Poderes em conflito
((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))
É com algum esforço que o ministro Barroso, novo presidente do Supremo Tribunal Federal, tem insistido, nas entrevistas e nas informalidades, que inexiste verdadeiramente uma crise entre os poderes Judiciário e Legislativo, mesmo que as evidências levem a uma versão contrária. Mas é preciso que se considere, igualmente, ser de seu dever, por força do cargo que ocupa, negar maiores dificuldades, mesmo latentes, pois, se as reconhecesse, o quadro então se tornaria insustentável, resvalando para a beligerância. É preciso negar o óbvio, na tentativa de tornar menos espinhosas as tentativas de apaziguamento, inadiáveis depois que o Congresso decidiu levantar a crista e estufar o peito, legislando matérias que confrontam decisões da corte maior; além de abrir discussão sobre o limite de duração do mandato dos ministros togados. Nada mais ajustado a uma receita de retaliação do que tocar na vitaliciedade.
O presidente, insistindo no fortalecimento de uma harmonia que se revela periclitante, voltou a clamar pelo diálogo. Porque, efetivamente, outro caminho não há. E não há mesmo. Os poderes, mesmo que intolerantes, têm de conversar. A preocupação precedente é saber a quem confiar a missão de abrir delicadas negociações, que, de imediato, impõem aos dois lados em conflito abrir mão de algumas decisões que já tomaram, e nas quais instalou-se o pomo das discórdias. Quem se habilitaria a propor esse caminho e dar o primeiro passo? Não o ministro Barroso, muito menos seus pares, porque são interessados diretos. Vozes credenciadas do Congresso talvez recomendassem ao presidente Lula assumir esse encargo; mas também aí ocorreria uma dupla dificuldade: primeiro, como é notório, ele estaria prejudicando por dispor de excelentes relações no Supremo Tribunal; e já demonstrou que realmente as tem. E, de outro lado, mesmo que a custo de grandes investimentos, o governo vem mantendo com os deputados a base essencial para converter seus projetos em lei. Se Lula se aventurasse nesse cipoal, quase certo as coisas tenderiam a se complicar em duas frentes.
Localizar e sensibilizar o heroico porta-voz, pessoa ou instituição, é o ponto de partida na caminhada para a paz na Esplanada.
Quando se passa em revista o que fizemos, ao longo da História, para encarar crises mais agudas, como as que colocaram em confronto Legislativo e Judiciário, nota-se que os partidos políticos, sempre eles, atuavam como pacificadores, mesmo ante escassa a possibilidade de superação das discórdias. Nos anos 50, quando costumeiramente o deputado Carlos Lacerda incendiava a política, os dois poderes andaram se estranhando. Naquela e em outras quadras o velho PSD ajudava a serenar os ânimos, confiante em que, na política, tudo pode ser resolvido com condescendência nas questões adjetivas e intransigência no que for substantivo… Receita eficiente, que nunca mais produziria efeitos. Hoje, o notável Thales Ramalho, expressão maior do MDB, voltaria a dizer que o poder de conversar e conciliar começou a se extinguir com o advento do pluripartidarismo. Muitos falando e poucos podendo decidir.
O fim da reeleição
Nem tudo é tão ruim que não possa ter alguma coisa boa, segundo releitura de velho brocardo, que ensina nada ser tão ruim que não possa piorar. A reinterpretação vem à lembrança quando, em meio a tantas razões para temer e desacreditar, o Senado, tomando por base o consenso das lideranças de bancadas, chega à conclusão de que soou o momento de extinguir o instituto da reeleição, depois de repetiras experiências, com um vasto saldo de inconveniências e escassas razões que poderiam justificar sua permanência no corpo da organização eleitoral brasileira. Ainda com base consensual, impedidos de se reelegerem, sem se afastar do cargo, o presidente da República, governadores e prefeitos, se se desamarrarem de oito anos no poder, passam a ganhar cinco, tempo mais que suficiente para que cumpram suas metas; se descumpridas, a culpa não caberia atribuir à duração do mandato, mas a fatores outros, entres os quais a incompetência.
Pode-se arriscar dizer até que, bem avaliados, livres de pressões que estimulam projetos de continuísmo, os executivos, poderão se livrar dos interesses que em torno deles se formam, com o objetivo de manter conveniências, em sua maioria pouco republicanas. É sabido que muitos governadores e prefeitos nem desejassem o segundo mandato, mas sucumbem às forças políticas e econômicas que conseguem fazê-los reféns. Acabam subjugados pelos grupos que com eles enriquecem. Foi o que autorizou Fernando Henrique a dizer que o instituto da reeleição, que lhe foi favorável, se se deu pela via da compra de votos de deputados e senadores – fato inconteste - foi resultado de entendimento entre eles, à sua revelia.
O pecado original, que nem de outros pecados precisaria, é que no útero da vitória dos executivos nas urnas, mesmo mal empossados, em torno deles já se monta poderosa rede de influências, favores e concessões, que são, por assim dizer, as bases do projeto da reeleição. Não seria exagero afirmar que uma poderosa dose da corrupção política, que nos tornou campeões mundiais nesse triste campeonato, deveu-se aos esquemas que nutriram a reeleição nas últimas décadas.
Ao prosperar no Senado, a matéria ainda vai comportar discussão de detalhes importantes, um dos quais se refere ao posicionamento do presidente Lula. Se a nova regra se der durante seu mandato, há menos de um ano iniciado, tendo sido eleito segundo normas anteriores, não haveria como sacrificar um eventual projeto para mais quatro anos. Mas, já batendo às portas dos 80 de vida, com três mandatos presidenciais, enriqueceria sua biografia abrindo mão de nova tentativa, oferecendo sincero testemunho de que a reeleição não ajudou a política brasileira a ser melhor. Ele sabe que não ajudou.
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