A novela venezuelana
((Wilson Cid, hoje, no "Jornal do Brasil" ))
O confuso desembarque do governo brasileiro na tragédia venezuelana faz lembrar a dificuldade de certos autores das teledramaturgias, que, criando suas novelas, entram animados nos primeiros capítulos, mas sentem dificuldade para elaborar o capítulo final. No caso presente, o presidente e a assessoria extra-Itamaraty estão em busca de uma saída honrosa, sem novos acidentes, menos desgastante. Mas, já haviam mergulhado de tal forma, que restou uma tarefa que está a exigir muito engenho e arte; tarefa mais difícil, desde que o presidente sugeriu que o ditador de Caracas e a oposição fossem à mesa para negociar uma segunda eleição, quando devia saber que isso seria o mesmo que convidar perdedores e ganhadores a confessarem duplo fracasso. Nesse particular, reconheça-se, o talento internacional de Lula conseguiu o milagre: de uma única vez, foi rechaçado igualmente por Maduro e González, pois ambos o mandaram se recolher, lembrando que são de um país que tem autonomia. Não foi fácil digerir o tropeço.
Em outra estranha incursão da criatividade tupiniquim, propôs o projeto de coalizão, o que, considerado o clima venezuelano, é sonhar com a coexistência impossível. Na verdade, tentava fechar uma novela em que heróis e vilões se abracem e dividam razões e boas intenções, delírio que acabou causando espanto maior com a desastrosa conclusão de que não há ditadura na Venezuela, mas apenas um regime irregular. Os amigos esqueceram de dizer ao seu presidente que toda ditadura é irregular em si mesma, dispensa definições artificiais.
Afinal, essas tentativas ofereceram a Maduro fôlego e tempo para acabar de preparar misteriosas e morosas atas eleitorais, com os números que lhe pareçam mais vantajosos. Nada mais que isso. Tanto assim, que o México, participando do triângulo das articulações brasileiras, percebeu o fiasco, e foi saindo à francesa. A Colômbia, no outro vértice, sente que, para não se comprometer mais, é suficiente apenas insistir em eleição clara. E fica o Brasil, em voo solo, acumulando desgastes, como o desconforto com a Organização dos Estados Americanos, que, por culpa nossa, não teve como conferir ao ditador Maduro um voto de desconfiança continental.
Como sair desse embaraço e de suas consequências presentes e futuras? Só Deus sabe.
Tempos pouco transparentes
Causa perplexidade, até certo asco, a extensa discussão sobre a conveniência da legalidade ou não de se dar transparência aos destinos e objetivos das emendas parlamentares, como se os dinheiros que as alimentam fossem apenas de bolsos particulares; o povo nada tem a ver com isso. Os segredos e raras informações sobre elas nem deviam ser objeto de discussões e dúvidas, dado que transparência é o mínimo de respeito que se deve aos contribuintes. Escandaliza ver que coisa tão óbvia ainda gera dúvidas.
A clareza na destinação das emendas seria, num país menos desorganizado, algo implícito, automático e imediato na decisão do Congresso ao criar a bondade, visivelmente suspeita, porque o verdadeiro objetivo, não outro, é favorecer a reeleição de deputados e senadores, contemplados com tamanho privilégio. Estamos diante de uma barbaridade.
O horror do orçamento secreto e as emendas destinadas sem a necessária rastreabilidade figuram como escândalo intolerável, cusparada na cara da sociedade. Não se sabe como os parlamentares se sentem sem rubor, quando se cruzam nos corredores. Incrível.
Há um outro mal que, paralelamente, vai prosperando. Tolerada a infâmia do assalto ao Erário, que até o presidente Lula definiu como loucura ( logo ele, que não se assusta com qualquer coisa), o Congresso vai se sentindo à vontade para outras incursões danosas, à sombra de névoas acostumadas com irregularidades escondidas. A mais recente delas acaba de ser praticada pelo Senado, ao aprovar perdão aos partidos políticos que vivem em irregularidades, não pagam suas contas e, pior, na eleição de 2022 descumpriram dispositivos legais que mandavam garantir espaço e vagas para mulheres e negros na elaboração das chapas de candidatos. Os criminosos acabam de ser perdoados, como também caladas e recolhidas ficaram as entidades que gostam de falar grossos quando os menos poderosos pisam nos calos femininos e fazem pouco da cor da pele.
Na verdade, todos vão se acostumando com a violência praticada contra os direitos, exatamente por obra e graça de duas casas legislativas, que têm o dever de defendê-los. Não só não os defende, como também os agride.
Livrinho de Delfim
O fato de ter sido fiel servidor da ditadura que se instalou em 64 não torna desimportante o papel do professor Delfim Neto em momentos cruciais nos destinos do Brasil, além de ser o mais longo ocupante do ministério da Fazenda, que comandou durante 12 e meio anos, superando Souza Costa, que esteve no cargo por 11 anos, no governo Vargas.
Morto na semana passada, aos 96 anos, jornais e emissoras de televisão ocuparam-se em resumir sua longa biografia, sem que faltassem frases famosas que atraíram aplausos, como também críticos severos. Certa vez, disse uma verdade que os tempos outra coisa não fizeram se não confirmar: “nada mais parecido com o governo do que a oposição no governo”. Porque os políticos, quando estão com o poder nas mãos, apreciam fazer exatamente o que antes criticavam.
Sobre o momento crítico em que estamos vivemos, em uma de suas últimas aparições na TV ele receitou: alguém traz aquele livrinho da Constituição de 88, verde e amarelo na capa, chama os homens que hoje mandam no Executivo, Legislativo e Judiciário, e diz: o que vocês têm de fazer está escrito aqui. Eis o suficiente.
O velho presidente Dutra também apreciava chamar de livrinho a Constituição de sua época.
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