Basta cumprir as leis
((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" )
No Dia Internacional Contra a Discriminação Racial, que as Nações Unidas recomendam seja hoje lembrado, vale considerar que no Brasil as ofensas aos irmãos de peles diferentes esbarram em dispositivos legais já suficientes para conter aquela enfermidade social, além do que determina o espírito da própria Constituição. Leis complementares e reguladoras vieram depois, enriquecendo o que foi preocupação dos constituintes. Portanto, o que precisamos agora é de uma única lei: a que manda que se cumpram as leis…
Não se pode perder de vista que o racismo, nas suas formas ostensiva ou dissimulada, deve ser combatido a partir da compreensão das bases da ancestralidade. Portanto, cuidemos de incutir na formação dos meninos e dos jovens a mentalidade da igualdade das raças. É preciso que as novas gerações venham saradas de antigos preconceitos; estes ainda agravados, quando, discriminando, conferem tratamento diferenciado aos negros bem sucedidos, se conquistam expressão nos esportes, nas artes, na cultura. Pelé não padecia de constrangimentos; pelo contrário, foi o rei negro que o Brasil inteiro amou.
Há leis suficientes para conter um mal que persiste em nossos dias, bastando que sejam cumpridas, dispensando restantes 11 projetos e quatro PECs ainda em tramitação para cuidar da mesma coisa, com o risco de ampliarem a confusão do que já vem confuso de longa data.
(Preciso também atentar para que as boas intenções não resultem conflituosas. A Constituição de 88, artigo 5º, inciso XLII, definiu o crime como inafiançável e imprescritível, permitindo ao legislador incursionar no Direito Penal. Com isso, a injúria cometida contra um cidadão negro tornou-se mais grave que dar um tiro nele.)
A base vulnerável
O presidente – já deve ter percebido – terá de se desdobrar em esforços para ganhar tranquilidade e segurança mínimas, quando se trata de manter a base parlamentar, sempre insegura, quando isso lhe convém. É o que se sente agora, na tentativa de impedir a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a aprofundar responsabilidades – visíveis ou ainda camufladas - nos graves acontecimentos de 8 de janeiro. Para restringir os fatos aos já conhecidos, o gabinete presidencial vê-se obrigado a ampliar gentilezas e celebrar acordos, depois que 191 deputados e 35 senadores apuseram a assinatura ao requerimento da investigação, estimulados pela desconfiança que prospera diante do comportamento do governo de explicar a ojeriza assumida frente àquela CPI, que, numa interpretação diversa, até contribuiria para confirmar suspeitas de comprometimento da oposição bolsonarista. Por que não apurar para esclarecer o que permanece duvidoso?.
Quando o novo presidente assumiu, eram, na ponta do lápis, 235 deputados agasalhados no Centrão, onde não se pode negar talento para romper desacordos e conflitos parlamentares. Pois já é impossível apostar na unidade inquestionável desse bloco, apesar do compromisso de assegurar sustentação ao Executivo. Porque, não obstante os acertos, que têm custado caro, há certas questões, como essa estranha resistência à apuração de um crime que os governistas e seus apoiadores garantem não terem cometido ou facilitado.
A suspeita de detalhes inconvenientes mais graves pode mostrar ao governo que em política o apoio é sempre condicional, vulnerável, segundo os fatos e os imprevistos.
Rachados ao meio
Março nunca foi dos meses mais fáceis para qualquer governo, porque enfrenta as naturais dificuldades do começo de ano, além do recém-iniciado período legislativo e o exercício de malabarismo com o orçamento, que sempre nasce defasado. Não haveria de ser diferente agora, com o detalhe particularmente desafiador: a nação parece dividida, tensa e conflitante em quase todos os setores, como se forças poderosas se juntassem e se aliassem para produzir cisões generalizadas.
Não são apenas os problemas, em si mesmos, a preocupar. Acima deles, constata-se que não surge, nem se sabe de onde devia surgir, um líder que se dedique, com competência, à missão de tratar e curar a nação dessa doença que se alastra, perigosamente prosperante. O Brasil é hoje um corpo dividido, como se sente em campos diversos e atividades múltiplas, um verdadeiro redemoinho, sem que dele nem se excluem os grupos que integram o próprio governo. Há ministros se atropelando entre o técnico e o social, divergentes quanto a prioridades e critérios, como ainda agora dá para falar a disposição do ministro da Justiça de criar linha direta de diálogo com o crime do tráfico. Uma interessante inovação, porque criminosos não tem responsabilidades com a lei e com a autoridade, o que os exime de fazer acordos com a Justiça. Além do mais, até mesmo as facções estão em conflito e disputa, como demonstram as graves desordens orquestradas em todo o Rio Grande do Norte.
Somos, hoje, uma nação rachada ao meio, e assim viemos da eleição presidencial de outubro do ano passado, e já então à espera de alguém que a socorra e seja capaz de salvá-la de perigos maiores. Espalhou-se um clima de divisões radicalizadas, até mesmo nas diversas linhas do pensamento religioso, não só na Igreja Católica, porque também os evangélicos dividem-se quando suas bancadas legislativas são chamadas a definir apoio ou oposição ao governo. Não há pastor capaz de apascentar o redil parlamentar, porque os interesses ali são ferozes. Deus e o diabo nas terras do sol, onde até as responsabilidades no campo da segurança interna colocam as Forças Armadas em entendimento diverso, além da discussão, nunca rendida, se se confere aos militares o direito de terem participação na política.
Observe-se, em acréscimo, que mesmo as discussões mais oportunas cedem facilmente aos temperos da divergência, antes das proposições. Na discussão dos direitos e respeitos aos gêneros e às raças nota-se certa intenção de separar, antes de aproximar e unir. Homens e mulheres, brancos e negros, como se devessem caminhar separados numa História que é comum a todos.
Os conflitos ganharam espaço, e não se pode defini-los como tarefa a ser confiada ao presidente da República. Queira ou não, ele não tem muito como desempenhar papel agregador, pois figura no centro do imenso jogo dos interesses em litígio, que causam separações, divergências e rancores. Porque a Presidência, em meio às reivindicações, ao mesmo tempo em que dá atendimento a alguns, desatende a outras. Portanto, longe de pacificar completamente.
Superar tantas e tão complicadas divisões talvez coubesse ao Congresso. Mas pela palavra e pelas ações de quem? Não há quem possa responder.
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