montanha”, que ficou famoso pela
crueldade. Havia mulatas que trabalhavam na pequena propriedade rural que o
alferes tinha no lugar, e consta que alimentava especial preferência por elas.
De forma que pelo Caminho Novo homem que
passasse podia ir ao prazer antes de segui a viagem de semanas para Vila Rica.
A propósito, para confirmar tais visitas, sabe-se que nessa época eram comuns
os casos de crianças que cresciam apenas com as mães, sem que conhecessem nem
soubessem o nome do pai. O pai ia-se quase sempre para sempre.
2 - À medida em que a cidade crescia, conta
o historiador Roberto Dilly, os “homens de moral” cuidavam de afastar para o
mais longe possível as mulheres que se dedicavam à prostituição, removidas do
centro, mas não tanto; afinal a distância reduziria a clientela. Esse jogo de
inconveniência não deixava de ter uma pitada de hipocrisia no receituário do
moralismo. Mas tinha de ser jogado, em nome das famílias e das jovens
recatadas.
Em Juiz de Fora, primeiro foi a Santa Rita,
que a demarcação das ruas condenou a ser a sede da zona boêmia, com seus
buracos, lama, esgotos aparentes e casas paupérrimas com cerca de bambu, Eram
tais casas o primeiro endereço dessa gente de “vida airada”, expressão criada
por Ignácio Gama, nosso primeiro escrivão de órfãos.
Segundo Dilly, ali viveram algumas que
ficaram famosas, como a quase negra Lima, a Aninha Tamanduá, Florência Gambá e
Merência, sem faltar uma que a todos apavorava, Frutuosa, com fama de
feiticeira. De reza cruzada por prostituta e feiticeira ninguém escapava.
Com o passar dos anos a Santa Rita foi
dividir a tarefa com a Rua do Sapo, que depois se chamaria Conde D' Eu e hoje é
Fonseca Hermes. Tanto dividiu, que logo se estabeleceu um diferencial na
categoria das prestadoras de amor pago. É de Jair Lessa, em seu “Juiz de Fora e
seus Pioneiros”, a explicação: na Sapo, as mulheres ”sofisticadas, louras, de
pés macios, enfeitadas com colares e brincos emprestados pelas cafetinas; na
Santa Rita, para os viajantes pobres, mulher de segunda classe, “escrachada e
cachaçal”.
3 - Mas a zona se atrevia a atender homens
um pouco além de suas calçadas, atingindo seu comércio a parte baixa da
Liberdade (Floriano Peixoto), Hipólito Caron e Avenida Kascher, como também a
ribeira do Paraibuna. Paulino de Oliveira, “Memórias Quase Póstumas”, informa
que em certa época, lá pelos anos 30, o meretrício começava na Marechal
Deodoro, em frente à Galeria Pio X, atingia a Batista de Oliveira, depois a
Floriano e a Hipólito Caron. Famosas por ali eram Maria Repinica e Rita Espanta
Patrulha, esta capaz de encarar a polícia em qualquer circunstância.
Na Rua do Sapo algo a denunciava: a terra
amarelada. Pedro Nava confirmou, ao falar de Felisberto Soares Horta, casado
com sua prima. Era proibido limpar as botinas antes de entrar em casa, porque a
mulher queria saber por onde o marido havia andado. Se chegasse com sinais de
terra amarela dava-se mal...
A proximidade com o rio custou caro a elas,
pois facilmente as água das enchentes invadiam seus quartos. Desalojadas, sem
produzir e sem comer, ocasiões em que esse conjunto de misérias fazia prosperar
nelas certo temor de que aquilo era mesmo castigo que os céus enviavam a quem
pecasse na luxúria. Podia até ser castigo, não o suficiente para regenerações,
sempre raríssimas. Mas na madrugada de 27 de janeiro de 1922, primeira vez em
que a terra tremeu em Juiz de Fora, muitas traçaram o sinal da cruz, invocaram
a proteção de Deus e correram temerosas para o Milheiros (Largo Riachuelo),
onde se julgavam a salvo.
4 - Dias de faturamento geralmente
coincidiam com os fins de semana. Mas bons mesmo eram aqueles em que os
operários recebiam o salário, porque enquanto os casados corriam para casa,
onde dívidas e despesas os esperavam, os solteiros tomavam o rumo das mulheres.
E elas já sabiam quando haveriam de trabalhar mais: “Dia da Mineira”, “Dia da
Pantaleone”, “Dia da Meurer”. Cada fábrica tinha o seu dia de suprimento.
Não menor era a capacidade da Hipólito
Caron de denunciar a longo prazo os seus habitués. Nava, no “Baú de Ossos”,
identificou ali um viveiro de sífilis, tragédia que infelicitou o amigo Isador
(sic), sempre cuidadoso para não ser flagrado nas escapadas à zona. Era membro
da União dos Moços Católicos. Certa vez, conta, “foi contemplado com uma carga
composta de gonorreia de gancho e uma cavalhada de provocar inveja aos melhores
haras”. Situações bem comuns na “crônica prostiputaz”, como o memorialista
definia a Rua do Alecrim. Dilly anotou “Rua da Alegria” e “Rua das Pecadoras”,
sem dizer exatamente onde elas se situavam. Mas provavelmente aquelas
tradicionais de sempre.
