terça-feira, 7 de março de 2023

 


Os idos de março



((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))




No balanço de muitas e diferentes opiniões, parece justificável a decisão do comando do Exército de remeter ao esquecimento oficial os idos de março de 64, mês e ano em que, por força das armas, aplicou-se o golpe contra o governo constituído do presidente Goulart. Motivos são muitos para cancelar as festas, a começar por já terem descido à sepultura todos os que se orgulhavam daquela insurreição; não só militares, como também civis que se aproveitaram para ganhar espaço na longa viagem de duas décadas de submissão da democracia, sem embargo de terem sido os primeiros a reconhecer que escolheram um caminho longe de ser o ideal. Por exemplo, quando os generais disseram a Pedro Aleixo que seu papel de vice-presidente era apenas uma formalidade. Não pôde assumir, quando se impossibilitou o titular, Costa e Silva. Outro, Mílton Campos, pretendeu que sua revolução fosse rápida e cirúrgica. Nem uma coisa nem outra.

Para desanimar iniciativas festivas já desapareceu também o sovado pretexto de frear o ímpeto dos comunistas, deles ficando, no rastro daquele 64, apenas camaradas acomodados, rapidamente acolchoados nos sucessivos governos, sem importar matizes ideológicos. Foram-se os velhos comunistas sonhadores dos anos 60, muitos sacrificados com a vida, por causa de um perigo que, na verdade, não representavam.

Lembram-se os contemporâneos que o movimento insurrecional contra Goulart, que o Exército não pretende mais celebrar, também teve o apoio de expressivas correntes da classe média de então, atemorizada com a submissão a Moscou. Mas também ela, por razões diversas, perdeu a nitidez e ficou deformada. O que dessa classe restou tem pouco a ver com aquela que tinha medo das tragédias humanas dos vermelhos e das criancinhas churrasqueadas. O discurso sinistro não cola mais, e também retiraram-se de cena as piedosas senhoras, que, seis décadas passadas, empunhavam rosários para pedir a morte dos comunistas. Novos tempos.

Outro argumento para explicar o prometido silêncio da celebração castrense em relação ao 31 de março pode se basear no fato de já terem passado duas gerações militares desde aquela aventura; e as que sucederam têm outra visão da realidade brasileira. Viu-se, semanas atrás, quando resultaram infrutíferas as campanhas para promover o levante dos quartéis em nome de eleições apontadas como fraudulentas.

O 64 ficou para trás. E o melhor para não esquecê-lo é desejá-lo nunca mais.

Diferentes modos de dizer

Dias passados, confessando que os combustíveis não seriam poupados de novos sacrifícios, o ministro da Fazenda inovou para anunciar que seriam eles apenas sujeitos a uma reoneração. O que, em miúdos trocados, é o mesmo que retomar uma tributação até então suspensa. Portanto, praticou a arte de dizer coisas desagradáveis com a suavidade possível, tal como, nos velhos tempos, os médicos poupavam os pacientes cancerosos dizendo que sofriam “daquela doença ruim”. Como se não fossem ruins as outras  enfermidades...  

A linguagem da comunicação do novo governo ainda não está claramente definida, mas dá sinais de criatividade. Não diferentemente foi o que se viu, na última semana de fevereiro, na invasão de uma fazenda da Mata mineira. O MST e os serviços universitários que o apoiam definiram o fato como desalojamento sequencial de áreas para interesse social. No modo de usar palavras diferentes para intenções diversas, Lula também já se safara de generosa promessa de campanha: a democratização da picanha foi apenas um recurso metafórico. Mas, diga-se, a bem da verdade, que neste ponto é de justiça sair em defesa do presidente. A promessa de campanha é responsabilidade dividida com quem acredita nela.

Nem se condene Haddad na tentativa de suavizar a má notícia. É prática que nada tem de incomum. Conta-se que nas terras árabes, de onde procedem ancestrais do ministro, o sultão mandou açoitar o adivinho que, chamado a interpretar um sonho no monarca, disse que a imagem da queda de seus dentes significava que morreriam todos os parentes. Convocado outro intérprete, exultou o sultão ao saber que sobreviveria a todos os parentes. A mesma tragédia com palavras diferentes…

Pois algo parecido pode ser lembrado em relação ao extraordinário poder dos combustíveis na economia e sobre a vida de cada um. Os governos nunca foram suficientemente poderosos para manter os preços sob controle. Os atos heroicos prometidos em campanha logo se revelam em sonhos ou bravatas.

Os constitucionalistas

Nem sempre resultam pessoalmente proveitosas para o presidente da República as indicações que fazem para o preenchimento de vagas no Supremo Tribunal Federal. Que o diga Jair Bolsonaro, a quem pouco valeram as escolhas de dois fiéis apoiadores e irmãos de fé evangélica. Estavam eles presentes, e a mais alta corte de Justiça acabou tendo papel decisivo no terremoto que ajudou, e muito, a frustrar o projeto da reeleição.

O presidente Lula talvez devesse ter isso em mente, quando sinaliza a disposição de, em maio, indicar seu advogado, Cristiano Zanin, de quem não pode duvidar a lealdade. Ocorre que, afora méritos, é evidente que o Supremo precisa de ter as cadeiras confiadas aos constitucionalistas -principalmente eles. Porque a Corte é a primeira e irrevogável guardiã da Carta Magna. Cedendo a essa evidência, o Planalto faria melhor se convidasse o Senado Federal a sabatinar o novo ministro com aquela primeira entre as qualificações indispensáveis.

Amazônia sem amadores

O governo rompeu os dois primeiros meses, e não pode se queixar da carência de desafios, alguns a reclamar ações corajosas e imediatas, de forma que não prosperem problemas decorrentes. Se for permitido escolher um desses desafios, logo é revelada a necessidade de se enfrentar a Amazônia real, hoje sob forte pressão externa, exigindo que não nos deixemos seduzir ao apelo de soluções românticas, facilmente acolhidas, mas sem lastro e sem competência para o enfrentamento definitivo reclamado pelo problema. Para tanto, nem é preciso revolver coisas do passado; basta citar o recorde do desmatamento em fevereiro, para mostrar que os discursos oficiais e a simpatia de ambientalistas nacionais e estrangeiros esbarram num mundo de realidades complexas.

O que pode salvar a região e deixar o Brasil respirar é um conjunto de projetos e iniciativas que incorporem, como objetivo central, paralelamente, a ocupação, a exploração não predatória e a preservação racional dos recursos disponíveis. Já ficou demostrado que é chover no molhado, insuficiente, mandar a Polícia Federal correr atrás de madeireiros e garimpeiros.

Pode alguém dizer que esse entendimento seria novidade para o novo governo. Não é verdade. Nas anteriores gestões de Lula e Dilma, foram eles buscar em Harvard o filósofo Mangabeira Unger para se tornar Secretário de Planejamento a Longo Prazo. Nas poucas semanas em que conseguiu suportar os gabinetes de Brasília, viu e proclamou que o melhor a se promover pelo bem daquela região não é condená-la a um santuário verde nem conservá-la com ações dos enamorados.

Em 2008, antes de voltar às suas aulas de Teoria Social Contemporânea na universidade americana, Unger deixou com Lula o Plano Amazônico Sustentável, não vazio de gente e de atividades rentáveis. São suas palavras textuais, quinze anos atrás: “ Quem acha natural que o desenvolvimento da Amazônia seja assumido por um ministério de Meio Ambiente, simplesmente não entende que ela é mais que uma floresta. O ministério carece de instrumentos para lidar com transporte, energia, educação e indústria, necessários a um programa abrangente de desenvolvimento”. A Amazônia não é para amadores.

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