5 - As peripécias da prostituição
floresciam a ponto de preocupar o bispado de Mariana, que enviou emissário para
tomar providências e sacudir religiosos que viam esse e outros problemas
sociais com olhar de paisagem. Porém, nem por isso as memórias do comércio do
sexo deixariam de ganhar deliciosas crônicas de Murilo Mendes, poeta que aqui
nasceu e viveu na infância e adolescência. Na Europa, lembrava-se daquele tempo
em que a aristocrática Juiz de Fora era “um pedaço de terra cercado por todos os
lados”, mas sem esquecer das prostitutas mais famosas, a começa por Desdêmona,
vice-putain da cidade; não a primeira, porque a precedência não podia ser
negada a Ipólita (sem H). Desdêmona, que ninguém ficou sabendo de onde veio,
”foi plantar suas coxas na rua do amor industrializado, excomungado”.
Bem antes, ficou o caso pitoresco do grande
romancista Artur Azevedo, que aqui morou alguns meses, e se foi queixando-se de
que Juiz de Fora é fria demais no inverno e quente demais no verão. Pois Artur
acabava de assistir no teatro à peça “O Naufrágio do Vapor Porto”, e, faminto,
pediu que lhe indicassem o lugar onde àquela hora da noite pudesse comer. Um
gozador recomendou a “Maison Moderne”, e só ao chegar lá ele descobriu que era
um prostíbulo de baixa categoria...
Foi também nosso o advogado Amanajós
Alcântara de Vilhena Araújo, com justiça celebrado como o maior e mais
encrenqueiro boêmio de Juiz de Fora em todos os tempos. Fiel vassalo das
bebidas fortes, bastava-lhe um pouco do álcool diariamente consumido para
promover os maiores transtornos. Temido pelas crianças e evitado por toda gente
de bem, Amanajós não perdia oportunidade de visitar a zona, onde, no dizer de
Murilo, “moravam as horizontais e ele horizontalizava-se a noite inteira”.
Desgarrafadamente bêbado, livre depois dos exercícios de Afrodite, certa
madrugada acabou adormecendo junto à jaula de um circo, sem cuidar que ela
ficara mal fechada, desmaiou junto ao leão Marruzko. Para sorte sua, o felino
dormia o sono de um ancião desdentado e vegetariano...
6 - Na velha Redação do Diário Mercantil,
lá pelos anos 50, veteranos repórteres ouviam no seu plantão histórias sobre
conhecidas prostitutas do triângulo formado pelas ruas Sapo, Liberdade,
Hipólito Caron e, mais tarde, a Henrique Vaz, para onde foram empurradas,
quando o delegado Abreu decidiu que não podiam mais ficar nas ruas centrais.
Cuspindo fogo, foram para o outro lado do Paraibuna, condenação a que o
folclore da cidade atribuiu alguns insucessos do delegado na política. Praga de
puta. Mas acaba que a Henrique Vaz é que se celebrizou como a grande e última
zona da cidade. Foi onde, já no começo do fim, celebrizaram-se as pernas de
Tereza, perfeitas, torneadas e cobertas de penugem suave que fazia lembrar
pêssegos da melhor procedência. O sobrenome de Tereza era Bezerra, não do
batistério, mas para celebrar uma de suas habilidades. Tal como as vizinhas,
manejava também com destreza a navalha com que se defendia dos desaforos dos
gigolôs. Brigas eram comuns e diárias, principalmente depois do consumo de
cervejas e cachaças do Bar Brasil. “Corre que aí vem o Dorigatti”, investigador
da Policia, com terno e sapatos brancos contrastando com o preto do bigode bem
rapado.
Contava-se ainda, com muita graça, a
história da singular Aurora, que teve uma passagem meteórica por Juiz de Fora.
Certo dia de junho de 1940 ela desceu do Rápído, trem da Central do Brasil, foi
para um dos quartos alugados para encontros na Floriano. Do pouco tempo em que
morou aqui, ficou a fama de que só conseguia atingir ou fingir o clímax do
prazer cantarolando a estrofe do Hino Nacional, ato inconsciente que talvez
resultasse de um distante avô, protagonista da Retirada da Laguna na Guerra do
Paraguai. Deu-se que, certa noite, prestando na cama seus favores ao cabo
Expedito, corneteiro do Regimento, este não menos cioso das posturas cívicas
recomendadas no quartel, pôs-se de pé, nu, com a mão e todas as demais parte do
corpo em posição de sentido ao ouvir o primeiro sinal da estrofe o Hino. À
inesperada cena de patriotismo seguiu-se o insucesso das boas intenções que o
coitado acabara de trazer do quartel.
7 - Foram as aventuras e tragédias
encenadas nos quartos de biombos de Desdêmona e Ipólita (sem H), da Florência
Gambá, de Tereza e quantas alugavam o corpo para uma vida quase invariavelmente
curta e trágica que se construiu a crônica da prostituição em Juiz de Fora. A
“vida airada” foi desaparecendo aos poucos. As ruas da boêmia ganharam novas
funções e biografias. Zona virou coisa demodê, e os que precisavam daqueles
serviços ganharam outros endereços, ao ar livre no descampado da Titia no
Aeroporto ou em companhia das moças que vinham trabalhar no K-2 de dona Carmem
Maranhão.
Em meados da década de 60, na Radio
Industrial, José Carlos e eu vivíamos o Repórter da Madrugada, com o carro de
reportagem tentando descobrir onde estava a notícia naquelas horas quase
mortas. Quanta vez o fato estava na Henrique Vaz!, velho domicílio daquelas
pobres mulheres, damas de uma rua em fim de carreira, decadente, cenário apagado
de incríveis histórias. Mas ainda a tempo de conhecer e entrevistar o
legendário Juvenal, com seus oitenta e tantos anos, metade dos quais dedicados
às “horizontais” com invulgares façanhas. Mas dele nada mais havia além da
simbólica presença e velhas lembranças. Pobre Juvenal. Pendia inerte a
veneranda tripa.
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